Hoje não tenho nada para dizer, mas isso não é diferente do
que acontece nos outros dias. Posso falar do tempo cinzento, das premonições
que indicam chuva, mas um post de uma
amiga no Facebook trouxe-me uma
longínqua recordação. A postagem tinha um vídeo. Luís Miguel Cintra a dizer um
poema de Ruy Belo. E lembrei-me do ano em que o poeta morreu e como esse ano além
dele levou também Jorge de Sena e ainda, no quadro do meu mundo de preferências,
Jacques Brel, que era também um poeta. Isso aconteceu há mais de quarenta anos,
mas julgo que nunca me habituei à ausência deles, à impossibilidade de
escreverem novos poemas ou de cantar novas canções. Uma voz em mim, talvez a
minha consciência, diz-me que devemos evitar a melancolia, fundamentalmente se
somos velhos. Acato com bons modos o conselho, procuro o último LP de Brel, Les Marquises, olho demoradamente a capa
onde um céu azul e nublado deixa escapar BREL. Ponho-o a girar e deixo-me levar
para o tempo em que tinha pouco mais de vinte anos e tudo parecia possível,
embora não o fosse. Nada de melancolias, digo-me em forma imperativa e depois
rio-me, não da melancolia mas de mim. Brel canta Mourir cela n'est rien
/ Mourir la belle affaire / Mais vieillir... ô vieillir. Hoje já
ninguém aprende francês. Cuidado com a nostalgia, rosna a voz em mim. Eu
cuido-me, prometo. A culpa de tudo é do dia ou de não ter nada para dizer, ou
do vírus ou de ser tão patético que chego a sentir dó de mim, senão desprezo.
Hoje é sexta-feira, dia 8 de Maio. Um punhal perpassa pelo ares e crava-se na
parede. Ela sangra, a brancura da cal toma colorações de carne e um fio escorre
pelo chão, faz um pequeno lago, hão-de chamar-lhe Mar Vermelho. Tenho saudades
de ir a um restaurante, o que é mais sensato do que pensar que já tive vinte
anos, o que provavelmente é mentira. Os narradores são intemporais.
Como tenho uma certa inclinação para a melancolia desde sempre, convivo bem com ela, até acho que com a idade tenho tido umas certas melhorias:) Brel não foi substituído por mais ninguém, acho que não surgiu outro como ele. Quanto a restaurantes, tenho saudades sim, nem que seja para variar da minha comida, não obstante arrepender-me muitas vezes quando vou, pela falta de qualidade. Bom domingo, oxalá veja o seu neto, nem que seja nesta nossa janela de agora...
ResponderEliminar~CC~
O Brel era tão singular que é insubstituível. Também o clima cultural em que viveu desapareceu. Hoje o modo de sentir é completamente diferente. Vão reabrir os restaurantes, mas as medidas necessárias à sua reabertura matam o espírito de um restaurante, que é sempre a aliança entre uma certa comida e um certo ambiente. Quanto ao meu neto, talvez amanhã, dia de anos do pai. Um bom domingo.
EliminarHV