Se fora apenas um problema onomástico, estávamos mais
descansados. Não é. Aquilo que era designado com condescendência por perdigoto
tornou-se nestes dias em gotícula. Perdigotos eram coisas desagradáveis, claro.
Não conheço quem queira receber perdigotos ou mesmo quem os queira lançar.
Podemos dizer que eram seres acidentais, resultantes de um impulso, de uma
emoção incontida, de um excesso de entusiasmo do orador na sua eloquência. Um
acaso fruto da distracção ou do esquecimento das regras da etiqueta. Ou de
qualquer outro motivo fútil. Nisto não se distinguem os perdigotos dos seres
humanos. Agora que o pobre e inofensivo perdigoto passou a gotícula, deu-se
nele uma terrível metamorfose, uma alteração ontológica. Mudou de natureza e a
natureza de uma gotícula pode ser letal. O perdigoto, ao renomear-se,
transformou-se num homicida em potência, senão mesmo em acto. Começar Maio com
pensamentos destes não é um bom augúrio sobre a sanidade mental de ninguém. Se
eu fosse dado à filosofia, poderia dedicar longas meditações à ontologia do
perdigoto, agora gotícula, se ele é um ser em si ou mesmo um ser para si, mas
evito estas ruas esconsas, cheias de becos, alguns sem saída, onde se pode ser
apunhalado pelas costas ou levar com uma chusma de perdigotos. Entrego-me às
grandes avenidas, cheias de claridade e distinção, por onde se passeia sem que
se pense seja no que for. Uma contrariedade, não das menores, é viver, como me
acontece, num sítio onde não existem avenidas grandes e amplas, apenas avenidas
pequenas, quase acanhadas, tão tímidas que ruborescem sempre que se lhes chama
avenida. Nelas, o pensamento é obrigado a trabalhar e depois cai na vexata quaestio do perdigoto, da
gotícula, da nuvem de gotículas que faz lembrar a nuvem electrónica, o que é
uma deriva que conduz ao alçapão da mecânica quântica, que, apesar da incerteza
de tudo, não é chamada para aqui. Hoje é sexta-feira, dia 1 de Maio. É feriado
como acontece sempre que é 1 de Maio. Desde 18 de Março que registo aqui a
data, temo que se tenha tornado um hábito e, como se sabe, o hábito é uma
segunda natureza. Também esta última frase é plágio, mas continuo a omitir os
autores que plagio.
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