Um céu de cinza esbranquiçada, aqui e ali entrecortada pelo
chumbo, e uma luz difusa fazem-me crer que me atrasei e abeirei-me da manhã
deste sábado já tarde. Podia encontrar múltiplas desculpas, evitar com belos
artifícios a verdade, tentar-me mesmo por uma piedosa mentira. Esta, porém,
está-me vedada pelo imperativo categórico kantiano e há que ser respeitoso com
o mestre de Konigsberg, mesmo pelos seus mais insanos devaneios. A realidade é
que fui retido por uma discussão monumental com o autor destas palavras. Eu sei
qual é o meu lugar, não passo de um mero narrador, mas os delíquios do autor
deveriam ter um limite, talvez estipulado por alguma comissão reguladora da
liberdade dos autores, coisa a que aspira qualquer narrador. A conversa começou
de forma estranha, com ele a olhar para mim com piedade. Chegou a altura de
teres uma genealogia, de teres antepassados, disse-me, não se pense que foste
criado ex nihilo. Contente com o
latinório não se conteve e rematou ex
nihilo nihil fit. Olhei-o de viés, respirei fundo e fiz um gesto que me
abstenho de descrever. Criei-te, para começar, um bisavô. Ainda chegaste a
conhecê-lo, mas já não te lembras, eras bebé e ele estava já mais para lá do
que para cá. A minha ira, como se compreende, crescia com esta displicência de
tratamento do bisavô que me acabara de criar. A vontade de o esmurrar era cada
vez maior. Ah, acrescentou, parece que ele era muito dado a espalhar os genes
por aí e, constou-me, que havia sempre um óvulo ou outro receptivo ao seu
espírito empreendedor. Portanto, tem cuidado, não te cruzes em alguma destas
histórias com uma prima que não conheces. Bati com a porta e sentei-me a
escrever. Há sábados que nascem tortos e tarde ou nunca se endireitem. O que me
vale é que possuo um repositório inesgotável de aforismos ao gosto popular para
acabar estas narrativas pindéricas, que o autor me obriga a contar.
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