quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Amor máquina

Não tenho personagens, sou um narrador estéril, incapaz de gerar vida. Por vezes, estes textos são atravessados por alguém, mas, como um cometa, logo se afunda na escuridão do universo. O meu sonho era o de uma literatura sem personagens, sem eus e as suas idiossincrasias. Narrar o ronronar do mundo, o canto dos pássaros, o ronco da terra ao tremer, o rumor da rosa ao abrir. Isto para parecer poético e que sei falar de rosas, uma óbvia mentira. Logo me acusarão de não ser um humanista, de não amar a humanidade e contribuir para a sua libertação. Esta conversa, em abono da verdade, faz-me bocejar. Hoje é quarta-feira e não tarda o grupo de baile da escola aqui ao lado há-de começar o seu ensaio. Poderia fazer deles personagens destes textos, mas prefiro que não percam o seu estatuto de cometas. Desconfio que o isolamento do prédio poderia ser melhorado. Oiço o bater de uns saltos que não escondem o frenesim que os habita. Fico sempre confuso se este toc-toc-toc pretende imitar o desfilar das manequins na passerelle ou se é um eco marcial de botas cardadas. Hoje ligaram-me a uma pequena máquina que hei-de transportar durante vinte e quatro horas. Sempre que me ligam a este dispositivo fico grato, pois nunca ninguém se disporia a dar atenção ao meu coração por tanto tempo. A menina, por certo uma técnica licenciada e mestrada, desconfiou de qualquer coisa, pois pôs-se a sondar-me. Então, está a fazer isto porquê? Perante o olhar atónito de quem vê a sua vida íntima invadida, retrocedeu, fez um sorriso forçado e acrescentou é um exame de rotina. Anuí, para que a devassa acabasse ali. Há que preservar a intimidade. Se eu não fosse um narrador estéril, aproveitaria a menina para personagem. Ela sempre haveria de me fazer perguntas embaraçosas e eu olhá-la-ia com condescendência, desviando a conversa. Não o sou e prefiro o espiar silencioso da maquineta que, com os seus fios colados a eléctrodos, me envolve num amplexo onde descubro todo o amor do mundo.

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