De manhã, fui buscar as netas a Lisboa. Cheguei cá passava
da uma e meia da tarde e fomos almoçar ao bar do outro lado da avenida.
Contrariamente ao que acontece à noite, durante as horas de almoço é pouco
povoado. Algumas mesas ocupadas. Entre consultas a telemóveis, elas lá
escolheram o que queriam. Depois os dispositivos desapareceram à conta de
imperativo hipotético cuja finalidade é contribuir para a felicidade geral de
quem está à mesa. Perto da janela, um casal almoçava em silêncio. Envolviam ambos
a desdita numa indiferença que talvez os poupe à via-sacra do ódio. Ele
concentrava-se no que comia, manejava os talhares vagarosamente, sem conflitos
com o garfo e a faca. Um dia terá tido, aos olhos dela, a aparência de um
príncipe, mas aqueles olhos já não conseguem descortinar o principesco onde
antes o viam e perdem-se no vazio, olhando para coisa nenhuma, cismando talvez
no cabelo por arranjar ou nas horas que ainda faltam para que o tormento do
fim-de-semana termine. Se envelhecerem juntos, quando a carne e o espírito alquebrados
lhes tiverem tirado as ilusões que em segredo ainda alimentam, julgarão que
afinal o inferno intérmino terá sido um grande amor, ligando o Eros dos primeiros tempos à caridade com
que se valerão na impotência dos corpos, esquecendo todas os almoços e jantares
ensimesmados em que a obrigação ou a falta de coragem os uniu. Terminada a
refeição, as minhas netas começam com aquelas conversas que só as raparigas
entendem, usando um código composto por palavras enigmáticas, olhares
enviesados e risos sonsos. No bar, o sol dolente desenhava estranhos mundos
geométricos, o casal trocava as primeiras palavras, evitando olhar-se, e os
empregados iam e vinham, sem grande azáfama, sem inquietações metafísicas, sem considerações
condescendentes sobre a clientela. Tenho a impressão que já ninguém usa esta
palavra, mas não tenho a certeza. Daqui a pouco chegará o outro neto. Depois
penso na injustiça do mundo, em que uns oram por um sabat eterno, enquanto outros rezam para que ele corra a grande
velocidade. Não há pior armadilha que a do desejo.
sábado, 15 de fevereiro de 2020
sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020
S. Valentim
Por vezes sou brindado por certas iluminações. Não se pense
que se trata de ficar exposto à acção de um qualquer holofote. Podia ser, mas
não. É aquilo a que os anglo-saxónicos chamam insight. Não sei como, mas acontece-me, muitas vezes depois de uma
refeição, ter um insight. Há quem
sugira que o álcool pode ajudar. Não o creio e devemos evitar dar ouvidos à
ironia de vozes que não sabem calar-se. Ao sentar-me passei os olhos pela
imprensa, observei o estado do mundo e uma luz acendeu-se em mim. A vida em
sociedade é uma enorme manta de irracionalidades. O fundamental é que alguém
saiba dirigi-las de maneira a que se anulem entre si. Julgo que seria a este
trabalho de maestro e tecelão que se dava o nome arte política. Não é um
brilhante insight, mas como se sabe
também as lâmpadas têm potências diferentes, iluminando umas mais e outras
menos. A minha serve apenas para luz de presença. Respiro fundo, depois faço
uma longa expiração, enquanto tapo os ouvidos. O parque infantil foi invadido
por bandos de crianças com as suas vozes de estilete. Faltam ainda algumas
horas para que chegue o fim-de-semana. A pátria dorme uma sesta desconsolada,
enquanto os seus filhos dilectos comemoram o dia de S. Valentim, essa
antiquíssima tradição que uniu os corações de Pedro e Inês e pela qual D.
Sebastião se perdeu em Alcácer-Quibir. Se não acreditam, não esperem de mim a
luz que vos convença da verdade. O que me aborrece mesmo é não poder ir jantar
fora sossegado, tão ocupados estão os restaurantes com os Pedros e as Ineses,
elas tão puras e castas e eles tão firmes e pétreos.
quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020
Do cantabile ao adagio
Olho com preocupação para o mostrador do relógio. As horas foram
tomadas por tal galope que tenho dificuldade em acompanhar o ritmo com que a noite
se apossa desta parte do mundo. Instaladas as trevas, estas oferecem uma ilusão
de serenidade. Então, as pessoas descansam e deixam que as horas se entranhem
na pele e lhes façam nascer rugas naqueles lugares onde menos gostariam de as
ver germinar. A vida tem essa natureza, um prazer indisfarçável em obstar ao que
gostamos, lembrar-nos da nossa finitude. Tenho dias em que a inclinação para
melancolia metafísica é maior que noutros. Nunca descobri a razão, mas alguma
há-de haver. Tenho um relatório para ler e introduzir eventuais emendas e
sinto-me feliz por contribuir assim para a salvação do mundo. Constatei há
muito que a inutilidade é receitada de forma imperativa como um grande antídoto
para os males que corroem a realidade. O pior é que nem como analgésico
funciona. Os males vão crescendo e lançando metástases pelos tecidos. Oiço uma
sonata de Schubert, o molto moderato e cantabile
do andamento faz-me esquecer a metafísica e os males do mundo sem remédio.
Deixo-me envolver na música, o coração apazigua-se, a mente serena-se e a noite
abranda o cavalgar, caminha num trote sem pretensão. Chegará a passo à casa da
madrugada. Também eu caminho do cantabile
para o adagio. Ah, o relatório, digo
e bocejo.
quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020
Não haveria paciência
Na praceta, extraviado da escola ou do centro de línguas, um grupo de adolescentes urra. O desarranjo hormonal manifesta-se das formas mais inusitadas. As hormonas compor-se-ão lá mais para diante e os proprietários haverão de se comportar como se fossem normais. É preciso não deixar cair por terra o princípio de esperança. Tenho de limpar as lentes dos óculos, pois a realidade parece-me turva. Lá fora, o dia está cinzento e isto fez-me lembrar os tempos em que era existencialista, lia Sartre e Camus, e cultuava o Vergílio Ferreira como existencialista doméstico. Tudo era então náusea e absurdo. O mundo se não era feito de carvão bem negro, era-o de uma cinza escura, pegajosa e quase nojenta. Descobri mais tarde, sem alvoroço, que o existencialismo não era uma doença crónica e que se podia tratar, apesar de deixar algumas sequelas. Se fosse linguista e dado a reformador ortográfico, introduziria de imediato o trema e ficaria com seqüelas existenciais. Aliás, também ressuscitava todas as consoantes mudas que têm vindo a ser decapitadas desde o infausto ano de 1911. O destino, todavia, foi avisado e não me fadou para andar por aí a endireitar os tortos ortográficos. Talvez por isso tenha caído no caldeirão existencialista. Nunca se sabe muito bem por que razão acontece aquilo que acontece. Consulto a agenda, franzo o sobrolho, arrumo o pano de limpar os óculos no estojo e penso que talvez haja alguma razão em quem diz que há em mim uma certa propensão para o autismo. Mastigo dois comprimidos Aero-Om. Se não me curam da terrível propensão, talvez impeçam um recidiva existencialista. Não haveria paciência.
terça-feira, 11 de fevereiro de 2020
Wilhelm Reich fora de horas
Pertenço a uma geração que nos verdes anos leu coisas inverosímeis. Ao escrever esta frase, como narrador obediente que me prezo de ser, não deixei de torcer o nariz, coisa que foi de imediato sentida pelo autor. Qual o problema? Olhei-o e a medo disse-lhe que havia vários problemas. Verdes anos e coisas inverosímeis estão longe de ser noções claramente definidas. Depois, acrescentei, eu não tive verdes anos nem li coisas inverosímeis. Sou apenas um ser virtual, nem sequer sou um ser de papel, como eram os narradores de antigamente. O autor olhou-me e perguntou-me se na juventude não tinha lido Wilhelm Reich. Por Deus, disse-lhe eu. Não, não li, nem Reich nem o que quer que seja. Eu não leio. Um narrador não é um leitor. Pois, disse-me ele já irritado, eu li. E não sei o que é mais inverosímil se ter lido Reich ou ter tido verdes anos. Encolhi os ombros, sem paciência para as revisões existenciais a que o autor se entrega. O dia está quente. Fevereiro parece querer arrancar-se à lânguida ciclicidade do ano e correr em direcção à Primavera. Não sei se há alguma ligação entre as memórias reichianas do autor e a anunciação da Primavera. Se há, o melhor é que ele olhe para idade que tem e perceba que os combates da juventude pouco têm a ver com a calma sensatez da idade madura. Excessivamente madura, diga-se. Na escola do lado, um vulto pisa lentamente a erva, senta-se debaixo de uma oliveira e recosta-se. Aposto que nunca ouviu falar em Wilhelm Reich e que o mais certo é que nunca há-de ouvir. Dele será o reino dos Céus.
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020
A poética das análises laboratoriais
Recebido por correio electrónico, imprimo o relatório das análises que mais logo terei de mostrar ao médico. Está dividido por secções cujos nomes lembram a designação de disciplinas de um curso superior. Hematologia, Bioquímica I, Bioquímica II. Será que também aqui haverá precedências? Quem chumbar na Bioquímica I poderá fazer a Bioquímica II ou terá de repetir a I? Outra secção, porém, tem um nome menos amigável, Marcadores Tumorais. Esta não se parece com uma cadeira universitária, mas com um quadro onde se vai inscrevendo a evolução de um jogo de bilhar às três tabelas. Olho com condescendência para os resultados, verifico se eles se integram nos valores de referência. Por fim, tento descortinar o valor literário da informação. Vejo por ali vocábulos extraordinários. Eritrócitos, hemoglobina, hematócrito, leucócitos, eosinófilos, basófilos, linfócitos e monócitos. Isto para não falar da glicémia, da ureia, do colesterol e dos triglicéridos. São verdadeiras famílias, com as suas sagas, os seus amores e ódios, triunfos e desditas. O nosso organismo está cheio de histórias com personagens que nem sonhamos. Não admira a quantidade de escritores médicos. Têm a mente povoada de personagens com nomes destes, cuja acção determina a vida ou a morte do hospedeiro, a glória ou a tragédia do herói. A tarde nasceu enfastiada e o fastio que dela se desprende toma conta da atmosfera, envolve os transeuntes na avenida, repousa-se nos ramos do arvoredo. Aqui perto, caminham dois eritrócitos e três leucócitos. Falam em surdina, fazem planos, traçam mapas onde se inscreve a vida e a morte. Param perto de mim e um deles, o leucócito mais apessoado, pergunta-me se conheço a transaminase glutâmica oxalacética. Embaraçado, respondo que não, embora conheça a transaminase glutâmica piruvica, que deve ser prima. Se quiser falar com ela, não tem nada que enganar. Faz a rotunda, sai na terceira saída, é logo o primeiro prédio. No segundo direito.
domingo, 9 de fevereiro de 2020
O espírito aos domingos
Lá fora está um dia sombrio. A luz da manhã coada pela
muralha de nuvens saltita sobre os telhados como se tivesse perdido a força e
só a muito custo se entregasse ao jogo fútil de nos iluminar. Oiço as vozes de
quem está na esplanada do café da praceta, mas também elas não passam de
sombras, ondas murmuradoras que se elevam e, desarticuladas e sem sentido, me
chegam aos ouvidos. Devia fechar as janelas, mas preciso de ar. À minha frente
repousa um livro que tem por subtítulo Um
diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. Não se trata do nosso
tempo mas de um tempo que passou e que nunca foi o meu. Ao olhar a falta de
vigor da luz ocorre-me que todas as épocas são tempos de doença espiritual. O
espírito deverá sofrer de uma patologia crónica, da qual não se liberta, mas a
cujas mãos também não sucumbe. Uma voz mais aguda fez-me ter outro pensamento
sobre o espírito. O seu encanto residiria nesse seu estado de doente, sempre a
necessitar de cuidados médicos, mas raramente a ser internado num hospital. Aos
domingos deveria coibir-me deste tipo de pensamentos. Lembrei-me dos domingos
da minha infância e adolescência. A missa, o almoço em família e,
eventualmente, a assistência ao futebol, no pequeno campo pelado da vila, ou a
ida ao cinema, numa sala espantosa, que era dos poucos sinais de modernidade
que então havia por aqui. Tudo tinha um ritmo que simulava a perfeição, mas na
verdade era sujeição ao ethos provinciano,
onde se deveria crescer para a pequenez, perder-se no apoucamento, mergulhar na
menoridade eterna. Há quem tenha saudades de tudo isso e cultive a memória,
podando-a para eliminar, na narrativa, os elementos dissonantes. A luz
tornou-se mais vívida, agora que nos preparamos para entrar na tarde. Fechei as
janelas e o silêncio envolve-me. Não vou à missa, não vou ao futebol, não vou
ao cinema e essa família que almoçava junta aos domingos foi-se desfazendo. Os
homens aspiram à eternidade, mas o que lhes calha sempre em sorte é o tempo.
sábado, 8 de fevereiro de 2020
Poupar os pormenores
Hoje ao abrir as janelas dei-me conta de que no friso das
orquídeas persiste florida uma quase há um ano. Comprei-a em Março passado por
razões que não vêm ao caso e já estava florida. Enquanto as outras foram
perdendo as flores, ela atravessou impante a Primavera, fingiu que o Verão era
coisa de somenos por aqui. Quando o Outono deu lugar ao Inverno, a queda de
umas flores foi compensada pelo rebentamento de outras. E ali está ela pronta
para chegar a Março. Ocorreu-me que tivesse sido enganado na florista e que não
seja uma orquídea. Na realidade, não sou um Nero Wolfe. A minha vida não é
desvendar crimes sentado à secretária e cultivar orquídeas. Também não tenho um
cozinheiro à disposição e, por isso, já fui consultar a ementa de uma dessas
casas que têm por função transformar pessoas como eu em cozinheiros improváveis.
Se me perguntarem de quem é a responsabilidade do almoço, posso responder é minha.
Evito os pormenores. A sabedoria da vida reside toda aí, no evitar os
pormenores. Quanto mais pormenores se sabem, maior é a descrença na humanidade.
Uma pessoa sensata tem por norma o imperativo categórico poupem-me os
pormenores! Um pormenor delicioso é narrado em Walden Two, o romance de B. F. Skinner, o behaviorista. Frazier,
enquanto aluno de licenciatura pegou num artigo do reitor da universidade, para
usar um título à nossa medida, publicado numa revista, assinalou-lhe a vermelho
os erros de ortografia, compôs-lhe a sintaxe e com recurso à simbolização
lógica formalizou os argumentos, mostrando a sua não validade. Feito isto, enviou
o artigo ao seu autor com a classificação de C. E qual foi a resposta do magnífico
reitor, pergunta quem tenha a desventura de estar ler este texto. Não sei. B.
F. Skinner, no romance, poupou-me o pormenor.
sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020
Acasos
O acaso tem um papel nas nossas vidas muito maior do que
supomos. Mal escrevi a frase vi a que enredos ela poderia conduzir-me e hoje
não estou para ardis nem para ciladas. Foi o acaso que me fez escutar uma canção
que ouvia muito há mais de quarenta e cinco anos. Um poema de Rosalía de Castro
musicado e cantado por um dos trovadores em voga na época. É uma bela canção,
de uma tristeza comovente. Depois, pensei que nessa altura, com a idade que
tinha, não deveria ouvir música daquela. A canção acabou, Rosalía voltou para a
sua Galiza, onde nasceu sem que do registo de baptismo constasse o nome dos
pais. Lembrei-me então que hoje, ao atravessar a cidade e enquanto me preparava
para enfrentar as Erínias, ouvi na Antena 2 que era dia de aniversário de
Juliette Greco. De imediato procurei uma das canções dela de que mais gosto, Déshabillez Moi (honni soit qui mal y pense) e achei que a tarde poderia ter acabado
pior. Vou passar as próximas horas a ouvir cançonetas que não lembra ao diabo,
enquanto a noite vai tricotando a sua agonia, à espera de um relâmpago que a
salve de se precipitar na maresia da madrugada. Rosalía não chegou aos
cinquenta anos, mas a Greco fez hoje noventa e três. Não sei se nisto haverá
alguma mensagem cifrada ou se tudo não passa de um acaso.
quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020
Pensamentos alados
Leio um poema e nele vejo os preconceitos da autora, das mais importantes, o seu universo de anuências e recusas em forma de verso e sinto-me infeliz, pois, na minha cegueira poética, a procura da linguagem primordial exige que o poeta comece a despir-se dos conceitos e, de seguida, dos preconceitos. Esta frase já vai demasiado longa, reparo agora. Um anjo, mas não o que me guarda das tentações, interpela-me e, em modo de sarcasmo, pergunta-me se a poesia não tem direito a dizer coisas, se ela é apenas como o chilrear dos pássaros, uma ondulação sonora com requebros rítmicos. Vi logo que era um anjo comprometido socialmente e desejoso de transmitir uma mensagem. Depois, concedi que é assim mesmo que deve ser. Os anjos são mensageiros. Foi esse o papel que lhes foi destinado e, por isso, foram colocados abaixo dos homens e, acrescento eu, dos pássaros. Ando a ficar preocupado comigo. Parece que os meus cuidados existenciais se dividem entre a angelologia e a ornitologia. Seres alados, digamos assim, ocupam-me a mente e isso pode significar que também a habita o orgulhoso desejo de voar. Depois, estremeci só de pensar que poderia ser um Ícaro e que acabaria por ter o mar Egeu à minha espera. O mais sensato é ficar sentado e deixar a quem tem asas a tarefa de voltear pelos céus. O anjo com a sua conversa distraiu-me da crítica literária e isso não foi mau. De uma das janelas, sobrepondo-se a um bosque de cedros, ergue-se o hospital. As paredes brancas estão cinzentas. Batalhões de fungos invadiram-nas e o que era alvo e brilhava ao sol é agora uma cortina de cinza alquebrada pela tristeza. Devia parar com estas tiradas de um romantismo mais que serôdio. Não tarda e terei de almoçar. Espera-me uma tarde tão longa que entra pela noite fora.
quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020
Bach e Deus
Estava a ouvir a suite francesa nº 2 de Bach e, ainda a peça
fluía pela Allemande, já o espírito
se distraía perdido na pátria das coisas inúteis. Os pensamentos talvez sejam
obra do acaso, tão inopinadamente irrompem para, como um exército inimigo, invadirem
o território da atenção. Sem saber porquê, o argumento modal da existência de
Deus requereu a minha atenção. Estranhei. Fiz um esforço para deixar de lado
necessidades e possibilidades e acompanhar a música. O argumento não se calava.
Seria a sua natureza estética, a beleza que há na simplicidade, que disputava a
atenção, ocorreu-me. Fechei os olhos e deixei a música deslizar por mim e
disse-me se é para aceitar uma prova da existência de Deus, o melhor é crer que
a música de Bach é mais convincente que um qualquer argumento a priori. Depois ri-me. Pensamentos
destes depois de almoço não se recomendam a ninguém. Levantei-me e olhei pela
janela. Bach continuava a sair pelas velhas colunas e na rua o esbranquiçado
das nuvens mesclava-se com o azul do céu. Uma nuvem mais densa escondia Deus
que dormia embalado pela música que eu ouvia. Talvez os homens existam para que
Deus possa através deles ouvir Bach. Mais que uma possibilidade, os homens
seriam uma necessidade divina. Retorno à minha agenda onde colecciono, como se fosse num herbário, os recados que dou a mim mesmo, e escrevo: nunca ouvir Bach
na digestão e evitar argumentos ontológicos quando se ouve música.
terça-feira, 4 de fevereiro de 2020
O canto dos pássaros
Os pássaros meus vizinhos poisam no parapeito de uma das janelas e conversam longamente. Não os vejo, mas oiço-os. Não há neles irritação e o diálogo flui ligeiro, com pausas e troca ordenada de locutores. Será o mundo das aves mais ordenado que o dos homens, foi a pergunta que se formou em mim. Soubesse eu música, tivesse talento para compositor e faria como Olivier Messiaen. Comporia um catálogo dos pássaros, para que na voz do piano se escutasse o canto de uma ave. O desejo maior, porém, seria de entender a sua fala, o vocabulário, a sintaxe os artifícios semânticos. Haverá por ali belas metáforas, metonímias inesperadas e chego a desconfiar que não são parcos no eufemismo. Na prosódia, não se furtam à anáfora e são cultores assíduos da assonância e da aliteração. Estes devaneios distraem-me e estou constantemente a trocar letras no teclado. Fico a olhar para os erros. Umas vezes, a palavra assim inventada quase merece vir à existência. Outras, observo o teclado para tentar perceber que conexão neuronal se desviou da regularidade e me tentou arrastar para o caos. Raramente fico elucidado e desisto. Da rua, vêm os gritos doridos de uma adolescência que não aprendeu a domar-se. Também um aspirador regurgita das entranhas um zunido infernal. Temos sempre um pequeno inferno à nossa mão. Agora silenciou-se. Talvez o canto dos pássaros volte e eu compreenda pela primeira vez uma frase.
segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020
Meditações de uma alma pura
Ocupam-me os dias coisas inúteis cuja finalidade é melhorar
o mundo e as pessoas, mas que, por um capricho da natureza que escapa aos
homens, têm o poder desmedido de tornar o mundo pior e as pessoas mais
incapazes de lidar com ele. Abstenho-me de entrar pelos ínvios caminhos da
política, os quais me estão proibidos, mas agradeço aos deuses a sua sabedoria,
pois sempre que querem melhorar os homens, estes pioram, sempre que querem curar
as coisas, estas adoecem. Se os deuses não fossem tão inteligentes talvez se deixassem
dos seus infinitos planos de melhoria. Corriam, porém, o grave risco de o mundo
e as gentes se tornarem um pouco melhores. O que seria desagradável. Com esta
conversa toda, deve-me ter acontecido alguma coisa. Não é verdade. Há dias que
qualquer um, mesmo um mero narrador incorpóreo, alma pura, tem de desabafar
sobre o ínvio curso das coisas. É um costume antigo e venerando e, por isso
mesmo, digno de apreço e reconhecimento como verdade. Lá fora, o sol ainda deve
estar quente. Tinha pensado fazer uma caminhada após o almoço para digerir as
maleitas da existência, mas temi que, como alma pura, não suportasse o calor.
Se tivesse um boné para a cobrir, ainda me arriscava. Não posso esquecer-me de
apontar na lista de compras um boné. Estão de volta os pássaros que o ano
passado me acompanharam os dias. Cantam à minha janela como se estivessem num
serão para trabalhadores promovido pela Fundação Nacional para Alegria no
Trabalho. Mais dia menos dias, só quem tiver mais de setenta anos percebe alusões
como esta. A minha alma sem corpo não está a funcionar lá muito bem. Talvez a
devesse descontinuar e criar um modelo novo.
domingo, 2 de fevereiro de 2020
Contra o coração
Depois de tomar o pequeno-almoço fui acometido por um súbito estado meditativo. Isto não traz nada de bom, pensei. Um sol esplêndido cai sobre as ruas, as pessoas aspiram os primeiros aromas da Primavera, a natureza não desdenha de começar a despir os andrajos invernosos e de procurar nas lojas da moda alguma roupa para a estação que há-de vir. Deveria ir celebrar a vitória da luz, mas lembrei-me de imediato que não tardará muito e o Estio entrará de rompante pelos corpos, inundando-os de suor, roubando-lhes energia, fazendo-os sonhar com as ondas do oceano. Sentei-me e fui arrastado para o livro do deve e haver da vida. Diante de mim está um telemóvel novo, comprado há três semanas, mas que continua intocado como uma virgem. Ainda não tive coragem para ler as instruções. Sempre desconfiei de instruções e ainda mais de aparelhos que precisam de instruções. Estou a afastar-me do assunto. O balanço é pior do estava à espera. Uma vida erguida entre duas falácias. Quando se é novo, o coração anseia a novidade porque é novidade. Quando se é velho, o coração inconstante cultiva a tradição porque é tradição. Ocorre-me, então, que o coração deveria ocupar-se apenas em bombear com presteza o sangue e deixar-se de considerações para as quais não lhe foi concedida competência. O mal do coração é querer meter-se onde não é chamado, emitir opiniões, dar conselhos que não passam de palpites enviesados sobre o que deve ser. Se a humanidade não tivesse coração, melhor andaria o mundo. O sol com o seu fato domingueiro de provinciano chama-me. Vou? Não vou?
sábado, 1 de fevereiro de 2020
Um problema de família
Um céu de cinza esbranquiçada, aqui e ali entrecortada pelo
chumbo, e uma luz difusa fazem-me crer que me atrasei e abeirei-me da manhã
deste sábado já tarde. Podia encontrar múltiplas desculpas, evitar com belos
artifícios a verdade, tentar-me mesmo por uma piedosa mentira. Esta, porém,
está-me vedada pelo imperativo categórico kantiano e há que ser respeitoso com
o mestre de Konigsberg, mesmo pelos seus mais insanos devaneios. A realidade é
que fui retido por uma discussão monumental com o autor destas palavras. Eu sei
qual é o meu lugar, não passo de um mero narrador, mas os delíquios do autor
deveriam ter um limite, talvez estipulado por alguma comissão reguladora da
liberdade dos autores, coisa a que aspira qualquer narrador. A conversa começou
de forma estranha, com ele a olhar para mim com piedade. Chegou a altura de
teres uma genealogia, de teres antepassados, disse-me, não se pense que foste
criado ex nihilo. Contente com o
latinório não se conteve e rematou ex
nihilo nihil fit. Olhei-o de viés, respirei fundo e fiz um gesto que me
abstenho de descrever. Criei-te, para começar, um bisavô. Ainda chegaste a
conhecê-lo, mas já não te lembras, eras bebé e ele estava já mais para lá do
que para cá. A minha ira, como se compreende, crescia com esta displicência de
tratamento do bisavô que me acabara de criar. A vontade de o esmurrar era cada
vez maior. Ah, acrescentou, parece que ele era muito dado a espalhar os genes
por aí e, constou-me, que havia sempre um óvulo ou outro receptivo ao seu
espírito empreendedor. Portanto, tem cuidado, não te cruzes em alguma destas
histórias com uma prima que não conheces. Bati com a porta e sentei-me a
escrever. Há sábados que nascem tortos e tarde ou nunca se endireitem. O que me
vale é que possuo um repositório inesgotável de aforismos ao gosto popular para
acabar estas narrativas pindéricas, que o autor me obriga a contar.
sexta-feira, 31 de janeiro de 2020
Falar por enigmas
Se fosse uma pessoa saudável poderia dedicar o tempo a
meditar no paradoxo de Epiménides de Creta. Consta que acreditava num Deus
único e desconhecido e, por isso mesmo, salvou Atenas de uma praga
renitente, a que deus algum conhecido conseguia pôr fim. Como não sou assim tão
saudável, não vou pensar na relação entre os cretenses e a mentira. Podia
também passar a noite a interpretar uma certa história dos Inuit que descobri hoje. Deixo, porém, Epiménides e os cretenses em
Creta e os Inuit no Alasca e entro no
fim-de-semana pela porta do desassossego. Mal me aproximei dela, abriu-se não
como quem convida um estranho para entrar, mas como quem dá ordens que ninguém
ousa desobedecer. Folheio as anotações com os afazeres e calculo as horas que
tenho para enfrentar a realidade. Há tempos li já não sei onde que os servos na
Idade Média trabalhavam bem menos que os homens livres de hoje em dia. Se fosse
dado à correcção do mundo, faria aqui uma peroração sobre a glória vã dos
homens modernos, mas deixo a aplicação de correctivos para quem Deus tenha
designado com o indicador da sua mão esquerda. Disseram-me que estava com um ar
cansado. Imaginei que fosse um eufemismo para sugerir que estou velho. Sempre era
melhor estar cansado, pois poderia descansar. Há coisas irremediáveis e
envelhecer é uma delas, o que não deixa de ser um acto de justiça cósmica. É
possível que essa justiça seja o decreto do Deus ignoto de Epiménides e com
isso tenha salvado Atenas da terrível praga. Ou será que o cretense era, na verdade,
um Inuit perdido no horror de um
pequeno barco à deriva? Quando começo a falar por enigmas o melhor é calar-me.
quinta-feira, 30 de janeiro de 2020
O pobre destino da caligrafia
Atravessei a cidade já noite fechada. Uma chuva insidiosa
descia mansamente do céu e poisava leve e hesitante no pára-brisas do carro. As
escovas varriam sem pressa a superfície vidrada, desenhavam um semicírculo,
desfaziam-no de seguida e descansavam tomadas por uma sonolência inexplicável,
enquanto pequenas gotas de água embatiam no vidro e ali ficavam até que o
acordar das escovas as varresse para lado nenhum. Ao chegar a casa tive de ler
um papel que tinha escrito de manhã. Olhei para a garatuja e fiquei a meditar
no destino das palavras. Como o dos homens, também o dos vocábulos está longe
de ser glorioso. Caligrafia começou por ser a bela escrita dos gregos, depois a
arte de bem escrever à mão e agora designa o modo como cada um manuscreve, numa
democratização tão alargada que até eu possuo uma. Não compreendo como é que a
caligrafia não se revolta e restringe drasticamente o seu campo semântico,
expulsando de lá tudo o que seja rabisco ou gatafunho, letra torta ou enviesada.
Lá decifrei o escrito e segui as instruções que dei a mim próprio. Depois,
sentei-me diante do computador e dei uma vista de olhos pelo facebook e logo avistei alguém a pedir
prisão perpétua para uma qualquer malfeitoria, outro a altear a voz em nome dos
contribuintes, mais alguém a vituperar já não sei bem o quê ou a quem. Se toda
esta gente indignada fosse varrida pelas escovas do pára-brisas, pensei, talvez
a caligrafia tivesse um destino mais de acordo com a sua glória clássica,
libertando-se da escrita de pessoas como eu, pouco predisposto à arte e às letras
belas. A noite dança sobre os telhados desta quinta-feira, envolta nos acordes
do silêncio. Há coisas que nunca deveria escrever, mas foge-me o pé para a
chinela.
quarta-feira, 29 de janeiro de 2020
Amor máquina
Não tenho personagens, sou um narrador estéril, incapaz de
gerar vida. Por vezes, estes textos são atravessados por alguém, mas, como um
cometa, logo se afunda na escuridão do universo. O meu sonho era o de uma
literatura sem personagens, sem eus e as suas idiossincrasias. Narrar o
ronronar do mundo, o canto dos pássaros, o ronco da terra ao tremer, o rumor da
rosa ao abrir. Isto para parecer poético e que sei falar de rosas, uma óbvia
mentira. Logo me acusarão de não ser um humanista, de não amar a humanidade e
contribuir para a sua libertação. Esta conversa, em abono da verdade, faz-me
bocejar. Hoje é quarta-feira e não tarda o grupo de baile da escola aqui ao
lado há-de começar o seu ensaio. Poderia fazer deles personagens destes textos,
mas prefiro que não percam o seu estatuto de cometas. Desconfio que o
isolamento do prédio poderia ser melhorado. Oiço o bater de uns saltos que não
escondem o frenesim que os habita. Fico sempre confuso se este toc-toc-toc
pretende imitar o desfilar das manequins na passerelle ou se é um eco marcial
de botas cardadas. Hoje ligaram-me a uma pequena máquina que hei-de transportar
durante vinte e quatro horas. Sempre que me ligam a este dispositivo fico
grato, pois nunca ninguém se disporia a dar atenção ao meu coração por tanto
tempo. A menina, por certo uma técnica licenciada e mestrada, desconfiou de
qualquer coisa, pois pôs-se a sondar-me. Então, está a fazer isto porquê?
Perante o olhar atónito de quem vê a sua vida íntima invadida, retrocedeu, fez
um sorriso forçado e acrescentou é um exame de rotina. Anuí, para que a devassa
acabasse ali. Há que preservar a intimidade. Se eu não fosse um narrador
estéril, aproveitaria a menina para personagem. Ela sempre haveria de me fazer
perguntas embaraçosas e eu olhá-la-ia com condescendência, desviando a conversa.
Não o sou e prefiro o espiar silencioso da maquineta que, com os seus fios
colados a eléctrodos, me envolve num amplexo onde descubro todo o amor do
mundo.
terça-feira, 28 de janeiro de 2020
Um estóico falhado
Cheguei à tarde desta terça-feira irritado e irritado com a
minha irritação. Deveria ter entrado no clube dos estóicos e entregar-me à apatheia. Olhar com indiferença olímpica
os acontecimentos que, por vezes, me acontecem e deixar o mundo correr para a
foz, sem julgar ter o dever de lançar bóias aos náufragos que encontro. As Parcas, porém, não me quiseram ver
perdido entre gente que se entregava a tal filosofar, arrancaram-me da sombra
do pórtico pintado e, no seu sábio julgamento, determinaram que no meu lote também
cabe a irritação. Quis enganá-las e a conselho médico comecei a tomar um
betabloqueante. Pensei, na minha ingenuidade, ou estupidez, conforme as
opiniões, que tinha, ainda em vida, entrado no paraíso pela porta da química.
Não havia irritação que me chegasse. Nestas coisas, a história tem sempre
desenvolvimentos que estão ocultos aos protagonistas. Os betabloqueantes
deixaram de betabloquear as irritações e o paraíso foi dando lugar ao
purgatório e, agora, ao inferno. Eu sei o que o leitor está a pensar. O inferno
são os outros. É verdade, se crermos nas homilias de Sartre. Eu não tomo
partido sobre elas. Oiço o ruído irritante de um aspirador e penso comigo que
deveria falar com essas Parcas ou Moiras, caso esteja mais inclinado para
o grego do que para o latim. Depois, achei melhor não as irritar e deixá-las
longe de mim. Esperam-me horas de grandes inutilidades e isso realiza-me
profundamente. Fosse eu um estóico e tudo me seria indiferente. Bastava
adequar-me à natureza. Estaria irritado, mas feliz.
segunda-feira, 27 de janeiro de 2020
Ficções e fingimentos
Se tivesse engenho para a poesia épica, hoje escreveria sobre a epopeia da caldeira aqui de casa. Assaltou-me, porém, uma dúvida. Tendo em conta que ela decidiu fazer de morta, talvez o talento requerido fosse o do poeta trágico. Uma tragédia o não haver aquecimento nem água quente. A expectativa é que cheguem os técnicos e façam manobras de reanimação e ela ressuscite, sem que tenha de ir para o hospital ou para a morgue. A tarde ergueu sobre si um véu de chuva. Cobre-se com ele e caminha como uma noiva para o altar. Como ela, também a tarde desconhece que é ali, no altar, que se cumpre o seu destino de vítima sacrificial. Ainda me acusarão de querer destruir o instituto do casamento. Longe de mim tal ideia, chego mesmo a ter grande admiração por quem se casa quatro e cinco vezes. A persistência é uma virtude louvável e digna dos maiores encómios. Os técnicos já deveriam ter chegado. Daqui a pouco espera-me uma função daquelas que pela sua profunda inutilidade se tornam absolutamente imprescindíveis. E são coisas destas que me fazem amar esta pátria. Somos especialistas em ficções. Fingimos que gostamos, fingimos que pensamos, fingimos que sabemos, fingimos que fazemos. É um dom que nasce da combinação genética com a educação que o meio promove. Se os poetas são uns fingidores, são-no porque são portugueses. O que arrasta a extraordinária conclusão de que só existem poetas portugueses. Os outros ou não são poetas ou se o são, são portugueses mas não o sabem. O que faz a falta de água quente.
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