quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

O pobre destino da caligrafia

Atravessei a cidade já noite fechada. Uma chuva insidiosa descia mansamente do céu e poisava leve e hesitante no pára-brisas do carro. As escovas varriam sem pressa a superfície vidrada, desenhavam um semicírculo, desfaziam-no de seguida e descansavam tomadas por uma sonolência inexplicável, enquanto pequenas gotas de água embatiam no vidro e ali ficavam até que o acordar das escovas as varresse para lado nenhum. Ao chegar a casa tive de ler um papel que tinha escrito de manhã. Olhei para a garatuja e fiquei a meditar no destino das palavras. Como o dos homens, também o dos vocábulos está longe de ser glorioso. Caligrafia começou por ser a bela escrita dos gregos, depois a arte de bem escrever à mão e agora designa o modo como cada um manuscreve, numa democratização tão alargada que até eu possuo uma. Não compreendo como é que a caligrafia não se revolta e restringe drasticamente o seu campo semântico, expulsando de lá tudo o que seja rabisco ou gatafunho, letra torta ou enviesada. Lá decifrei o escrito e segui as instruções que dei a mim próprio. Depois, sentei-me diante do computador e dei uma vista de olhos pelo facebook e logo avistei alguém a pedir prisão perpétua para uma qualquer malfeitoria, outro a altear a voz em nome dos contribuintes, mais alguém a vituperar já não sei bem o quê ou a quem. Se toda esta gente indignada fosse varrida pelas escovas do pára-brisas, pensei, talvez a caligrafia tivesse um destino mais de acordo com a sua glória clássica, libertando-se da escrita de pessoas como eu, pouco predisposto à arte e às letras belas. A noite dança sobre os telhados desta quinta-feira, envolta nos acordes do silêncio. Há coisas que nunca deveria escrever, mas foge-me o pé para a chinela.

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