quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Meditações em Quarta-Feira de Cinzas

Sic transit gloria mundi. Era assim que deveria começar este texto, mas recuso-me a fazê-lo. Sei que é Quarta-Feira de Cinzas, que estas são símbolo da transitoriedade humana e que o latim não iria mal com o dia de hoje. Há nele uma melancolia tal que sinto o coração a contrair-se. Esta tristeza veste muito bem os dias quaresmais que batem à porta. Não é que haja quem se entregue, nestes tempos, a jejuns hercúleos e abstinências rigorosas, mas é a própria Quaresma que empresta tonalidades entristecidas a um sol cúmplice e a uma luz de pouco ânimo. Salvo algumas excepções, espanto-me sempre com a falta de personagens nestes textos, como se o que é humano não devesse ser o motivo de quem narra. É preciso talento para falar de pessoas, dar-lhes vida, avigorá-las com acções, excitá-las com desejos e instigá-las com objectivos a perseguir ou apoucá-las com o peso da decepção. O meu talento, porém, viveu sempre de longos jejuns e árduas abstinências e por isso escrevo coisas que não interessam a ninguém. Por exemplo, John Locke pensava que as palavras são sinais sensíveis das nossas ideias. O que falta explicar é como me ocorrem tantas palavras sem que na minha mente haja uma ideia. Para mim, palavras são peças de Lego que vou encaixando umas nas outras. É verdade que nunca consigo fazer uma casa, um carro ou um helicóptero, mas gosto de as ver arrumadas da esquerda para a direita e de cima para baixo. Essa ordem tranquiliza-me, como se fosse um escudo contra o transitório que há em tudo o que existe. Não é, mas não deixa de ser virtuoso mentir a si mesmo.

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