sábado, 15 de fevereiro de 2020

Deambulações num sabat de província

De manhã, fui buscar as netas a Lisboa. Cheguei cá passava da uma e meia da tarde e fomos almoçar ao bar do outro lado da avenida. Contrariamente ao que acontece à noite, durante as horas de almoço é pouco povoado. Algumas mesas ocupadas. Entre consultas a telemóveis, elas lá escolheram o que queriam. Depois os dispositivos desapareceram à conta de imperativo hipotético cuja finalidade é contribuir para a felicidade geral de quem está à mesa. Perto da janela, um casal almoçava em silêncio. Envolviam ambos a desdita numa indiferença que talvez os poupe à via-sacra do ódio. Ele concentrava-se no que comia, manejava os talhares vagarosamente, sem conflitos com o garfo e a faca. Um dia terá tido, aos olhos dela, a aparência de um príncipe, mas aqueles olhos já não conseguem descortinar o principesco onde antes o viam e perdem-se no vazio, olhando para coisa nenhuma, cismando talvez no cabelo por arranjar ou nas horas que ainda faltam para que o tormento do fim-de-semana termine. Se envelhecerem juntos, quando a carne e o espírito alquebrados lhes tiverem tirado as ilusões que em segredo ainda alimentam, julgarão que afinal o inferno intérmino terá sido um grande amor, ligando o Eros dos primeiros tempos à caridade com que se valerão na impotência dos corpos, esquecendo todas os almoços e jantares ensimesmados em que a obrigação ou a falta de coragem os uniu. Terminada a refeição, as minhas netas começam com aquelas conversas que só as raparigas entendem, usando um código composto por palavras enigmáticas, olhares enviesados e risos sonsos. No bar, o sol dolente desenhava estranhos mundos geométricos, o casal trocava as primeiras palavras, evitando olhar-se, e os empregados iam e vinham, sem grande azáfama, sem inquietações metafísicas, sem considerações condescendentes sobre a clientela. Tenho a impressão que já ninguém usa esta palavra, mas não tenho a certeza. Daqui a pouco chegará o outro neto. Depois penso na injustiça do mundo, em que uns oram por um sabat eterno, enquanto outros rezam para que ele corra a grande velocidade. Não há pior armadilha que a do desejo.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

S. Valentim

Por vezes sou brindado por certas iluminações. Não se pense que se trata de ficar exposto à acção de um qualquer holofote. Podia ser, mas não. É aquilo a que os anglo-saxónicos chamam insight. Não sei como, mas acontece-me, muitas vezes depois de uma refeição, ter um insight. Há quem sugira que o álcool pode ajudar. Não o creio e devemos evitar dar ouvidos à ironia de vozes que não sabem calar-se. Ao sentar-me passei os olhos pela imprensa, observei o estado do mundo e uma luz acendeu-se em mim. A vida em sociedade é uma enorme manta de irracionalidades. O fundamental é que alguém saiba dirigi-las de maneira a que se anulem entre si. Julgo que seria a este trabalho de maestro e tecelão que se dava o nome arte política. Não é um brilhante insight, mas como se sabe também as lâmpadas têm potências diferentes, iluminando umas mais e outras menos. A minha serve apenas para luz de presença. Respiro fundo, depois faço uma longa expiração, enquanto tapo os ouvidos. O parque infantil foi invadido por bandos de crianças com as suas vozes de estilete. Faltam ainda algumas horas para que chegue o fim-de-semana. A pátria dorme uma sesta desconsolada, enquanto os seus filhos dilectos comemoram o dia de S. Valentim, essa antiquíssima tradição que uniu os corações de Pedro e Inês e pela qual D. Sebastião se perdeu em Alcácer-Quibir. Se não acreditam, não esperem de mim a luz que vos convença da verdade. O que me aborrece mesmo é não poder ir jantar fora sossegado, tão ocupados estão os restaurantes com os Pedros e as Ineses, elas tão puras e castas e eles tão firmes e pétreos.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Do cantabile ao adagio

Olho com preocupação para o mostrador do relógio. As horas foram tomadas por tal galope que tenho dificuldade em acompanhar o ritmo com que a noite se apossa desta parte do mundo. Instaladas as trevas, estas oferecem uma ilusão de serenidade. Então, as pessoas descansam e deixam que as horas se entranhem na pele e lhes façam nascer rugas naqueles lugares onde menos gostariam de as ver germinar. A vida tem essa natureza, um prazer indisfarçável em obstar ao que gostamos, lembrar-nos da nossa finitude. Tenho dias em que a inclinação para melancolia metafísica é maior que noutros. Nunca descobri a razão, mas alguma há-de haver. Tenho um relatório para ler e introduzir eventuais emendas e sinto-me feliz por contribuir assim para a salvação do mundo. Constatei há muito que a inutilidade é receitada de forma imperativa como um grande antídoto para os males que corroem a realidade. O pior é que nem como analgésico funciona. Os males vão crescendo e lançando metástases pelos tecidos. Oiço uma sonata de Schubert, o molto moderato e cantabile do andamento faz-me esquecer a metafísica e os males do mundo sem remédio. Deixo-me envolver na música, o coração apazigua-se, a mente serena-se e a noite abranda o cavalgar, caminha num trote sem pretensão. Chegará a passo à casa da madrugada. Também eu caminho do cantabile para o adagio. Ah, o relatório, digo e bocejo.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Não haveria paciência

Na praceta, extraviado da escola ou do centro de línguas, um grupo de adolescentes urra. O desarranjo hormonal manifesta-se das formas mais inusitadas. As hormonas compor-se-ão lá mais para diante e os proprietários haverão de se comportar como se fossem normais. É preciso não deixar cair por terra o princípio de esperança. Tenho de limpar as lentes dos óculos, pois a realidade parece-me turva. Lá fora, o dia está cinzento e isto fez-me lembrar os tempos em que era existencialista, lia Sartre e Camus, e cultuava o Vergílio Ferreira como existencialista doméstico. Tudo era então náusea e absurdo. O mundo se não era feito de carvão bem negro, era-o de uma cinza escura, pegajosa e quase nojenta. Descobri mais tarde, sem alvoroço, que o existencialismo não era uma doença crónica e que se podia tratar, apesar de deixar algumas sequelas. Se fosse linguista e dado a reformador ortográfico, introduziria de imediato o trema e ficaria com seqüelas existenciais. Aliás, também ressuscitava todas as consoantes mudas que têm vindo a ser decapitadas desde o infausto ano de 1911. O destino, todavia, foi avisado e não me fadou para andar por aí a endireitar os tortos ortográficos. Talvez por isso tenha caído no caldeirão existencialista. Nunca se sabe muito bem por que razão acontece aquilo que acontece. Consulto a agenda, franzo o sobrolho, arrumo o pano de limpar os óculos no estojo e penso que talvez haja alguma razão em quem diz que há em mim uma certa propensão para o autismo. Mastigo dois comprimidos Aero-Om. Se não me curam da terrível propensão, talvez impeçam um recidiva existencialista. Não haveria paciência.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Wilhelm Reich fora de horas

Pertenço a uma geração que nos verdes anos leu coisas inverosímeis. Ao escrever esta frase, como narrador obediente que me prezo de ser, não deixei de torcer o nariz, coisa que foi de imediato sentida pelo autor. Qual o problema? Olhei-o e a medo disse-lhe que havia vários problemas. Verdes anos e coisas inverosímeis estão longe de ser noções claramente definidas. Depois, acrescentei, eu não tive verdes anos nem li coisas inverosímeis. Sou apenas um ser virtual, nem sequer sou um ser de papel, como eram os narradores de antigamente. O autor olhou-me e perguntou-me se na juventude não tinha lido Wilhelm Reich. Por Deus, disse-lhe eu. Não, não li, nem Reich nem o que quer que seja. Eu não leio. Um narrador não é um leitor. Pois, disse-me ele já irritado, eu li. E não sei o que é mais inverosímil se ter lido Reich ou ter tido verdes anos. Encolhi os ombros, sem paciência para as revisões existenciais a que o autor se entrega. O dia está quente. Fevereiro parece querer arrancar-se à lânguida ciclicidade do ano e correr em direcção à Primavera. Não sei se há alguma ligação entre as memórias reichianas do autor e a anunciação da Primavera. Se há, o melhor é que ele olhe para idade que tem e perceba que os combates da juventude pouco têm a ver com a calma sensatez da idade madura. Excessivamente madura, diga-se. Na escola do lado, um vulto pisa lentamente a erva, senta-se debaixo de uma oliveira e recosta-se. Aposto que nunca ouviu falar em Wilhelm Reich e que o mais certo é que nunca há-de ouvir. Dele será o reino dos Céus.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

A poética das análises laboratoriais

Recebido por correio electrónico, imprimo o relatório das análises que mais logo terei de mostrar ao médico. Está dividido por secções cujos nomes lembram a designação de disciplinas de um curso superior. Hematologia, Bioquímica I, Bioquímica II. Será que também aqui haverá precedências? Quem chumbar na Bioquímica I poderá fazer a Bioquímica II ou terá de repetir a I? Outra secção, porém, tem um nome menos amigável, Marcadores Tumorais. Esta não se parece com uma cadeira universitária, mas com um quadro onde se vai inscrevendo a evolução de um jogo de bilhar às três tabelas. Olho com condescendência para os resultados, verifico se eles se integram nos valores de referência. Por fim, tento descortinar o valor literário da informação. Vejo por ali vocábulos extraordinários. Eritrócitos, hemoglobina, hematócrito, leucócitos, eosinófilos, basófilos, linfócitos e monócitos. Isto para não falar da glicémia, da ureia, do colesterol e dos triglicéridos. São verdadeiras famílias, com as suas sagas, os seus amores e ódios, triunfos e desditas. O nosso organismo está cheio de histórias com personagens que nem sonhamos. Não admira a quantidade de escritores médicos. Têm a mente povoada de personagens com nomes destes, cuja acção determina a vida ou a morte do hospedeiro, a glória ou a tragédia do herói. A tarde nasceu enfastiada e o fastio que dela se desprende toma conta da atmosfera, envolve os transeuntes na avenida, repousa-se nos ramos do arvoredo. Aqui perto, caminham dois eritrócitos e três leucócitos. Falam em surdina, fazem planos, traçam mapas onde se inscreve a vida e a morte. Param perto de mim e um deles, o leucócito mais apessoado, pergunta-me se conheço a transaminase glutâmica oxalacética. Embaraçado, respondo que não, embora conheça a transaminase glutâmica piruvica, que deve ser prima. Se quiser falar com ela, não tem nada que enganar. Faz a rotunda, sai na terceira saída, é logo o primeiro prédio. No segundo direito.

domingo, 9 de fevereiro de 2020

O espírito aos domingos

Lá fora está um dia sombrio. A luz da manhã coada pela muralha de nuvens saltita sobre os telhados como se tivesse perdido a força e só a muito custo se entregasse ao jogo fútil de nos iluminar. Oiço as vozes de quem está na esplanada do café da praceta, mas também elas não passam de sombras, ondas murmuradoras que se elevam e, desarticuladas e sem sentido, me chegam aos ouvidos. Devia fechar as janelas, mas preciso de ar. À minha frente repousa um livro que tem por subtítulo Um diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. Não se trata do nosso tempo mas de um tempo que passou e que nunca foi o meu. Ao olhar a falta de vigor da luz ocorre-me que todas as épocas são tempos de doença espiritual. O espírito deverá sofrer de uma patologia crónica, da qual não se liberta, mas a cujas mãos também não sucumbe. Uma voz mais aguda fez-me ter outro pensamento sobre o espírito. O seu encanto residiria nesse seu estado de doente, sempre a necessitar de cuidados médicos, mas raramente a ser internado num hospital. Aos domingos deveria coibir-me deste tipo de pensamentos. Lembrei-me dos domingos da minha infância e adolescência. A missa, o almoço em família e, eventualmente, a assistência ao futebol, no pequeno campo pelado da vila, ou a ida ao cinema, numa sala espantosa, que era dos poucos sinais de modernidade que então havia por aqui. Tudo tinha um ritmo que simulava a perfeição, mas na verdade era sujeição ao ethos provinciano, onde se deveria crescer para a pequenez, perder-se no apoucamento, mergulhar na menoridade eterna. Há quem tenha saudades de tudo isso e cultive a memória, podando-a para eliminar, na narrativa, os elementos dissonantes. A luz tornou-se mais vívida, agora que nos preparamos para entrar na tarde. Fechei as janelas e o silêncio envolve-me. Não vou à missa, não vou ao futebol, não vou ao cinema e essa família que almoçava junta aos domingos foi-se desfazendo. Os homens aspiram à eternidade, mas o que lhes calha sempre em sorte é o tempo.

sábado, 8 de fevereiro de 2020

Poupar os pormenores

Hoje ao abrir as janelas dei-me conta de que no friso das orquídeas persiste florida uma quase há um ano. Comprei-a em Março passado por razões que não vêm ao caso e já estava florida. Enquanto as outras foram perdendo as flores, ela atravessou impante a Primavera, fingiu que o Verão era coisa de somenos por aqui. Quando o Outono deu lugar ao Inverno, a queda de umas flores foi compensada pelo rebentamento de outras. E ali está ela pronta para chegar a Março. Ocorreu-me que tivesse sido enganado na florista e que não seja uma orquídea. Na realidade, não sou um Nero Wolfe. A minha vida não é desvendar crimes sentado à secretária e cultivar orquídeas. Também não tenho um cozinheiro à disposição e, por isso, já fui consultar a ementa de uma dessas casas que têm por função transformar pessoas como eu em cozinheiros improváveis. Se me perguntarem de quem é a responsabilidade do almoço, posso responder é minha. Evito os pormenores. A sabedoria da vida reside toda aí, no evitar os pormenores. Quanto mais pormenores se sabem, maior é a descrença na humanidade. Uma pessoa sensata tem por norma o imperativo categórico poupem-me os pormenores! Um pormenor delicioso é narrado em Walden Two, o romance de B. F. Skinner, o behaviorista. Frazier, enquanto aluno de licenciatura pegou num artigo do reitor da universidade, para usar um título à nossa medida, publicado numa revista, assinalou-lhe a vermelho os erros de ortografia, compôs-lhe a sintaxe e com recurso à simbolização lógica formalizou os argumentos, mostrando a sua não validade. Feito isto, enviou o artigo ao seu autor com a classificação de C. E qual foi a resposta do magnífico reitor, pergunta quem tenha a desventura de estar ler este texto. Não sei. B. F. Skinner, no romance, poupou-me o pormenor.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Acasos

O acaso tem um papel nas nossas vidas muito maior do que supomos. Mal escrevi a frase vi a que enredos ela poderia conduzir-me e hoje não estou para ardis nem para ciladas. Foi o acaso que me fez escutar uma canção que ouvia muito há mais de quarenta e cinco anos. Um poema de Rosalía de Castro musicado e cantado por um dos trovadores em voga na época. É uma bela canção, de uma tristeza comovente. Depois, pensei que nessa altura, com a idade que tinha, não deveria ouvir música daquela. A canção acabou, Rosalía voltou para a sua Galiza, onde nasceu sem que do registo de baptismo constasse o nome dos pais. Lembrei-me então que hoje, ao atravessar a cidade e enquanto me preparava para enfrentar as Erínias, ouvi na Antena 2 que era dia de aniversário de Juliette Greco. De imediato procurei uma das canções dela de que mais gosto, Déshabillez Moi (honni soit qui mal y pense) e achei que a tarde poderia ter acabado pior. Vou passar as próximas horas a ouvir cançonetas que não lembra ao diabo, enquanto a noite vai tricotando a sua agonia, à espera de um relâmpago que a salve de se precipitar na maresia da madrugada. Rosalía não chegou aos cinquenta anos, mas a Greco fez hoje noventa e três. Não sei se nisto haverá alguma mensagem cifrada ou se tudo não passa de um acaso.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Pensamentos alados

Leio um poema e nele vejo os preconceitos da autora, das mais importantes, o seu universo de anuências e recusas em forma de verso e sinto-me infeliz, pois, na minha cegueira poética, a procura da linguagem primordial exige que o poeta comece a despir-se dos conceitos e, de seguida, dos preconceitos. Esta frase já vai demasiado longa, reparo agora. Um anjo, mas não o que me guarda das tentações, interpela-me e, em modo de sarcasmo, pergunta-me se a poesia não tem direito a dizer coisas, se ela é apenas como o chilrear dos pássaros, uma ondulação sonora com requebros rítmicos. Vi logo que era um anjo comprometido socialmente e desejoso de transmitir uma mensagem. Depois, concedi que é assim mesmo que deve ser. Os anjos são mensageiros. Foi esse o papel que lhes foi destinado e, por isso, foram colocados abaixo dos homens e, acrescento eu, dos pássaros. Ando a ficar preocupado comigo. Parece que os meus cuidados existenciais se dividem entre a angelologia e a ornitologia. Seres alados, digamos assim, ocupam-me a mente e isso pode significar que também a habita o orgulhoso desejo de voar. Depois, estremeci só de pensar que poderia ser um Ícaro e que acabaria por ter o mar Egeu à minha espera. O mais sensato é ficar sentado e deixar a quem tem asas a tarefa de voltear pelos céus. O anjo com a sua conversa distraiu-me da crítica literária e isso não foi mau. De uma das janelas, sobrepondo-se a um bosque de cedros, ergue-se o hospital. As paredes brancas estão cinzentas. Batalhões de fungos invadiram-nas e o que era alvo e brilhava ao sol é agora uma cortina de cinza alquebrada pela tristeza. Devia parar com estas tiradas de um romantismo mais que serôdio. Não tarda e terei de almoçar. Espera-me uma tarde tão longa que entra pela noite fora.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Bach e Deus

Estava a ouvir a suite francesa nº 2 de Bach e, ainda a peça fluía pela Allemande, já o espírito se distraía perdido na pátria das coisas inúteis. Os pensamentos talvez sejam obra do acaso, tão inopinadamente irrompem para, como um exército inimigo, invadirem o território da atenção. Sem saber porquê, o argumento modal da existência de Deus requereu a minha atenção. Estranhei. Fiz um esforço para deixar de lado necessidades e possibilidades e acompanhar a música. O argumento não se calava. Seria a sua natureza estética, a beleza que há na simplicidade, que disputava a atenção, ocorreu-me. Fechei os olhos e deixei a música deslizar por mim e disse-me se é para aceitar uma prova da existência de Deus, o melhor é crer que a música de Bach é mais convincente que um qualquer argumento a priori. Depois ri-me. Pensamentos destes depois de almoço não se recomendam a ninguém. Levantei-me e olhei pela janela. Bach continuava a sair pelas velhas colunas e na rua o esbranquiçado das nuvens mesclava-se com o azul do céu. Uma nuvem mais densa escondia Deus que dormia embalado pela música que eu ouvia. Talvez os homens existam para que Deus possa através deles ouvir Bach. Mais que uma possibilidade, os homens seriam uma necessidade divina. Retorno à minha agenda onde colecciono, como se fosse num herbário, os recados que dou a mim mesmo, e escrevo: nunca ouvir Bach na digestão e evitar argumentos ontológicos quando se ouve música.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

O canto dos pássaros

Os pássaros meus vizinhos poisam no parapeito de uma das janelas e conversam longamente. Não os vejo, mas oiço-os. Não há neles irritação e o diálogo flui ligeiro, com pausas e troca ordenada de locutores. Será o mundo das aves mais ordenado que o dos homens, foi a pergunta que se formou em mim. Soubesse eu música, tivesse talento para compositor e faria como Olivier Messiaen. Comporia um catálogo dos pássaros, para que na voz do piano se escutasse o canto de uma ave. O desejo maior, porém, seria de entender a sua fala, o vocabulário, a sintaxe os artifícios semânticos. Haverá por ali belas metáforas, metonímias inesperadas e chego a desconfiar que não são parcos no eufemismo. Na prosódia, não se furtam à anáfora e são cultores assíduos da assonância e da aliteração. Estes devaneios distraem-me e estou constantemente a trocar letras no teclado. Fico a olhar para os erros. Umas vezes, a palavra assim inventada quase merece vir à existência. Outras, observo o teclado para tentar perceber que conexão neuronal se desviou da regularidade e me tentou arrastar para o caos. Raramente fico elucidado e desisto. Da rua, vêm os gritos doridos de uma adolescência que não aprendeu a domar-se. Também um aspirador regurgita das entranhas um zunido infernal. Temos sempre um pequeno inferno à nossa mão. Agora silenciou-se. Talvez o canto dos pássaros volte e eu compreenda pela primeira vez uma frase.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Meditações de uma alma pura

Ocupam-me os dias coisas inúteis cuja finalidade é melhorar o mundo e as pessoas, mas que, por um capricho da natureza que escapa aos homens, têm o poder desmedido de tornar o mundo pior e as pessoas mais incapazes de lidar com ele. Abstenho-me de entrar pelos ínvios caminhos da política, os quais me estão proibidos, mas agradeço aos deuses a sua sabedoria, pois sempre que querem melhorar os homens, estes pioram, sempre que querem curar as coisas, estas adoecem. Se os deuses não fossem tão inteligentes talvez se deixassem dos seus infinitos planos de melhoria. Corriam, porém, o grave risco de o mundo e as gentes se tornarem um pouco melhores. O que seria desagradável. Com esta conversa toda, deve-me ter acontecido alguma coisa. Não é verdade. Há dias que qualquer um, mesmo um mero narrador incorpóreo, alma pura, tem de desabafar sobre o ínvio curso das coisas. É um costume antigo e venerando e, por isso mesmo, digno de apreço e reconhecimento como verdade. Lá fora, o sol ainda deve estar quente. Tinha pensado fazer uma caminhada após o almoço para digerir as maleitas da existência, mas temi que, como alma pura, não suportasse o calor. Se tivesse um boné para a cobrir, ainda me arriscava. Não posso esquecer-me de apontar na lista de compras um boné. Estão de volta os pássaros que o ano passado me acompanharam os dias. Cantam à minha janela como se estivessem num serão para trabalhadores promovido pela Fundação Nacional para Alegria no Trabalho. Mais dia menos dias, só quem tiver mais de setenta anos percebe alusões como esta. A minha alma sem corpo não está a funcionar lá muito bem. Talvez a devesse descontinuar e criar um modelo novo.

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Contra o coração

Depois de tomar o pequeno-almoço fui acometido por um súbito estado meditativo. Isto não traz nada de bom, pensei. Um sol esplêndido cai sobre as ruas, as pessoas aspiram os primeiros aromas da Primavera, a natureza não desdenha de começar a despir os andrajos invernosos e de procurar nas lojas da moda alguma roupa para a estação que há-de vir. Deveria ir celebrar a vitória da luz, mas lembrei-me de imediato que não tardará muito e o Estio entrará de rompante pelos corpos, inundando-os de suor, roubando-lhes energia, fazendo-os sonhar com as ondas do oceano. Sentei-me e fui arrastado para o livro do deve e haver da vida. Diante de mim está um telemóvel novo, comprado há três semanas, mas que continua intocado como uma virgem. Ainda não tive coragem para ler as instruções. Sempre desconfiei de instruções e ainda mais de aparelhos que precisam de instruções. Estou a afastar-me do assunto. O balanço é pior do estava à espera. Uma vida erguida entre duas falácias. Quando se é novo, o coração anseia a novidade porque é novidade. Quando se é velho, o coração inconstante cultiva a tradição porque é tradição. Ocorre-me, então, que o coração deveria ocupar-se apenas em bombear com presteza o sangue e deixar-se de considerações para as quais não lhe foi concedida competência. O mal do coração é querer meter-se onde não é chamado, emitir opiniões, dar conselhos que não passam de palpites enviesados sobre o que deve ser. Se a humanidade não tivesse coração, melhor andaria o mundo. O sol com o seu fato domingueiro de provinciano chama-me. Vou? Não vou?

sábado, 1 de fevereiro de 2020

Um problema de família

Um céu de cinza esbranquiçada, aqui e ali entrecortada pelo chumbo, e uma luz difusa fazem-me crer que me atrasei e abeirei-me da manhã deste sábado já tarde. Podia encontrar múltiplas desculpas, evitar com belos artifícios a verdade, tentar-me mesmo por uma piedosa mentira. Esta, porém, está-me vedada pelo imperativo categórico kantiano e há que ser respeitoso com o mestre de Konigsberg, mesmo pelos seus mais insanos devaneios. A realidade é que fui retido por uma discussão monumental com o autor destas palavras. Eu sei qual é o meu lugar, não passo de um mero narrador, mas os delíquios do autor deveriam ter um limite, talvez estipulado por alguma comissão reguladora da liberdade dos autores, coisa a que aspira qualquer narrador. A conversa começou de forma estranha, com ele a olhar para mim com piedade. Chegou a altura de teres uma genealogia, de teres antepassados, disse-me, não se pense que foste criado ex nihilo. Contente com o latinório não se conteve e rematou ex nihilo nihil fit. Olhei-o de viés, respirei fundo e fiz um gesto que me abstenho de descrever. Criei-te, para começar, um bisavô. Ainda chegaste a conhecê-lo, mas já não te lembras, eras bebé e ele estava já mais para lá do que para cá. A minha ira, como se compreende, crescia com esta displicência de tratamento do bisavô que me acabara de criar. A vontade de o esmurrar era cada vez maior. Ah, acrescentou, parece que ele era muito dado a espalhar os genes por aí e, constou-me, que havia sempre um óvulo ou outro receptivo ao seu espírito empreendedor. Portanto, tem cuidado, não te cruzes em alguma destas histórias com uma prima que não conheces. Bati com a porta e sentei-me a escrever. Há sábados que nascem tortos e tarde ou nunca se endireitem. O que me vale é que possuo um repositório inesgotável de aforismos ao gosto popular para acabar estas narrativas pindéricas, que o autor me obriga a contar.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Falar por enigmas

Se fosse uma pessoa saudável poderia dedicar o tempo a meditar no paradoxo de Epiménides de Creta. Consta que acreditava num Deus único e desconhecido e, por isso mesmo, salvou Atenas de uma praga renitente, a que deus algum conhecido conseguia pôr fim. Como não sou assim tão saudável, não vou pensar na relação entre os cretenses e a mentira. Podia também passar a noite a interpretar uma certa história dos Inuit que descobri hoje. Deixo, porém, Epiménides e os cretenses em Creta e os Inuit no Alasca e entro no fim-de-semana pela porta do desassossego. Mal me aproximei dela, abriu-se não como quem convida um estranho para entrar, mas como quem dá ordens que ninguém ousa desobedecer. Folheio as anotações com os afazeres e calculo as horas que tenho para enfrentar a realidade. Há tempos li já não sei onde que os servos na Idade Média trabalhavam bem menos que os homens livres de hoje em dia. Se fosse dado à correcção do mundo, faria aqui uma peroração sobre a glória vã dos homens modernos, mas deixo a aplicação de correctivos para quem Deus tenha designado com o indicador da sua mão esquerda. Disseram-me que estava com um ar cansado. Imaginei que fosse um eufemismo para sugerir que estou velho. Sempre era melhor estar cansado, pois poderia descansar. Há coisas irremediáveis e envelhecer é uma delas, o que não deixa de ser um acto de justiça cósmica. É possível que essa justiça seja o decreto do Deus ignoto de Epiménides e com isso tenha salvado Atenas da terrível praga. Ou será que o cretense era, na verdade, um Inuit perdido no horror de um pequeno barco à deriva? Quando começo a falar por enigmas o melhor é calar-me.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

O pobre destino da caligrafia

Atravessei a cidade já noite fechada. Uma chuva insidiosa descia mansamente do céu e poisava leve e hesitante no pára-brisas do carro. As escovas varriam sem pressa a superfície vidrada, desenhavam um semicírculo, desfaziam-no de seguida e descansavam tomadas por uma sonolência inexplicável, enquanto pequenas gotas de água embatiam no vidro e ali ficavam até que o acordar das escovas as varresse para lado nenhum. Ao chegar a casa tive de ler um papel que tinha escrito de manhã. Olhei para a garatuja e fiquei a meditar no destino das palavras. Como o dos homens, também o dos vocábulos está longe de ser glorioso. Caligrafia começou por ser a bela escrita dos gregos, depois a arte de bem escrever à mão e agora designa o modo como cada um manuscreve, numa democratização tão alargada que até eu possuo uma. Não compreendo como é que a caligrafia não se revolta e restringe drasticamente o seu campo semântico, expulsando de lá tudo o que seja rabisco ou gatafunho, letra torta ou enviesada. Lá decifrei o escrito e segui as instruções que dei a mim próprio. Depois, sentei-me diante do computador e dei uma vista de olhos pelo facebook e logo avistei alguém a pedir prisão perpétua para uma qualquer malfeitoria, outro a altear a voz em nome dos contribuintes, mais alguém a vituperar já não sei bem o quê ou a quem. Se toda esta gente indignada fosse varrida pelas escovas do pára-brisas, pensei, talvez a caligrafia tivesse um destino mais de acordo com a sua glória clássica, libertando-se da escrita de pessoas como eu, pouco predisposto à arte e às letras belas. A noite dança sobre os telhados desta quinta-feira, envolta nos acordes do silêncio. Há coisas que nunca deveria escrever, mas foge-me o pé para a chinela.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Amor máquina

Não tenho personagens, sou um narrador estéril, incapaz de gerar vida. Por vezes, estes textos são atravessados por alguém, mas, como um cometa, logo se afunda na escuridão do universo. O meu sonho era o de uma literatura sem personagens, sem eus e as suas idiossincrasias. Narrar o ronronar do mundo, o canto dos pássaros, o ronco da terra ao tremer, o rumor da rosa ao abrir. Isto para parecer poético e que sei falar de rosas, uma óbvia mentira. Logo me acusarão de não ser um humanista, de não amar a humanidade e contribuir para a sua libertação. Esta conversa, em abono da verdade, faz-me bocejar. Hoje é quarta-feira e não tarda o grupo de baile da escola aqui ao lado há-de começar o seu ensaio. Poderia fazer deles personagens destes textos, mas prefiro que não percam o seu estatuto de cometas. Desconfio que o isolamento do prédio poderia ser melhorado. Oiço o bater de uns saltos que não escondem o frenesim que os habita. Fico sempre confuso se este toc-toc-toc pretende imitar o desfilar das manequins na passerelle ou se é um eco marcial de botas cardadas. Hoje ligaram-me a uma pequena máquina que hei-de transportar durante vinte e quatro horas. Sempre que me ligam a este dispositivo fico grato, pois nunca ninguém se disporia a dar atenção ao meu coração por tanto tempo. A menina, por certo uma técnica licenciada e mestrada, desconfiou de qualquer coisa, pois pôs-se a sondar-me. Então, está a fazer isto porquê? Perante o olhar atónito de quem vê a sua vida íntima invadida, retrocedeu, fez um sorriso forçado e acrescentou é um exame de rotina. Anuí, para que a devassa acabasse ali. Há que preservar a intimidade. Se eu não fosse um narrador estéril, aproveitaria a menina para personagem. Ela sempre haveria de me fazer perguntas embaraçosas e eu olhá-la-ia com condescendência, desviando a conversa. Não o sou e prefiro o espiar silencioso da maquineta que, com os seus fios colados a eléctrodos, me envolve num amplexo onde descubro todo o amor do mundo.

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Um estóico falhado

Cheguei à tarde desta terça-feira irritado e irritado com a minha irritação. Deveria ter entrado no clube dos estóicos e entregar-me à apatheia. Olhar com indiferença olímpica os acontecimentos que, por vezes, me acontecem e deixar o mundo correr para a foz, sem julgar ter o dever de lançar bóias aos náufragos que encontro. As Parcas, porém, não me quiseram ver perdido entre gente que se entregava a tal filosofar, arrancaram-me da sombra do pórtico pintado e, no seu sábio julgamento, determinaram que no meu lote também cabe a irritação. Quis enganá-las e a conselho médico comecei a tomar um betabloqueante. Pensei, na minha ingenuidade, ou estupidez, conforme as opiniões, que tinha, ainda em vida, entrado no paraíso pela porta da química. Não havia irritação que me chegasse. Nestas coisas, a história tem sempre desenvolvimentos que estão ocultos aos protagonistas. Os betabloqueantes deixaram de betabloquear as irritações e o paraíso foi dando lugar ao purgatório e, agora, ao inferno. Eu sei o que o leitor está a pensar. O inferno são os outros. É verdade, se crermos nas homilias de Sartre. Eu não tomo partido sobre elas. Oiço o ruído irritante de um aspirador e penso comigo que deveria falar com essas Parcas ou Moiras, caso esteja mais inclinado para o grego do que para o latim. Depois, achei melhor não as irritar e deixá-las longe de mim. Esperam-me horas de grandes inutilidades e isso realiza-me profundamente. Fosse eu um estóico e tudo me seria indiferente. Bastava adequar-me à natureza. Estaria irritado, mas feliz.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Ficções e fingimentos

Se tivesse engenho para a poesia épica, hoje escreveria sobre a epopeia da caldeira aqui de casa. Assaltou-me, porém, uma dúvida. Tendo em conta que ela decidiu fazer de morta, talvez o talento requerido fosse o do poeta trágico. Uma tragédia o não haver aquecimento nem água quente. A expectativa é que cheguem os técnicos e façam manobras de reanimação e ela ressuscite, sem que tenha de ir para o hospital ou para a morgue. A tarde ergueu sobre si um véu de chuva. Cobre-se com ele e caminha como uma noiva para o altar. Como ela, também a tarde desconhece que é ali, no altar, que se cumpre o seu destino de vítima sacrificial. Ainda me acusarão de querer destruir o instituto do casamento. Longe de mim tal ideia, chego mesmo a ter grande admiração por quem se casa quatro e cinco vezes. A persistência é uma virtude louvável e digna dos maiores encómios. Os técnicos já deveriam ter chegado. Daqui a pouco espera-me uma função daquelas que pela sua profunda inutilidade se tornam absolutamente imprescindíveis. E são coisas destas que me fazem amar esta pátria. Somos especialistas em ficções. Fingimos que gostamos, fingimos que pensamos, fingimos que sabemos, fingimos que fazemos. É um dom que nasce da combinação genética com a educação que o meio promove. Se os poetas são uns fingidores, são-no porque são portugueses. O que arrasta a extraordinária conclusão de que só existem poetas portugueses. Os outros ou não são poetas ou se o são, são portugueses mas não o sabem. O que faz a falta de água quente.