Se fosse uma pessoa saudável poderia dedicar o tempo a
meditar no paradoxo de Epiménides de Creta. Consta que acreditava num Deus
único e desconhecido e, por isso mesmo, salvou Atenas de uma praga
renitente, a que deus algum conhecido conseguia pôr fim. Como não sou assim tão
saudável, não vou pensar na relação entre os cretenses e a mentira. Podia
também passar a noite a interpretar uma certa história dos Inuit que descobri hoje. Deixo, porém, Epiménides e os cretenses em
Creta e os Inuit no Alasca e entro no
fim-de-semana pela porta do desassossego. Mal me aproximei dela, abriu-se não
como quem convida um estranho para entrar, mas como quem dá ordens que ninguém
ousa desobedecer. Folheio as anotações com os afazeres e calculo as horas que
tenho para enfrentar a realidade. Há tempos li já não sei onde que os servos na
Idade Média trabalhavam bem menos que os homens livres de hoje em dia. Se fosse
dado à correcção do mundo, faria aqui uma peroração sobre a glória vã dos
homens modernos, mas deixo a aplicação de correctivos para quem Deus tenha
designado com o indicador da sua mão esquerda. Disseram-me que estava com um ar
cansado. Imaginei que fosse um eufemismo para sugerir que estou velho. Sempre era
melhor estar cansado, pois poderia descansar. Há coisas irremediáveis e
envelhecer é uma delas, o que não deixa de ser um acto de justiça cósmica. É
possível que essa justiça seja o decreto do Deus ignoto de Epiménides e com
isso tenha salvado Atenas da terrível praga. Ou será que o cretense era, na verdade,
um Inuit perdido no horror de um
pequeno barco à deriva? Quando começo a falar por enigmas o melhor é calar-me.
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