Atravessei a cidade já noite fechada. Uma chuva insidiosa
descia mansamente do céu e poisava leve e hesitante no pára-brisas do carro. As
escovas varriam sem pressa a superfície vidrada, desenhavam um semicírculo,
desfaziam-no de seguida e descansavam tomadas por uma sonolência inexplicável,
enquanto pequenas gotas de água embatiam no vidro e ali ficavam até que o
acordar das escovas as varresse para lado nenhum. Ao chegar a casa tive de ler
um papel que tinha escrito de manhã. Olhei para a garatuja e fiquei a meditar
no destino das palavras. Como o dos homens, também o dos vocábulos está longe
de ser glorioso. Caligrafia começou por ser a bela escrita dos gregos, depois a
arte de bem escrever à mão e agora designa o modo como cada um manuscreve, numa
democratização tão alargada que até eu possuo uma. Não compreendo como é que a
caligrafia não se revolta e restringe drasticamente o seu campo semântico,
expulsando de lá tudo o que seja rabisco ou gatafunho, letra torta ou enviesada.
Lá decifrei o escrito e segui as instruções que dei a mim próprio. Depois,
sentei-me diante do computador e dei uma vista de olhos pelo facebook e logo avistei alguém a pedir
prisão perpétua para uma qualquer malfeitoria, outro a altear a voz em nome dos
contribuintes, mais alguém a vituperar já não sei bem o quê ou a quem. Se toda
esta gente indignada fosse varrida pelas escovas do pára-brisas, pensei, talvez
a caligrafia tivesse um destino mais de acordo com a sua glória clássica,
libertando-se da escrita de pessoas como eu, pouco predisposto à arte e às letras
belas. A noite dança sobre os telhados desta quinta-feira, envolta nos acordes
do silêncio. Há coisas que nunca deveria escrever, mas foge-me o pé para a
chinela.
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