O café da praceta aqui em baixo ostenta, num dos vidros, a palavra
aberto e, num biombo exterior que serve de anteparo ao vento norte, a palavra open. Tentei descobrir se utiliza outras
línguas, mas do meu posto de observação foi impossível fazê-lo. O certo é que
não montou esplanada como teria feito se este fosse um dia quente de Maio de um
outro ano. Não descortino pessoas a rondá-lo e, na verdade, não posso jurar que
esteja aberto, pois não consigo ver-lhe a porta. Talvez seja a expressão de um
desejo e não um facto. Entre ontem e hoje vi três filmes de Werner Shroeter. Em
dois deles a trama narrativa é tão ténue que nos obriga a ver os elementos que
compõem a mistificação que é o cinema. Imagens, cores, vozes, a babel das línguas,
música, luz, sombra. No entanto, o fascínio é enorme, tal como o é o provocado
por certa pintura que deixou de lado a figuração e com ela a trama narrativa
que aquieta os espíritos. Com este sol não devia entregar-me a considerações
estéticas, antes descrever a reverberação do mundo, a incidência dos raios
solares em paredes e telhados, o brilho da folhagem das árvores sob a luz, os
fungos das paredes ainda não iluminadas. Nos filmes de Shroeter, nos que vi, o sofrimento
humano tem por contraponto o sofrimento de Cristo, como se o autor quisesse
encontrar uma acomodação para a dor humana ou estivesse a apontar um dedo para
a impotência do sacrifício do filho de Deus para pôr fim aos sacrifícios
humanos. Nenhuma destas interpretações é explícita, mas são ambas possíveis e
talvez nem se excluam, mas o que sabemos nós daquilo que vemos se os nossos
olhos nos enganam e os nossos desejos toldam a razão? Hoje é domingo, dia 3 de
Maio. O estado de emergência acabou, mas isso será mais um desejo colectivo do
que um facto. Se for à rua, entretanto, hei-de confirmar se o café está aberto ou
mesmo open. Isto também é um desejo,
mas tão pouco intenso que o mais provável é esquecê-lo. Estamos já bem dentro
da casa de Maio. Quem diria?
Sem comentários:
Enviar um comentário