Abril chegou a meio do caminho envolto em água fria, caída
das incertezas do céu. Ontem trovejou, mas hoje os deuses estão menos irados e
guardaram na algibeira relâmpagos e raios que não usaram para fulminar a
terra. Acumulam-se papéis na secretária. Tenho resistido à tentação de os
arrumar. Preciso de esclarecer o que entendo por arrumação de papéis, não vá
dar-se o caso de se imaginar que tenho um sítio onde, depois de devidamente
analisados e classificados, os guardo, para memória futura. Na minha linguagem,
arrumar papéis significa enviá-los para reciclagem, devolvê-los ao ciclo da
produção e consumo. Escrevo esta frase e quase me sinto um economista, o que
está longe de ser um elogio. Economistas são aquelas pessoas que estão sempre a
fazer previsões, mas que nunca acertam, nem mesmo depois dos factos consumados.
Não deveria serrazinar profissão tão distinta, de cujos humores depende a nossa
mercearia, não vão os seus cultores começar a ornear na praça pública contra
aqueles que os confundem com astrólogos. É o meu caso, mas não o digo a
ninguém. Uma antiga canção brasileira dizia que a dor da gente não sai no jornal, mas agora os jornais começam a
estar cheios de dor, estampam-na para que se torne viva, não vá ela, a dor, ser
apenas um ponto na curva de um gráfico, um número na contabilidade da vida e da
morte. Não sei o que pensar de tudo isto, mas isso também não é novidade. Oiço
o vento a murmurar, incomodado com as persianas que o tolhem. Vejo da janela algumas
pessoas, vão de máscara, o vento levanta-lhes o cabelo e empurra a máscara
contra o rosto, enquanto elas caminham, caminham, à procura de um destino. Hoje
é quarta-feira, dia 15 de Abril. Das colunas da minha cansada aparelhagem sai
uma música coeva de Bruegel, o Velho. Há dias em que me sinto como se tivesse
nascido nesses tempos, mas como se sabe sou dado ao exagero e cultivo a
hipérbole.
quarta-feira, 15 de abril de 2020
terça-feira, 14 de abril de 2020
Tudo é vaidade
A Primavera prossegue o seu caminho, um pouco desgrenhada. O
vento sopra, sopra, os ramos das árvores inclinam-se, mas logo voltam ao lugar,
pouco dóceis aos desígnios de Eolo. Passei a manhã a teletrabalhar e tenho a
tarde para resolver alguns problemas, mas são resoluções à distância, pois o
nosso próximo é aquele que se mantém ao longe. Começo a evitar as notícias, não
por elas, mas porque estão eivadas de profecias, vaticínios e augúrios. Nos
homens, o desejo nunca se cala, nunca se conforma com aquilo que há, nunca se
senta pacientemente à espere que chegue o que lhe pertence. Daí, abre a boca e
desata a fabricar futuros. Ora o futuro é uma coisa que me cansa tanto como o
presente, e este é o que se sabe. Vejo um vídeo do meu neto. Observo tudo o que
estou a perder, embora ele não dê por nada. Nos últimos dias não tenho visto
cinema e essa é uma alteração sensível. Outra é que também não tenho feito
palavras cruzadas. O que tudo isto quer dizer não faço a mínima ideia. Talvez a
maior parte das coisas que acontecem não queira dizer nada, limita-se a
acontecer e encontrar-lhe razões é um desporto que serve para mostrar a argúcia
do ego, uma vaidade. E aqui deveria dizer com o Eclesiastes vi tudo o que se faz debaixo do sol, e eis:
tudo vaidade, e vento que passa, mas não digo, guardo-o para outro dia, em
que não oiço o zumbir monótono de um aspirador. As acácias bastardas estão mais
compostas de folhas e na rua não passa ninguém. Daqui a pouco hei-de espreitar
as torres do castelo. Uma delas começa a ficar tapada pela ramagem de um
pinheiro manso. Hoje é terça-feira, dia 14 de Abril. O aspirador calou-se, os
pombos desenham círculos no ar e as horas desfazem-se em minutos, os minutos em
segundos e estes fiam o nada que a tudo envolve.
segunda-feira, 13 de abril de 2020
Um dia cinzento
O dia parece o fruto de uma imensa tristeza. Cobre-se com um
véu de cinza e esconde-se em cada beco por onde ninguém passa. Acompanho-lhe o
sentimento, mas será mais assisado quebrar esta lealdade e arvorar um sorriso
como se houvesse razão para uma imensa alegria. Desdobro diante de mim as
tarefas que tenho de realizar ainda hoje e pergunto-me se isso serve para
alguma coisa. A consciência, porém, diz-me que a ocupação é o melhor remédio
para estados de alma escuros. Olho-a com desprezo, mas ela não se faz rogada e
vinca a sua opinião, exorbitando funções. Volto às minha tarefas. Com elas
componho um puzzle, encaixo, com paciência, as peças, rio-me se me engano.
Ontem descobri um conjunto de textos que noutra época me interessariam, agora
não sei o que fazer com eles. Leio-os, mas é tanto o enfado, que o melhor é
esquecê-los. Oiço Andreas Scholl num Stabat
Mater de Marco Rosano, um compositor italiano actual. Deixo-me surpreender pela
música, fujo do fascínio que o mesmo tema tem na composição de Giovanni Battista
Pergolesi. Há obras que têm uma luz tão intensa que lançam uma enorme sombra
sobre todas as outras. Rosano também não é capaz de fugir por completo ao sortilégio
do seu compatriota. Esqueço tudo isso e deixo a música vir sobre mim. A
tristeza daquela mãe, porém, redime-me da melancolia da tarde que agora começa.
Vou almoçar como se fosse um dia normal. Hoje é segunda-feira, dia 13 de Abril.
Os campos da escola ao lado estão vazios, os cedros continuam a crescer e os
pássaros cantam iludidos pelo calendário.
domingo, 12 de abril de 2020
Estranha forma de vida
Ao acordar, naquele momento em que a consciência abandona o
estado penumbroso onde se entrega às habituais deambulações, numa negociação
difícil entre as pulsões do inconsciente e os imperativos do superego, veio-me
à memória um fado cantado por Amália Rodrigues. Estranha Forma de Vida. Pensei, então, que tudo se resumiria a
transitar da vida habitual para esta estranha forma de vida, até que se
tornasse um hábito e perdesse a estranheza, a inquietante estranheza que é a
dela. Depois, tudo isto se apagou. Há pouco sentei-me no chão de uma das
varandas e, enquanto lia, apanhava sol. Se a vida decorresse conforme o
habitual, a casa transbordaria e aqui encontrar-se-iam quatro gerações, em que
a pessoa mais velha tem mais 85 anos do que a mais nova. Nestes momentos, a
precisão aritmética torna-se central. No jornal, vejo que morreu Stirling Moss.
Não me lembro dele correr, mas quando me deu a febre da Fórmula 1, lá num dos
recantos da adolescência, ele era uma lenda ao lado de Juan Manuel Fangio. Num
dos capítulos da sua longa diatribe contra os deuses dos romanos, em A Cidade de Deus, Agostinho de Hipona lembra
que em Roma se tinha Fórculo como deus das portas, Cardea por deusa dos gonzos
e Limentino como deus protector dos umbrais. Contrariamente ao que os
historiadores contam, não foi o engenheiro Taylor que descobriu a
especialização do trabalho, mas as religiões politeístas que chegaram a um grau
tal de precisão que o deus que se ocupa das portas nada sabe da protecção dos gonzos,
das fechaduras nem dos umbrais. E tudo isto interessa para quê? Para nada,
claro. Hoje é domingo, dia 12 de Abril. Os católicos revivem a ressurreição de
Cristo fechados em catacumbas. O sol foi coberto por nuvens e eu, dentro de
minutos, tenho uma missão a cumprir.
sábado, 11 de abril de 2020
Realidade metafísica
Hoje, mais uma vez, ao olhar a rua, tive a sensação de que os quadros de Giorgio de Chirico tinham abandonado o mundo imaginário da arte e se tinham tornado realidade. A praceta que se vê de um dos lados da casa estava vazia, o café fechado, o sítio da esplanada sem os chapéus de sol, sem as mesas e as cadeiras que, noutros tempos, abrigavam pessoas, que ali tomavam café, faziam confissões, diziam trivialidades, animavam as manhãs antes que chegasse a hora de almoço. Do outro lado da casa, também a visão tem a mesma natureza da pintura metafísica. O bar da esquina fechado, a esplanada desfeita, os passeios com uma ou outra sombra fugaz, de alguém que é passeado à trela pelo seu cão. As árvores estão exuberantes, resplandecem se o sol toca a folhagem, sombreiam o chão indiferentes à ausência de pessoas. Os espaços públicos são agora puras projecções imaginárias, atravessados, uma vez por outra, por fantasmas arrastados pela sua própria sombra. Que novas geografias se hão-de fabricar. Oiço ao longe o roncar contínuo de uma máquina, mas não a vejo nem consigo perceber que tipo de engenho é. Um ruído contínuo, a música de fundo de um filme distópico. Ao longe, avisto o hospital, com as paredes maculadas pelos fungos e as janelas como seteiras por onde entra o sol e saem, como flechas, os olhares de quem por lá combate. Hoje é sábado, dia 11 de Abril. Oiço os pássaros meus vizinhos e penso que lhes deveria gravar as conversas. Depois, lembro-me que talvez elas estejam abrangidas pela protecção de dados e desisto da ideia. Com tanta proibição, nunca mais hei-de conseguir desvendar a sua linguagem. Rio-me e pergunto-me se já terei dados os primeiros passos em direcção à pátria da loucura. Não consigo ouvir a resposta.
sexta-feira, 10 de abril de 2020
Sexta-Feira de Paixão
Passa do meio-dia e nada me faz lembrar ser hoje feriado. Os dias tornaram-se indistintos. Acumulam-se uns em cima dos outros e ficam por aí a esmo, perdidos, sem cor que os anime, sem nome que os distinga, pois já ninguém acredita que tenham nome. Se lhe chamam sexta-feira é apenas por hábito, não por crença que assim seja. O calendário ainda se há-de tornar uma relíquia. Ganhei novos hábitos. Faço palavras cruzadas, com muita moderação, e vejo, menos moderadamente, cinema. Em cima da secretária tenho o cartão de um restaurante de Santiago de Compostela. É um documento arqueológico, daquele tempo em que as pessoas viajavam, mesmo eu que não sou um especial apreciador da viagem turística. Tenho um número razoável de cartões de restaurantes. Guardo-os, não para os coleccionar, mas porque os uso para marcar livros. Muitas vezes, o livro acabado de ler, os cartões ficam lá. São mensagens para o futuro. Quando morrer – ou talvez antes, quem sabe? – e venderem a minha biblioteca, um comprador de um livro que fora meu há-de descobrir que havia tal restaurante em tal sítio e sinta vontade de perceber quem era o dono do livro, se esse restaurante ainda existe, se valerá a pena. Emociona-me quando descubro, num livro comprado em segunda mão, uma dedicatória ou algum texto perdido. Não sei o que fazer com tudo isto. Olho para as estantes e percebo de imediato que ainda não é a altura em que começarei a pôr ordem nelas. Hoje é sexta-feira, dia 10 de Abril. Não há cerimónias religiosas públicas, pois os templos estão fechados e os dias correm com algum azedume. Consulto as tabelas da epidemia e os augúrios não me parecem favoráveis, mas não percebo nada da arte do vaticínio.
quinta-feira, 9 de abril de 2020
Quinta-Feira de Endoenças
Confirmo na aplicação meteorológica do telemóvel aquilo que os meus olhos vêem. Está a chover. Em caso de conflito entre ambos, a qual deverei dar crédito? Aos meus olhos que com tanta facilidade se iludem ou à fria informação digital? Com pensamentos destes ocupo uma parte do tempo, a outra nem faço ideia o que se passa nela. O melhor é nem pensar nisso. Em tempos chamou-se a este dia Quinta-Feira de Endoenças. Dia dedicado à indulgência que assinalava também a última ceia de Cristo. Tudo isso se esfumou, pois vivemos num mundo – ou vivíamos – em que a indulgência foi substituída pela complacência. Desde que não nos aborreçam somos complacentes com os outros. Eu sempre pratiquei a autocomplacência, suporto-me assim e evito ter de aborrecer-me comigo. Olho para a rua e penso que este não será um ano de seca, mas não é seguro que assim seja. A água evapora-se com muita rapidez e não tardará os campos estarão à mingua dela, ressequidos por um Sol destituído de moderação e boas maneiras. Queria ter pensamentos elevados, mas a lei da gravidade impede-me. Tenho diversas tarefas entre mãos, mas elas deslizam pelos dedos que não consigo manter unidos. Tudo se tornou líquido nestes tempos. Hoje é quinta-feira, dia 9 de Abril. Apesar da chuva, os pássaros cantam e a Primavera desenrola o seu manto de enganos. A paisagem que me servia de horizonte desapareceu engolida pelo indisposição do clima. Não há sombras, mas a sombra cresce sobre o mundo.
quarta-feira, 8 de abril de 2020
Não é uma oportunidade
Enovelo-me em casa, sou um narrador que trocou a leviandade com que o autor o dotou pelo sentimento trágico daquilo que se vive. A tragédia é um artifício de purificação e vive da desventura daqueles que não a merecem, mas vou deixar Aristóteles a dormir o sono eterno e não o convocar para os nossos infortúnios actuais. Uma sirene anuncia que é quase meio-dia e fico na expectativa se ela assinalará esse instante em que o dia se divide exactamente em duas partes iguais, uma vivida e outra por viver. O mundo está cheio de marcas, sinais, indicações para que regulemos o nosso caminho e não nos despenhemos no primeiro precipício que nos apareça. Muitas vezes toda essa parafernália de símbolos é inútil, pois olhamos para eles, mas não os vemos. Como Édipo somos cegos para o que está sob os nossos olhos. Uma amiga minha escreveu que o que se está a passar não é uma oportunidade para nada, é uma tragédia. Há gente que não vê o que está sob os olhos e outra que vê o que não existe. Não haverá sentido mais difícil de afinar do que a visão. Talvez por isso tenho visto, nestes dias, muito cinema. Ontem quase que me comovi, não com a sorte das personagens, mas com a beleza depurada da obra. Não há coisa mais perturbante do que a beleza. De tal maneira que a arte expulsou-a do seu domínio, ou quase. Talvez a verdadeira tragédia resida na beleza, na sua transitoriedade, nesse desejo que sentimos perante ela e que nos leva a querer que seja eterna e ao mesmo tempo saibamos que o tempo a degradará até a dissolver, a transformar em nada. Hoje é quarta-feira, dia 8 de Abril. A sirene não tocou ao meio-dia, mas os pássaros cantaram dolentes e entregaram-se incautos à acrobacia do voo. Pertencem ao mundo do ar e eu ao da terra. Leio que mais de metade da população mundial está fechada em casa. Por uma vez, faço parte da maioria.
terça-feira, 7 de abril de 2020
Cenários mínimos
Um súbito raio de sol e logo me sentei na varanda para o
apanhar, mas as nuvens não estiveram pelos ajustes e cobriram-no, passados instantes,
de cinza e chumbo. No meio de tudo isto, não é propriamente a vida que encolhe
mas as possibilidades onde a haveríamos de dissipar. Os cenários minguaram de
tal modo que se tornaram minimalistas, breves alusões, traços simbólicos a
representar qualquer coisa, que começamos já a não saber muito bem o que é. O
refluxo doméstico a que se está sujeito é a negação do homem público, mas o que
significa isto ainda ninguém sabe e não sou eu que o vou descobrir. Limito-me à
minha domesticidade e domestico alguma tentação reflexiva. Bebo água. É um
imperativo biológico e uma mudança que se está a dar em mim. A Semana Santa
progride, mas também ela ficou presa ao confinamento e já li que até a
peregrinação de Maio se realizará em casa, talvez entre o quarto e sala. Um
exercício que, nos últimos dias, vou desenvolvendo é uma espécie de história contrafactual,
onde imagino o que faria se não estivesse confinado aonde estou. O resultado
não é exaltante, as alternativas que se abrem aos homens não são infinitas nem
sequer muitas. Depois, lembro-me do dito ao gosto popular contra factos não há
argumentos e abandono o meu projecto contrafactual. Hoje é terça-feira, dia 7 de
Abril. Não chove nem faz sol, nem as bruxas fazem pão mole. Inspiro longamente
e temo pela minha sanidade mental, ou talvez nem isso. Ainda não foi hoje que usei
a palavra plumitivo.
segunda-feira, 6 de abril de 2020
Sinestesias e vaticínios
Oiço o deslizar do aço nas roldanas de um estendal de roupa.
Ao mesmo tempo, a porta de um carro bate ao fechar-se. Logo de seguida, é a
pressa de um outro na avenida que o faz roncar. Agora, há um silêncio tenso, prolonga-se,
expande-se, mas um pássaro chama por outro e a tensão dissolve-se, voltam os
ruídos do mundo, embora este se tenha tornado uma mera ideia, talvez uma ideia
da razão ou o produto do foco imaginário que há em nós. Há que treinar a
audição, desligá-la dos outros sentidos, fundamentalmente da visão, o mais despótico
dos membros do nosso aparelho sensorial. Não tenho nada para contar, mas isto nem será
uma grande novidade. Volto para a audição e entrego-me a jogos inúteis. Qual o
som do vermelho, qual o timbre do azul ao misturar-se com o verde, como soaria
o amarelo sob a luz inclemente do sol? Será, pergunto-me, a tentação da
sinestesia um sintoma de que estarei a enlouquecer? Chove. Nos sites dados à meteorologia vaticina-se
que assim será durante a semana. Esta é uma época favorável aos que se entregam
à antecipação do futuro. Consultam gráficos, modelam dados, discorrem sobre
linhas e curvas. Cada época tem a sua numerologia e cultiva o seu tarot. Também a estes prognosticadores
não poupo a admiração, pois eu nem consigo antecipar o passado ou vaticinar
sobre o que aconteceu. Fiquei preso dentro do presente e o presente é, ao mesmo
tempo, aquilo que não existe e a única coisa que existe. Deveria evitar o
paradoxo, pois não tarda começo a cultivar o oxímoro e a dizer coisas como o
ruído silente desta brancura negra que cai sobre a tarde. Hoje é segunda-feira,
dia 6 de Abril. As netas deveriam, em tempos normais, estar aqui. Este ano
estava programado que iniciariam o neto na caça aos ovos de Páscoa. É o que dá
os humanos fazerem programações.
domingo, 5 de abril de 2020
Imitar a realidade
Nunca fui grande adepto de amêndoas da Páscoa, nas suas mais
variadas encarnações, mas hoje comi três, daquelas que são envoltas em
chocolate e canela. Talvez isso me parecesse um sinal de normalidade, talvez
não tivesse mais nada para fazer, talvez não tivesse qualquer razão. Nunca me
canso de louvar aqueles que têm sempre claras as suas motivações e distintos os
objectivos. Algures, num qualquer apeadeiro da minha existência, entrei em
conflito com a clareza e a distinção. Desconfio sempre dos meus motivos e há
muito que perdi o norte aos meus objectivos. Talvez os tenha vendido para serem
traficados numa qualquer feira da ladra. Tenho pena de quem os tenha comprado.
Na televisão vejo que é Domingo de Ramos e que o Papa celebra a missa numa catedral
vazia. Não tenho nenhuma interpretação para o acontecimento, apenas uma
descrição factual. Hoje o almoçou imitou os almoços dos domingos
pré-pandémicos, e nessa imitação vejo já um símbolo e não um mero facto. O que
se nos pede é talento para a mimese, o aportuguesamento da palavra causa-me um
leve arrepio, um exercício contínuo de ficcionalização. O dia segue o dress code do Inverno. Farda cinzenta e
aguaceiros persistentes, para afastar incautos, essa gente que deambula por aí
como sonâmbulos em busca de um sonho. Na minha secretária estão duas obras
cinematográficas de grande fôlego, O
Decálogo, de Krysztof Kieslowski, e Berlin
Alexanderplataz, de Rainer Werner Fassbinder. Não consigo decidir-me por
qual hei-de começar. Protelo a decisão. Talvez mais logo chegue a um acordo comigo
mesmo ou então faço exactamente o contrário do que decidir. Antes de almoço
contemplei o friso das orquídeas. Trinta por cento estão renitentes em florir. Nem
mesmo no reino vegetal há unanimidade, constato. Hoje é domingo, dia 5 de
Abril. O vento estremece as persianas e na rua uma chuva fina e acidulada fustiga
a cidade. A palavra plumitivo atravessou-me a consciência, mas não sei o que
fazer agora com ela. Talvez amanhã lhe dê algum uso ou não.
sábado, 4 de abril de 2020
Da incerteza
A expectativa de me sentar um pouco ao sol saiu gorada. O
céu cobriu-se de cinzento e as nuvens coam a luz, deixando passar uns raios
difusos que descem sem ânimo sobre o mundo. O vento faz ramalhar as árvores e a
voz de um pai chama continuamente pelo nome do filho. Ocupam toda a praceta
aqui em baixo, aproveitando o espaço que, por falta de transeuntes, se tornou
excessivo. Em tempos de grande incerteza manifesta-se à luz do dia, amplificada
pelo ócio e a tecnologia, uma plebe opinativa cheia de certezas, das mais
estapafúrdias e inverosímeis certezas, génios a quem tínhamos recusado a
reconhecer-lhe a vesga genialidade que os atormenta. A propensão para a vaidade
e o dogma é sempre grande. A colheita de indignados e irados também começa a
inchar. A vida foi sempre incerta. Um acidente, uma doença súbita, e a pessoa
desaparecia. Agora que todos os dias a contabilidade é actualizada, somos
confrontados com a pergunta se acabaremos por entrar no número dos infectados
e, estando neste, a que percentagem pertenceremos, à dos que se salvam ou à dos
que se perdem. Esta consciência sobrecarregada de que a vida é incerta tem o
condão de atormentar aqueles que se esqueceram da realidade e tinham no hábito
uma defesa para o medo de uma existência acidental. Um pássaro canta. Não o
vejo, mas oiço-lhe o conselho. Não é altura para meditações dessas, trina ele
com tonalidade sarcástica. Respondo-lhe que sim, que tem imensa razão, mas nem
sempre fazemos aquilo que queremos. Ele olha-me condescendente e cala-se. Ao
longe, corvos passeiam-se entre árvores, exibem com orgulho o brilho da
plumagem negra. Chamo-os, mas não me ouvem. Observo os telhados e vejo alguns
anjos. Conversam, riem-se. Uns fumam, outros bebem. Talvez contem histórias
indecentes sobre os homens. Talvez tracem planos para o resto da tarde ou para
a noite. Hoje é sábado, dia 4 de Abril. Os dias encadeiam-se uns nos outros com
morosidade, como se nos dissessem há que beber o cálice até ao fim. Bebamos,
então.
sexta-feira, 3 de abril de 2020
A pequenez da realidade
De todos os dias da semana o que mais sofre da presente
indiferenciação será a sexta-feira. Funcionava, antes da instalação da era
viral, como um marco que anunciava uma transmutação no tempo, o fim dos dias
profanos, onde os homens se entregavam aos negócios que os imperativos da
necessidade e do desejo impunham, e a chegada do tempo sagrado do ócio ou de
qualquer festividade, nem que seja a festa de estar só, que havia de lhes dar
ânimo para que, chegada a segunda-feira, aceitassem que a míngua lhes reimpusesse
a canga e eles se entregassem ao ajoujamento que lhes mataria a fome. Olho para
a frase e descubro-a enorme, mas também eu estou indiferente à elegância da
escrita, à extensão das frases, ao acerto na escolha dos vocábulos, ao alinhamento das sílabas. De manhã,
sentei-me no chão de uma das varandas e fiquei ali a apanhar sol. Consta que
faz falta ao organismo. Nunca me imaginei numa varanda em tal função. Arrependo-me
de não ter comigo nenhum dos meus panamás, haveria agora de me dar jeito. Um
dia destes assim sou visto sentado à varanda com um chapéu feito de folha de
jornal, se por acaso ainda houver por casa algum. Oiço ao longe o barulho de
uma rebarbadora. Imagino-lhe o disco a girar a alta velocidade, a entrar no ferro,
ferindo-o, primeiro, ao de leve, para depois o decepar, ouvindo-se o tilintar
metálico da parte cortada a saltitar no chão, antes de se aquietar e imóvel entrar
no meu esquecimento. Os dias continuam a crescer, indiferentes à sorte dos
homens. Alguém manda-me uma mensagem com uma fotografia e pergunta se sou eu. Não
sou, o que me deixa mais tranquilo. Bebo água, espreito um vídeo em que o meu
neto faz umas experiências sobre o funcionamento do mundo e espero. Hoje é
sexta-feira, dia 3 de Abril. Uma nuvem tapou o sol e lembro-me de que este ano a
família não se reunirá no almoço de Domingo de Páscoa. As coisas são o que são.
Nada melhor que uma tautologia para engrandecer a pequenez da realidade.
quinta-feira, 2 de abril de 2020
Um mundo possível
Os dias correm lassos, tomados pela acédia, esse pecado
capital que abatia o ânimo dos ascetas e os desviava dos cuidados que a alma e
o corpo exigiam. Depois, foram-lhe dando outros nomes como preguiça ou
indolência, mas em nenhuma dessas variantes se compreende a angústia e o estado
de torpor que sentiam aqueles que sofriam de acédia. Era uma doença, apesar de considerada
pecado, que atingia os que se sujeitavam, por motivos do espírito, à vida solitária.
Se se continuar assim, muitos serão contaminados por esse estupor. O dia
acordou alegre, com um sol primaveril a animar a manhã, mas o céu vai-se
enchendo de nuvens e talvez a alegria seja curta. Consulto um site que vive do
estado dos meteoros e sou informado que a partir de sábado volta a chuva. Ficará,
diz a profecia, quase uma semana. Domingo de Páscoa fará sol. Ou não. Podia
aproveitar para arrumar livros, CD, DVD ou mesmo a mim. A desordem ainda não é
um caos e, quanto a mim, já é tarde para arrumações e encontrar uma ordem que
vença o caos. Se tivesse estudado Física, agora poderia construir umas belas
metáforas com a entropia e haveria de parecer pessoa sapiente. Um carro passa
numa das ruas laterais. É um acontecimento, como aqueles que se davam quando, num
passado tão remoto que nem eu me lembro, um automóvel surgia numa aldeia, para
lhe quebrar o silêncio e abrir as bocas de espanto, enquanto as mãos faziam o
sinal da cruz e os mais rápidos se persignavam, não fora aquilo uma emanação
dos poderes ínferos. Intuo que os assunto começam a faltar-me à força de tanta
contenção, uma bela desculpa para quem tem imaginação fraca. Hoje é
quinta-feira, dia 2 de Abril. O pequeno bosque da escola aqui ao lado lança
sobre o chão sombras breves e na praceta não se vê vivalma. Talvez de todos os
mundos possíveis, o da humanidade recolhida não seja dos piores, ocorre-me.
quarta-feira, 1 de abril de 2020
Um dia sem tino
Abril nasceu com ar de desterrado, alguém a quem tenham
imposto a pena de um longo exílio, dez anos de ostracismo. Envolto em chuva fria,
começa a viagem desapegado das dores dos homens. Não sei se para compensar o
olímpico desdém do recém-nascido, oiço as Canções
do Pôr-do-Sol, de Frederick Delius. Hoje não há sol para se pôr e o
anacronismo da música deu-me um súbito contentamento. Talvez tudo se resuma a
um desarranjo cronológico, a uma crise gerada pela mudança da hora ou pela inconstância
do calendário. Passo a mão pelos cabelos, olho para a rua, respiro lentamente e
deixo que a voz do barítono ecoe, até que a contralto a interrompe. Também para
mim deveriam contar os óstracos para me banirem desta república. Não que seja cidadão
influente, mas porque há que limpar a cidade de indigentes e eu já não consigo
disfarçar a minha aptidão para a inópia. Usei este termo que ninguém usa apenas
para não usar indigência, que ficava mal naquele lugar e há que ter cuidado com
o que fica mal, nesta hora em que ninguém nos vê. Consolou-me hoje a palavra de
um filósofo ao dizer que as pessoas habituadas
a seguir as reformas linguísticas são mais fáceis de manipular. Sinto-me
assim protegido contra todas as manipulações, pois sou um fervoroso defensor da
contra-reforma linguística, ortográfica, gramatical e o mais que quiserem. Sou
um velho reaccionário linguístico e por mim poderiam restaurar a ortografia do
tempo da monarquia. Como se vê, o isolamento social não é o mais indicado para
cultivar a sensatez dos indivíduos, ainda por cima num dia sem tino como este. Hoje é quarta-feira, dia 1 de
Abril. Parece confirmar-se o adágio popular de que teremos águas mil. A
sabedoria comum fascina-me e tomo-a sempre por verdadeira, mesmo que o mês seja
de seca extrema. Há que preservar as tradições.
terça-feira, 31 de março de 2020
Março acaba
Imagino que esteja frio lá fora. O aquecimento central tem
trabalhado com zelo e um site de
meteorologia confirma que a temperatura está baixa para a época. O ano passado,
por esta altura, há muito que a caldeira não trabalhava. Também as estações e
os meses são volúveis, incapazes de seguirem um plano uniforme, planeado com
cuidado. Lastimo que a natureza tenha trocado a burocracia pelos impulsos
espontâneos, frutos do acaso e filhos da incerteza. Entrega-se a variações
apenas para se distrair e confundir os mortais, já de si tão confusos. Chega
até mim o zunir de um aspirador, alguém que num apartamento vizinho mata o
tempo com excessos de limpeza e, sabe-se lá, de arrumações. Também eu precisava
de arrumar a minha mente, mas não encontro armários disponíveis e as estantes
existentes não têm prateleiras. Deveria haver um Ikea para consciências em convulsão. Sou obrigado a amontoar
informações, sem que um princípio de ordem se estabeleça e num qualquer futuro
me permita, sem tropeções, usá-las. Encolho os ombros. Qual a importância de
falar em bugalhos mesmo que me perguntem por alhos? Deveria censurar esta
tendência para recorrer a ditos ao gosto popular, mas talvez seja tarde para arrepiar
caminho. Já pensei em começar a descrever as paisagens que se avistam das
diversas janelas do escritório, mas ainda não estou suficientemente
enlouquecido. Recosto-me na cadeira e deixo-me invadir pela música para piano
de Fauré. Devolve-me alguma sanidade. Depois, olho lá para fora e tudo parece
normal. Um pássaro voa de uma árvore para outra, um carro contorna uma rotunda
e as acácias, esgalgadas, vão-se cobrindo de um folhedo verde que as há-de
compor. Hoje é terça-feira, dia 31 de Março. O mês acaba envolto numa capa cinzenta
de tristeza, sem aura nem fortuna, contente por ir desaguar no dia das
mentiras.
segunda-feira, 30 de março de 2020
O verdadeiro nome
Recebo dois vídeos no telemóvel. O meu neto, do alto dos dezasseis
meses, exibe-se para um público restrito ampliado pela câmara de telemóvel. Faz
grandes discursos, mas fala numa língua que deixei de perceber há muitas
décadas. Quem sabe se os discurso que fiz nos meus dezasseis meses não foram os
mais sensatos e profundos de toda a minha vida. Talvez nesse tempo designasse
as coisas pelo verdadeiro nome delas e que, com a aprendizagem da língua, começasse
a falhar irremediavelmente a nomeação do mundo. Hoje levantei-me cedo. O dia
nascia enfastiado e assim foi crescendo. Agora que atingiu a maioridade não
apresenta melhoras. Progride com tédio, faz umas caretas de nojo, suspira
maçado. Tento entabular conversa com ele, mas ignora-me e prossegue o seu
caminho tomado pela náusea e má educação. Um existencialista da rive gauche. Oiço um bater de asas e
volto-me. É um pombo. Nos campos ao longe avisto ciprestes. Distribuem-se ao
acaso. Dizem que são memórias que ficaram de umas escaramuças havidas por aqui aquando
das invasões francesas. Chegam a durar mil anos, descubro em pesquisa rápida. Consola-me
a existência destes seres que ultrapassam a medida humana, sem que ostentem
sobranceria nem sejam dados a chamar a
atenção para si. Crescem em silêncio e contenção. Espera-me mais uma
vídeo-reunião. Colecciono-as e não tarda serei especialista. Hoje é
segunda-feira, dia trinta de Março. O mundo encolhe, enquanto os meus olhos se
esforçam por alargar o horizonte. Começo a ficar cansado de conviver comigo.
domingo, 29 de março de 2020
Mudança da hora
Hoje a tarde chegou mais cedo. Março declina envolto numa
melancolia de nuvens, a luz difusa exausta pela longa cavalgada que a trouxe do
Sol à Terra. O pretérito perfeito do verbo trazer, agora usado, fez-me parar.
Que estranho verbo, cheio de irregularidades na conjugação. Vá uma pessoa
investigar-lhe a vida e ainda descobre coisas que não devia. Concubinatos
secretos, casamentos paralelos, dívidas de casino, mancomunações quadrilheiras,
sabe-se lá mais o quê. Há verbos assim. Procura-se-lhe a regularidade e
só se encontram anomalias, como se tivesse sido fruto de uma linha de montagem
deficiente ou a criação d'un génie malin,
aquele diabrete que assediava o pobre Descartes nos seus ócios meditativos. Não
paro de olhar para o relógio para me certificar das horas. Também eu preciso de
certezas e de estar certificado, de vencer com método a dúvida a hiperbólica.
Fora eu um relojoeiro e tudo seria mais fácil, afinaria o relógio para um
futuro mais tranquilo, caso esse existisse. Não me parece que seja de utilidade
pública esta minha deriva da gramática para o Descartes e deste para a
relojoaria. Hoje fui visitar três vezes o outro lado da casa. Pareceu-me que
estava no mesmo sítio que ontem e que nele nada mudara, mas não estou certo. Aproveitei
os passeios e espreitei as torres do castelo, contei os carros que passam na Sá
Carneiro, assegurei-me que os baloiços estão protegidos com fitas plásticas
brancas e vermelhas, para impedir que crianças com pais desavisados andem por
ali a baloiçar-se. Contei as orquídeas floridas e descobri que sessenta por
cento já o fez. Respirei fundo e atendi um telefonema. Confirmei que a hora
tinha mudado e que talvez o relógio de parede estivesse agora certo, se não era
só esperar para a próxima mudança. Almoçarei mais tarde e talvez ainda tenha
tempo para contar o sonho que imaginei que tinha tido esta noite. Havia um anjo
de pedra, disso estou certo, mas quem é que quer saber de pedras e de anjos? O
melhor é inventar o sonho só para mim. Hoje é domingo, dia 29 de Abril. As
igrejas estão fechadas e nelas não haverá missa. Tenho de ir. Chamam-me para o
almoço.
sábado, 28 de março de 2020
Dos nomes e outras coisas incertas
Não vejo razão para dar ao dia de hoje o nome de sábado ou outro. Recordo-me de imediato que não haverá para qualquer coisa que seja razão para lhe dar o nome que tem ou tão pouco denominá-la de forma diferente. Afasto estes pensamentos penumbrosos para não me afogar num oceano de contradições, agora que faço parte de um imenso arquipélago, cujas ilhas deixaram de ter modo de se ligarem. Fui a uma das varandas, onde havia sol. O ar era frio e um vento irritante batia-me de frente, trazia-me notícias que não consegui ler. Sim, há um livro da natureza cheio de mensagens, mas estão de tal modo cifradas que não sei descodificá-las. Galileu, a quem por vezes se atribui o cunhar da designação, julgava que esse livro estava escrito em caracteres matemáticos, mas outros antes dele, na obscura Idade Média, criaram livros da natureza, onde esta se descrevia em latim. Não sei porque me ocorrem estas coisas, embora esteja habituado a que me ocorram muitas coisas que não interessam para nada nem a ninguém. Não sei que impulso me moveu, pus-me a escutar Canto Gregoriano e logo me imaginei como um monge que leva a vida entre a cela e o lugar de culto, onde canta um Ofício de Trevas, nestes dias em que todos eles são Sextas-feiras de Paixão. Escrito isto, rio-me. O espírito hiperbólico voltou-me, como se fosse a anunciação da normalidade. Não o é. Olho para a rua e fico fascinado com o verde cinzento da folhagem das oliveiras que, na escola ao lado, foram deixadas vivas como testemunho do passado. O sol ilumina-as, desenha nelas paisagens fantasmagóricas a que o vento incita à mobilidade, numa cadência incerta, hesitante. Hoje é sábado, dia 28 de Março. Oiço vozes na praceta aqui em baixo. Depois calam-se, e apenas o canto dos pássaros vem da rua. Os monges continuam os seus cânticos pascais e a tarde progride indiferente por dentro das paredes translúcidas do dia.
sexta-feira, 27 de março de 2020
Desenhar espirais
Desenho espirais no tampo da secretária. Fixo um dedo num
ponto do vidro, julgo que os geómetras lhe chamam pólo, e depois traçando
curvas cada vez mais amplas vejo-o afastar-se desse centro onde tudo começou.
Parece uma alegoria aos dias de hoje, mas não era essa a intenção. Quando paro
o exercício circular, os meus olhos não detectam vestígio da actividade, e essa
é outra alegoria. Faça o que fizer, daqui a um tempo ninguém encontrará sinal
ou pista que conduza ao que fiz, ao que fui, ao que desejei. Não lamento que
seja assim e será mesmo uma boa razão para ficar grato com a ordem do mundo e a
natureza das coisas. A tarde desliza nimbada por uma luz esquiva, sorrateira,
que dardeja a terra a medo, como se também ela temesse a contaminação.
Cresceram muito as árvores do pequeno bosque da escola aqui ao lado, erguem-se
para os céus, mas não rogam por nós, ou será que o fazem e nós não sabemos
escutar? Abri a porta da varanda e entrou uma mosca. Parece perdida, voando
para aqui e para ali, como se a sua bússola se tivesse desregulado. Hoje estou
com uma forte inclinação para o discurso alegórico. Melhor era o tempo em que
as hipérboles me ocupavam o espírito e desse modo me entregava a discursos
fantasiosos, onde o exagero expandia os textos para ocultar o grande vazio que
há em mim. Estou mais contido. Hoje participei em duas reuniões virtuais e
ainda me espera uma terceira. Sou para mim mesmo uma imagem virtual, uma
fotografia de passe inquieta no canto de um computador. Mal frequento a
televisão, como é hábito, e sou frugal nas notícias, há que evitar a realidade.
Hoje é sexta-feira, dia 27 de Março. Vou a uma dessas aplicações que
virtualizam o mundo e imploro, como se distribuísse imperativos, um vídeo do
meu neto. Vou desenhar mais espirais.
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