Não tenho personagens, sou um narrador estéril, incapaz de
gerar vida. Por vezes, estes textos são atravessados por alguém, mas, como um
cometa, logo se afunda na escuridão do universo. O meu sonho era o de uma
literatura sem personagens, sem eus e as suas idiossincrasias. Narrar o
ronronar do mundo, o canto dos pássaros, o ronco da terra ao tremer, o rumor da
rosa ao abrir. Isto para parecer poético e que sei falar de rosas, uma óbvia
mentira. Logo me acusarão de não ser um humanista, de não amar a humanidade e
contribuir para a sua libertação. Esta conversa, em abono da verdade, faz-me
bocejar. Hoje é quarta-feira e não tarda o grupo de baile da escola aqui ao
lado há-de começar o seu ensaio. Poderia fazer deles personagens destes textos,
mas prefiro que não percam o seu estatuto de cometas. Desconfio que o
isolamento do prédio poderia ser melhorado. Oiço o bater de uns saltos que não
escondem o frenesim que os habita. Fico sempre confuso se este toc-toc-toc
pretende imitar o desfilar das manequins na passerelle ou se é um eco marcial
de botas cardadas. Hoje ligaram-me a uma pequena máquina que hei-de transportar
durante vinte e quatro horas. Sempre que me ligam a este dispositivo fico
grato, pois nunca ninguém se disporia a dar atenção ao meu coração por tanto
tempo. A menina, por certo uma técnica licenciada e mestrada, desconfiou de
qualquer coisa, pois pôs-se a sondar-me. Então, está a fazer isto porquê?
Perante o olhar atónito de quem vê a sua vida íntima invadida, retrocedeu, fez
um sorriso forçado e acrescentou é um exame de rotina. Anuí, para que a devassa
acabasse ali. Há que preservar a intimidade. Se eu não fosse um narrador
estéril, aproveitaria a menina para personagem. Ela sempre haveria de me fazer
perguntas embaraçosas e eu olhá-la-ia com condescendência, desviando a conversa.
Não o sou e prefiro o espiar silencioso da maquineta que, com os seus fios
colados a eléctrodos, me envolve num amplexo onde descubro todo o amor do
mundo.
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