sábado, 1 de fevereiro de 2020

Um problema de família

Um céu de cinza esbranquiçada, aqui e ali entrecortada pelo chumbo, e uma luz difusa fazem-me crer que me atrasei e abeirei-me da manhã deste sábado já tarde. Podia encontrar múltiplas desculpas, evitar com belos artifícios a verdade, tentar-me mesmo por uma piedosa mentira. Esta, porém, está-me vedada pelo imperativo categórico kantiano e há que ser respeitoso com o mestre de Konigsberg, mesmo pelos seus mais insanos devaneios. A realidade é que fui retido por uma discussão monumental com o autor destas palavras. Eu sei qual é o meu lugar, não passo de um mero narrador, mas os delíquios do autor deveriam ter um limite, talvez estipulado por alguma comissão reguladora da liberdade dos autores, coisa a que aspira qualquer narrador. A conversa começou de forma estranha, com ele a olhar para mim com piedade. Chegou a altura de teres uma genealogia, de teres antepassados, disse-me, não se pense que foste criado ex nihilo. Contente com o latinório não se conteve e rematou ex nihilo nihil fit. Olhei-o de viés, respirei fundo e fiz um gesto que me abstenho de descrever. Criei-te, para começar, um bisavô. Ainda chegaste a conhecê-lo, mas já não te lembras, eras bebé e ele estava já mais para lá do que para cá. A minha ira, como se compreende, crescia com esta displicência de tratamento do bisavô que me acabara de criar. A vontade de o esmurrar era cada vez maior. Ah, acrescentou, parece que ele era muito dado a espalhar os genes por aí e, constou-me, que havia sempre um óvulo ou outro receptivo ao seu espírito empreendedor. Portanto, tem cuidado, não te cruzes em alguma destas histórias com uma prima que não conheces. Bati com a porta e sentei-me a escrever. Há sábados que nascem tortos e tarde ou nunca se endireitem. O que me vale é que possuo um repositório inesgotável de aforismos ao gosto popular para acabar estas narrativas pindéricas, que o autor me obriga a contar.

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