sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Falar por enigmas

Se fosse uma pessoa saudável poderia dedicar o tempo a meditar no paradoxo de Epiménides de Creta. Consta que acreditava num Deus único e desconhecido e, por isso mesmo, salvou Atenas de uma praga renitente, a que deus algum conhecido conseguia pôr fim. Como não sou assim tão saudável, não vou pensar na relação entre os cretenses e a mentira. Podia também passar a noite a interpretar uma certa história dos Inuit que descobri hoje. Deixo, porém, Epiménides e os cretenses em Creta e os Inuit no Alasca e entro no fim-de-semana pela porta do desassossego. Mal me aproximei dela, abriu-se não como quem convida um estranho para entrar, mas como quem dá ordens que ninguém ousa desobedecer. Folheio as anotações com os afazeres e calculo as horas que tenho para enfrentar a realidade. Há tempos li já não sei onde que os servos na Idade Média trabalhavam bem menos que os homens livres de hoje em dia. Se fosse dado à correcção do mundo, faria aqui uma peroração sobre a glória vã dos homens modernos, mas deixo a aplicação de correctivos para quem Deus tenha designado com o indicador da sua mão esquerda. Disseram-me que estava com um ar cansado. Imaginei que fosse um eufemismo para sugerir que estou velho. Sempre era melhor estar cansado, pois poderia descansar. Há coisas irremediáveis e envelhecer é uma delas, o que não deixa de ser um acto de justiça cósmica. É possível que essa justiça seja o decreto do Deus ignoto de Epiménides e com isso tenha salvado Atenas da terrível praga. Ou será que o cretense era, na verdade, um Inuit perdido no horror de um pequeno barco à deriva? Quando começo a falar por enigmas o melhor é calar-me.

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