Pensei que se tinha perdido no caminho entre Inglaterra e esta casa onde me recolho, mas era um pensamento precipitado. Chegou hoje, para minha surpresa, pois o site continua a dar informações contraditórias, o livro da filósofa Mary Midgley, com o título The Myths We Live By. Quase no início, ela escreve Mitos não são mentiras, nem histórias isoladas. São padrões imaginativos, redes de símbolos poderosos que sugerem caminhos particulares de interpretação do mundo. Isto reconduziu-me ao Iluminismo, aos séculos XVII e XVIII, e à tentativa desesperada dos homens se emanciparem dos mitos. A isso chamou-se o triunfo da razão. Esse triunfo, porém, nunca deixou de ser uma fantasia, pois o triunfo da razão é ele próprio um mito que enquadra a interpretação do mundo. Imagino, não poucas vezes, que a razão não é mais do que uma imaginação coagulada, despida da sua fluidez, onde os mitos secaram, como secam as frutas expostas ao sol. Perdem a humidade. Eu, por exemplo, expando-me numa mitologia pessoal onde surjo como um narrador sem narrativa, um herói sem aventuras, um pensador sem pensamento. Perante estas autodescrições, pergunto-me se elas serão, enquanto figuras de retórica, oxímoros ou paradoxos. Imagino que no interior de cada mito exista um núcleo contraditório e é a partir desse núcleo tenso que emergem as redes simbólicas. Contudo, isto não é pensamento que se tenha a esta hora em que a tarde declina e com ela a luz e a minha vontade de escrever.
terça-feira, 6 de fevereiro de 2024
segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024
Atenções
domingo, 4 de fevereiro de 2024
Uma escultura
De onde me encontro posso ver uma escultura em bronze, datada de 1956/57, de Lagoa Henriques, uma figura feminina com bicicleta. Está num conhecido complexo habitacional de Lisboa, importante na história da arquitectura moderna portuguesa. A figura feminina, penso ao contemplá-la na sua nudez, obedece a um padrão de beleza que, entretanto, caiu em desuso. Isto mostra, entretive-me a pensar, que o desejo tem uma forte dimensão social. Aquilo que é desejável eroticamente obedece aos padrões impostos pela moda, o que significa que a pulsão natural é envolvida por uma capa de carácter cultural. Ora, é esta capa que permite não apenas a diferenciação do que é desejável ao longo do tempo, como uma diferenciação social entre os que desejam segundo os modelos mais sofisticados e os que desejam segundo modelos mais simples e arcaicos. Esta diferenciação trazida pelas dinâmicas culturais não se instala sobre uma igualdade natural, pois igualdade na natureza parece ser um bem escasso, como se pode constatar pelo facto de todos os seres humanos terem impressões digitais diferentes, mas substitui essas diferenças dadas por diferenças criadas socialmente, as quais podem acentuar as hierarquias naturais, mas podem também subvertê-las. Olhando para a escultura de Lagoa Henriques, volta a questão da natureza de um valor como a beleza. A diferenciação no tempo – e também no espaço geográfico – do que se considera belo é um argumento a favor do relativismo cultural. Contudo, talvez seja possível compatibilizar a ideia de que a beleza é um valor objectivo e universal com este relativismo cultural. Para os domingos, dias sagrados de descanso, a melhorar solução de compatibilidade teria uma tonalidade platónica. Existe a priori uma ideia de beleza, a da verdadeira beleza, uma ideia objectiva e universal. As ideias relativas provenientes da cultura são interpretações limitadas e variáveis dessa ideia, a qual é apenas entrevista como uma sombra. Amanhã, poderia encontrar outra explicação, mas por hoje esta basta. Tenho de ir almoçar com as netas.
sábado, 3 de fevereiro de 2024
Uma derrota
Sem uma aventura para adicionar à gesta gloriosa em que transformei o meu quotidiano, resta-me narrar uma desventura. Dirigi-me a uma farmácia, longe de casa, para comprar um certo medicamento. Receita electrónica no bolso, isto é, no telemóvel, passada em meados de Dezembro. Das seis unidades receitadas, tinha adquirido apenas duas. Restavam-me quatro. Quando mostro a prescrição, recebo a informação de que todas as unidades tinham sido dispensadas, não me restava nenhuma. Fiquei perplexo, quero dizer, fiquei com cara de parvo, sem saber o que dizer, perante alguém que nunca me vira. Só comprei duas embalagens, aliás, nem vendem mais, disse, como se apresentasse um argumento decisivo para que me vendessem o medicamento. A funcionária – talvez fosse a dona da farmácia, sabe-se lá com quem se fala numa farmácia desconhecida – para me consolar, disse não se preocupe, pois eu também não tenho essa versão do medicamento. Respirei fundo. Estar ali o medicamento e não o poder levar era muito pior do que não haver medicamento. Chegado a casa, fui investigar a aplicação e lá percebi que na farmácia que frequento devem ter cometido um erro. Venderam-me duas embalagens e consideraram que me tinham dispensado as seis. O meu problema com esta desventura não é a falta do medicamento, mas não saber em que página da minha epopeia ela cabe. Um herói que se preze não tem apenas vitórias. As derrotas, desde que não contumazes, testam a sua resiliência, a sua capacidade de ultrapassar os momentos amargos. Um momento amaríssimo é aquele em que se utiliza a palavra resiliência e eu acabei de o fazer.
sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024
Da euforia à apatia
O mundo anda inflamado, ouvi. Como a conversa não era comigo, assenti, mas apenas mentalmente, sem deixar transparecer concordância ou, tão pouco, ter escutado a afirmação. Depois, o pensamento, o meu, apresentou a si mesmo a natureza da inflamação, o calor deste Inverno. Parece ainda não ter sido descoberto um anti-inflamatório eficaz para estas perturbações, pensei. Sexta-feira, o dia desliza insensato para o seu fim e eu acompanho-o, sou arrastado pela voracidade que se apoderou do calendário. Há pouco subi e desci uma certa artéria da capital. Fi-lo propositadamente devagar, tentando enganar o tempo e esperando que ele diminuísse a sua marcha. Manteve-se impávido, ignorando-me, ignorando a minha estratégia, fazendo finca-pé na fidelidade que tem às dimensões das suas divisões, recusando-se a que um segundo dure mais que um segundo. Esta recusa, arrasta todas as outras. Como se vê, a fidelidade nem sempre é uma virtude. Por falar em fidelidade, disse o padre Lodo, com quem almocei e contara a minha artimanha, li que o mundo está a renunciar ao sexo, que se passou da euforia da libertação sexual à apatia da libertação do sexo. No meu país, a Itália, prosseguiu vivaz, os estudos mostram que um milhão e seiscentos mil jovens, entre os 18 e 35 anos, nunca tiveram qualquer relação sexual e que um terço dos jovens até aos 25 anos apenas teve sexo virtual. Há 220 mil casais estáveis, nas mesmas idades, que são sexualmente abstinentes. Isto é um problema, exclamou. Olhei-o divertido. Parece que a revolução sexual dos anos sessenta foi muito mais eficiente em gerar o desprezo pelo sexo do que a prédica de dois mil anos da Igreja, respondi. Olhou-me compadecido da minha inclinação para a heresia. A Igreja, disse, nunca desprezou o sexo, apenas quis fazer dele uma coisa rara e, por isso, valiosa, ripostou. Tão valiosa que deve estar encerrada na esfera das coisas sagradas, concluiu. Sim, sim, disse eu, mas também admitia excepções para os membros do clero. Esses estavam livres da sacralidade do sexo e abstinência era coisa para os outros. Franziu o sobrolho, pegou na garrafa de vinho e ao ler o rótulo, exclamou que o sexo não é tudo na vida e que até na região de Lisboa se encontram óptimos vinhos. Coisa com que concordei sem vontade de proferir nova heresia.
quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024
Subir para baixo
Começou Fevereiro. Quando, ao levantar-me, constatei o facto, surgiu-me uma inquietante dúvida no espírito. Se Janeiro tem o seu nome em honra do deus Janus, o deus bifronte, e Março honra Marte, o deus da guerra, a que deus, caso seja algum, honrará Fevereiro, esse mês amputado de dias. Pensei que talvez fosse uma divindade que tivesse sofrido alguma excisão. Por exemplo, poderia ser um deus a que tivessem excisado um dente, um dedo. Investiguei e descobri que Fevereiro vem do latim Februarius, nome inspirado em Fébruo, o deus da morte na mitologia etrusca ou na sabina, não se tem a certeza. Eis uma descoberta tétrica, mas logo se percebe a razão. Fevereiro, isto é, Februarius, era o 12.º mês, e último, do calendário lunissolar romano extinto em 46 a.C. O ano morria em Fevereiro, por isso é absolutamente racional a escolha do deus da morte como inspirador da denominação do mês. Resta, todavia, uma discussão a fazer em torno de Fevereiro. Passar de último mês do ano para segundo, conforme os calendários juliano e gregoriano, foi promoção ou despromoção? Apesar de a transição de 12.º para 2.º não lhe ter retirado o estatuto de mês amputado de dias, há uma notória despromoção funcional. Agora, Fevereiro liga Janeiro a Março, dois meros meses. Antes, porém, ligava um ano ao outro. Era um mês terminal que anunciava um novo ano, uma nova vida, um novo mundo. Eis um exemplo que todos devemos ter em atenção. Quantas vezes subir numa hierarquia não passa de uma despromoção? Muitos são aqueles que sobem para baixo.
quarta-feira, 31 de janeiro de 2024
Liberalismo climático
Janeiro despede-se em clima primaveril. Trata-se de uma vitória assinalável do liberalismo climático. Depois de tanta insistência por parte dos defensores do clima livre, S. Pedro decidiu acabar com a regulação meteorológica, a qual já sofria de algumas deficiências. Entregue a si mesmo, o clima aposta em trazer a Primavera ou mesmo o Verão em pleno Inverno, ou prolongar Verões até ao começo do Inverno. Dizem os liberais climáticos que o clima desregulado atende melhor aos desejos do mercado, e aquilo que o mercado gosta é de calor, tempo estival, dias propícios para ir para a praia. Eis uma explicação que ultrapassa em rigor analítico as que são dadas pela ciência sobre as alterações climáticas de origem antropogénica. De facto, e aqui os cientistas geofísicos têm razão, o clima está a mudar devido ao homem, não, porém, à sua acção produtora de dióxido de carbono, mas ao seu desejo – um desejo insensato, sublinho – de praia, de torrar ao sol, de mergulhar nas águas do oceano, de se enfarinhar na areia. Por isso, este Janeiro do qual nos despedimos, foi o que foi. Uma resposta do clima à procura no mercado.
terça-feira, 30 de janeiro de 2024
Um dia glorioso
Alguém, um desocupado, por certo, está a perfurar uma parede. Ao mesmo tempo perfura-me o sossego, a paciência e a atenção. Todas as máquinas deveriam ter um processo de absorção das ondas sonoras que, ao trabalhar, produzem em abundância. Acumulavam as ondas sonoras e transformavam-nas, posteriormente, em água, o que ajudaria a combater, não com pouca eficácia, a seca. Como se vê, bem tento contribuir para melhorar o mundo, mas ninguém parece interessado nas magníficas ideias que me ocorrem. Só nesta jornada a verrumar paredes, se poderia produzir uma meia dúzia de metros cúbicos de água. Levantei-me relativamente tarde, pois, ao acordar, tive uma súbita iluminação. O melhor é pegar no telemóvel e ir validar as facturas na aplicação. Não tarda é tempo de IRS. Falta menos de um mês para acabar o prazo e, antes que me esqueça, resolvo já o assunto, enfrentando o dragão do fisco com a lança acerada da prontidão. É verdade que segui aquele conselho lido num dos livros da escola primária. Não guardes para amanhã o que podes fazer hoje. Não guardei. Tinha mais de quatrocentas facturas para classificar e validar, coisa que fiz no conforto da cama. Esta foi a minha aventura do dia, uma peça fundamental na gesta que me conduzirá à glória e espalhará a minha fama num horizonte tão amplo quanto aquele que o meu irmão de aventuras, o fidalgo D. Quixote, alcançou na sua vida heróica. O dia está ganho, uma ideia genial capaz de salvar o planeta e um combate com o dragão fiscal são aventuras mais que suficientes para um dia só. Contudo, há dias assim, tenho ainda de enfrentar a víbora da burocracia. Chegaram-me uns papéis para ler e dar o meu assentimento. Se utilizei uma lança para derrotar o dragão do fisco, terei agora de usar uma espada para cortar a cabeça da víbora da burocracia. Um dia glorioso.
segunda-feira, 29 de janeiro de 2024
Viandâncias
Hoje comecei o dia demasiado cedo. Ainda por cima a noite foi mal dormida, com tempo para pensar em adormecer e tempo em que, o pensamento derrotado, me entreguei à leitura, não sem antes ir tomar um comprimido para acalmar uma certa dor que teimava pairar num dos joelhos. Há dores que durante o dia não damos por elas, tão pequenas e insignificantes são. As mesmas, na sua insignificância, durante a noite, tornam-se um adversário poderoso de quem quer dormir. Não há maneira de chegar a um tratado de paz, que permita compatibilizar a vocação da dor para doer e o desejo do paciente em conviver com bonomia com essa inclinação que habita qualquer dor. Entregue à leitura, sob o efeito químico do colírio seleccionado, dei conta de a dor se ir afastando, não com pressa, mas com um passo aceitável. Quando ela se retirou por completo, pus a leitura de lado e adormeci. Sono de pouca dura, pois o alarme logo tocou e tive de me levantar. Um compromisso aguardava-me e eu não gosto de fazer esperar os compromissos. Cheguei a tempo, isto é, ainda antes da hora marcada. Depois do compromisso, fui caminhar para me esquecer do que tinha estado a tratar. Estava a meio da manhã e o sol tentava romper as nuvens, o que conseguiu a certa altura. Na viandância, não encontrei ninguém conhecido, mas agora inventei uma palavra. Os dicionários não registam viandância, mas o que fará um viandante se não a viandância? Se um peregrino faz peregrinações, um viandante só pode fazer viandâncias. Faço imensas viandâncias sem sair do mesmo lugar. Ponho-me a viandar, mas nunca saio de onde estou. Acontece também que, muitas vezes, farto-me de viandar para chegar ao sítio onde estava, aquilo que no jogo do monopólio se chama ir para a casa da partida. Bem, não sei se era nesse, se era no jogo da glória, ou noutro qualquer.
domingo, 28 de janeiro de 2024
Cinza de domingo
Domingo de cinza. Uma luz difusa atravessa o muro de nuvens e abre-se, esbranquiçada e plangente, sobre a cidade. Um tempo em que ressoa no fundo do coração um Stabat Mater dolorosa iuxta crucem lacrimosa dum pendebat Filius. Tudo isto para dizer que apesar de se estar longe da Quaresma, o domingo parece uma sexta-feira de Paixão. De manhã, fui caminhar, com esperança de me poder reconciliar, daqui a uns tempos, com a balança. Neste momento, entre mim e ela não há conflito real, pois ela recusa a devolver-me o peso. Preciso de mudar-lhe a pilha, mas, acto falhado, tenho-me esquecido de a comprar. Olho para a pilha e vejo um disco achatado. O pior é que há inúmeras versões destes discos achatados e só uma delas se adapta à minha inimiga de estimação. Não faço ideia qual é e ainda não me dei ao trabalho de remover a gasta para a levar ao sítio onde se vende aquele tipo de coisas. Enquanto caminhava, ia meditando na diferença dos hábitos de hoje e os de há cinquenta anos. Naqueles dias, os domingos eram coisa séria. Hoje, porém, são leves e desportivos. Antigamente, as pessoas iam à missa preocupadas com a alma. Hoje, caminham, correm, fazem desporto, preocupadas com o corpo. Se alguém argumentar que as dores de alma são piores que as do corpo, ninguém acreditará. Rendemo-nos ao império do visível. Os corpos vêem-se, as almas não. Olho pela janela e parece que o tempo se suspendeu. A realidade imobilizou-se e imóvel persiste diante dos meus olhos. Nem o vento abana a ramagem das árvores, nem pessoas passam na praceta, nem carros rasgam a avenida. Procuro os corvos que costumam voar, ao longe, saltando entre árvores, mas também eles se imobilizaram. Toda a cidade entrou no domingo e parece não querer sair dele. Oiço, agora, um carro, mas não o vendo sou forçado a admitir que talvez não seja um carro, mas apenas uma turbulência sonora que imita o barulho de um carro para me iludir.
sábado, 27 de janeiro de 2024
Vulgaridades
O meu desejo é de dormir uma boa sesta. Falta-me, porém, uma desculpa aceitável. Por exemplo, ter dormido mal durante a noite. Esta noite, talvez para contrariar a priori o meu desejo deste momento, dormi bem, sem interregnos para adiantar leituras. O drama humano, talvez a tragédia, é a necessidade de encontrar desculpas – chamamos-lhes, muitas vezes, justificações – para fazer certas coisas. Sem desculpas, há acções que não têm qualquer direito à realização, mas uma boa desculpa torna-as legítimas. No que escrevi, há um equívoco. Não se trata de um drama, muito menos de uma tragédia. Serve-lhe bem um título de Balzac, a comédia humana. A comédia retrata as acções – e também as paixões – dos homens vulgares, enquanto a tragédia mima as acções dos homens nobres. A mim apenas cabe a comédia. A comédia não é aquilo que faz rir, embora os dicionários se tenham convertido a essa acepção, mas o que permite ver a vulgaridade que há nos seres vulgares. A minha vulgaridade está, neste momento, toda ela na propensão para dormir, para deixar cair o queixo sobre o peito e ressonar, enquanto um fio de baba se escapa da boca. A descrição é nojenta, mas não se pode esperar da vulgaridade de uma pessoa vulgar outra coisa. O nojo habita naquilo que é comum. Ora, não sendo da estirpe de um Édipo, filho de Laio, nem de Agamémnon, filho de Atreu, só me cabe a vulgaridade das coisas que acontecem aos mortais desprovidos de laços sanguíneos com os deuses. Tenho a vantagem de não matar o pai e casar com a mãe ou, espero, de não ser assinado pela mulher e o amante desta, destinos que os deuses concederam como uma graça ao filho de Laio e ao filho de Atreu. Os deuses são caprichosos. Talvez por isso foram substituídos por um Deus único que, ao olhar para a justiça, não faz acepção de pessoa e não distingue aqueles que merecem uma tragédia e aqueles cuja vida não passa de uma comédia. Agora, vou dormir a sesta.
sexta-feira, 26 de janeiro de 2024
Sem porquê
Anoiteceu. Os dias estão a crescer há mais de um mês, mas ainda são pequenos. A natureza progride lentamente, oiço-me pensar. Depois, rio-me. Não, a natureza não progride. Nela não há progresso nem retrocesso. Há apenas o acontecer, mas esse acontecer não significa nada a não ser o próprio acto de acontecer. Progresso e retrocesso só podem existir onde existe um sentido. É este que permite a existência de objectivos e finalidades, os quais são os marcos miliários, pelos quais se medem avanços e recuos. Ora, naquilo que apenas acontece não há avanços nem recuos. Pensar nisso, pensar que a generalidade das coisas apenas acontece, conduz a uma vertigem da nossa consciência, a qual se recusa a conceber que tudo pode ser destituído de sentido, incluindo ela e aquele em que ela vive. Um certo filósofo alemão do século passado, cuja fama não foi comprometida pelas ínvias opções que fez a certa altura da vida, alicerçou a sua glória na tese de que toda a história da filosofia é a história do esquecimento do ser, do esquecimento da pergunta pelo ser. Podemos pensar que esse ser esquecido não é outra coisa senão o puro acontecer sem qualquer significado senão acontecer. Será destituído de sentido fazer perguntas sobre aquilo que não tem sentido. Este texto é prova de que estou a entrar nos dias de ócio. Só a perspectiva da ociosidade me poderia levar a escrever coisa tão ociosa, tão destituída de sentido. Tivesse este narrador talento e teria escrito a apenas uma frase, aquela que Angelus Silesius, para sua eterna glória, escreveu, a rosa é sem porquê.
quinta-feira, 25 de janeiro de 2024
Trolls
Janeiro, o mês que já esteve envolvido em chuvas e frios, abriu-se numa Primavera temporã, fechando-se ao negro das nuvens pesadas e ao fustigar dos chicotes do vento. Este desarranjo entre o clima e o calendário daria se não uma epopeia, pelo menos uma ode. Um autor preocupado com a deficiente gestão das estações acabaria por compor uma tragédia, onde um Édipo se haveria de cegar ou uma Antígona se entregaria à morte. Descubro que Frederico Lourenço, na sua tradução da poesia completa de Horácio, decidiu dar títulos aos poemas que os não tinham. Não comento a opção, mas não deixo de sorrir lendo [Trolando um arrivista]. Eis um título da nossa época, adequado a um tempo em que não faltam trolls. Bem Horácio pode escrever: Passeia lá, empertigado pelo teu dinheiro: / a riqueza não altera a linhagem. O empertigado arrivista fará o seu caminho e por muito que seja trolado pelas palavras, não deixará de ser ele a trolar quem passe diante de si. Por mim, aceito-me como um autêntico troll vindo do folclore escandinavo, um troll feio, desagradável e burro. Cada um distingue-se como pode e o meu caminho da distinção é esse. Contra factos não há argumentos, embora a maior parte das pessoas acredite que contra argumentos não existem factos que lhes resistam. Em suma, Janeiro está a ser trolado não sei se por um arrivista, se por um santo cansado da gestão do clima. Que se reforme, se for esse o caso.
quarta-feira, 24 de janeiro de 2024
A espera
Como a imaginação escasseia, retorno à citação. Andrea Köhler, uma correspondente, estabelecida em Nova Iorque, do diário suíço Neue Zürcher Zeitung, tem um ensaio denominado O Tempo que Passa – Um ensaio sobe a Espera. Não o conhecia, mas vi o livro na mão de uma pessoa amiga e dei uma vista de olhos pelo conteúdo. Descobri, no início do capítulo «Desiste!», página 40 da tradução portuguesa, o seguinte: Fazer esperar é um privilégio dos poderosos. No piso da administração, onde nos deixam entregues à espera, há quem supervisione o nosso tempo e o consuma voraz e irreflectidamente. Quem nos faz esperar celebra o poder que detém sobre o nosso tempo de vida, e a dúvida sobre se não é justamente essa a razão para sermos deixados à espera é o que confere a esse poder o seu aspecto mais ameaçador. O meu conflito contumaz com as esperas nos consultórios tem aqui a sua raiz. O bem mais precioso que recebemos ao sermos concebidos é o tempo. Que outro disponha do nosso tempo a seu bel-prazer é não apenas uma humilhação, mas um ataque violento contra a nossa autonomia. Todos temos de gastar o tempo dos outros, mas há diversas formas para o fazermos. Esse gasto pode resultar de um acordo justo entre as partes. Pode também proceder de um exercício de poder daquele que se encontra numa posição superior e que, por isso, dispõe do tempo do outro. As relações entre chefes e subordinados, entre empregadores e empregados, entre médicos e pacientes, são todas elas propícias a um exercício de poder irracional fundado na disposição arbitrária do tempo do outro. Esse poder sobre o tempo dos outros pode acontecer em qualquer circunstância, mesmo as mais inesperadas. Há muito tempo, vivi durante um ano numa cidade do Alentejo. Um dia, precisava de uns parafusos, dirigi-me a uma loja de ferragens. O tempo ali passava muito devagar. A certa altura, o empregado percebendo em mim alguma impaciência, disse-me para não ter pressa, pois ele só saía dali às sete horas. Seriam pouco mais de três. Havia naquela graçola uma vingança. Ele tinha de perder o seu tempo a trabalhar para outrem e vingava-se naqueles que necessitavam do seu atendimento. Sempre que tenho um compromisso esforço-me para chegar a tempo, para não fazer o outro esperar, pois a espera não é o princípio de esperança, mas o sinal de uma distorção na relação entre seres dotados de razão, que devem respeito uns aos outros.
terça-feira, 23 de janeiro de 2024
Lidar com o tempo
Ontem recebi uma chamada. Era só para recordar que amanhã tem uma marcação para vir pôr o Holter, ouvi. Ah sim, obrigado, respondi. Está marcado para as onzes horas, mas pedimos que venha um quarto de hora mais cedo. Disse que sim, que estaria um quarto de hora mais cedo. Tinha a vaga ideia de ter este exame para fazer, mas já nem me recordava quando. E lá fui hoje, de modo a chegar um quarto de hora mais cedo, imaginando que me despacharia rapidamente. Não foi inocência minha. Apenas burrice, pois, como diz uma amiga, inocência depois dos quarenta é apenas burrice. Saí de lá uma hora depois, sem o aparelho colocado. Tinha um compromisso inadiável e não podia esperar mais. Não, não foi no serviço público. Parece que a incompatibilidade entre cumprir horários e exercer a profissão de médico se alargou para os outros serviços de saúde. Desde que os técnicos de saúde se apresentam e são apresentados como doutores, imagino, que tenham também herdado, para além do título, a prerrogativa de não cumprir horários. Em tempos um antigo professor meu da faculdade deu aulas em Medicina sobre ética e saúde. Nessa altura, achei que fazia sentido, mas estava muito longe dos quarenta e a inocência era-me permitida. Hoje continua a fazer sentido que professores de Filosofia tenham lugar para ensinar nos cursos de formação de médicos. Não sobre ética, mas, de preferência, sobre metafísica, onde se trata do problema do tempo. Uma meditação sobre o tempo e a sua irreversibilidade. Desfazer a confusão de que parecem sofrer os praticantes de profissões médicas entre tempo e eternidade. Umas boas aulas de metafísica poderiam, inclusive, ajudar a saber ler um horário e perceber, com a ajuda da ética, o seu carácter imperativo. Tudo isto seria um contributo inestimável que a Filosofia poderia dar aos pobres mortais que, querendo adiar o desfecho que a sua natureza impõe, recorrem aos serviços de saúde. Aquele tempo que gastam em salas de espera seria aproveitado em coisas mais interessantes, mesmo que fizessem mal à saúde. Estamos em época de eleições, sobre as quais não falarei. A política está-me vedada, mas faço uma confissão. Irei ler os programas de todos os partidos e coligações concorrentes, no capítulo da saúde, para ver se algum deles se propõe enfrentar o pior de todos os problemas que afectam a saúde em Portugal, a dificuldade de as profissões ligadas à saúde lidarem com o tempo.
segunda-feira, 22 de janeiro de 2024
Uma ferida
Na praceta aqui em baixo, adolescentes jogam à bola enquanto esperam o começo das aulas no centro de línguas. Nestes jogos onde nada se joga há uma plenitude que em nenhum outro lado se encontra. Os jogadores não têm outro objectivo que não seja jogar. Coincidem com o seu próprio acto e são inteiros na finta que fazem ou no pontapé que dão. Estão a despedir-se de uma inocência de que não possuem qualquer consciência e é nesse não saber que reside a sua inteireza e a sua inocência. Estes jogos espontâneos são um adeus ao paraíso de que estão, paulatinamente, a ser expulsos. De súbito, fez-se silêncio. Terão entrado para uma aula. Um dia destes já não jogarão, pois deixaram de coincidir consigo mesmos. Essa cisão crescerá como uma ferida. Descobrirão que é uma doença crónica. Haverá aqueles que procurarão a cura e perder-se-ão de si. Outros haverá que aprenderão a viver com a doença, permanecendo dentro do seu próprio horizonte. Caso cheguem a velhos, pensarão sobre isto, sobre o modo como conviveram com a doença crónica e a tornaram num instrumento da sua própria saúde. Nessa altura, sentirão, primeiro, uma leve nostalgia pela inocência em que o seu corpo coincidia consigo mesmo quando um pé encontrava uma bola e a garganta gritava golo. Depois, sentirão o alívio de nunca terem querido curar a ferida aberta pela cisão que os constitui.
domingo, 21 de janeiro de 2024
Progresso e regressão
A certa altura, uma altura recente, da história da humanidade iniciou-se um culto fervoroso pelo progresso, pela evolução do homem. Uma autêntica religião, embora cindida em diversas igrejas, com a sua liturgia, os seus rituais e os seus sacramentos. O século XX foi, porém, uma época propícia para o cultivo da dúvida. O agnosticismo e o ateísmo em relação à evolução da humanidade cresceram, reduzindo o número de fiéis e ainda mais o de praticantes. Da crença na evolução, ficou apenas a certeza do progresso da técnica e um medo terrível de que a moralidade humana estivesse longe de ser capaz de acompanhar o ritmo do desenvolvimento técnico. Este culto público do progresso e da evolução da humanidade sempre foi acompanhado de um outro culto, com raízes muito antigas, mas de natureza quase secreta. Há quem acredite que os seres humanos não estão em evolução, mas em involução. Desde há muito que vivemos numa fase de regressão da nossa humanidade. Em tempos, todos os seres humanos teriam sido mais sábios e sensatos, a vida entre eles era justa e aprazível. Depois, entraram num processo de decadência que se vem acelerando ao longo do tempo. Poder-se-á mesmo afirmar que, para esses cultores da regressão, o progresso técnico é inversamente proporcional à qualidade da humanidade. Quanto melhor a humanidade, menos necessidade da técnica ela tem. Quanto maior recurso à técnica, pior é a humanidade. Estas duas perspectivas têm o condão de sublinhar a necessidade que temos de contar histórias e, ainda mais, de contar histórias que permitam contar todas as outras. Estas duas histórias contadas aqui são histórias enquadradoras, são elas que permitem que contemos todas as outras, sejam elas quais forem. A dificuldade, a minha dificuldade, é que não sei em que campo hei-de enquadrar a história deste domingo. Será a história de mais um passo na evolução da humanidade ou, pelo contrário, será a prova da sua regressão. Ora, não será uma coisa nem outra, pois neste domingo não tenho nada para narrar e este é o ponto de equilíbrio, um ponto neutro, entre a crença no progresso e a fé na involução. A utilidade dos dias úteis, por certo, dar-me-á mais imaginação para encontrar assunto.
sábado, 20 de janeiro de 2024
Interesses
Retornei a O Leopardo, o romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa. Li-o há muito e vi algumas vezes o filme que Visconti fez a partir dessa obra. Estou naquele momento em que Angelica, a bela filha de Dom Calogero, chega ao jantar dado, no regresso a Donnafugata, pelo príncipe de Salina. É extraordinária a forma como Lampedusa mostra a mudança de poder, a queda lenta e inexorável da velha aristocracia e a subida de uma nova casta, ainda rude, mas que fará do interesse próprio a espada com que, sem contemplações, triunfará. Os privilégios da velha aristocracia fundavam-se num ethos do serviço, o qual dissimulava ou sublimava o interesse próprio. Os que triunfaram com Garibaldi puseram de lado esse ethos do serviço e legitimaram o interesse próprio como única razão para agir neste mundo. Poder-se-á pensar que o triunfo dos novos senhores teve o condão de tornar manifesto aquilo que era oculto. É verdade, mas também é verdade que condenou à irrelevância a ideia de servir os outros ou mesmo a necessidade de sublimar, no sentido de tornar sublime, aquilo que era apenas um impulso egoísta. Olhando para essa mudança de poder social que se iniciou no século XVII, em Inglaterra com a Gloriosa Revolução, passou pelas Revoluções Americana e Francesa e se prolongou até à primeira guerra mundial, constata-se que os novos poderes, ao perseguirem os seus interesses próprios, muitas vezes com uma rudeza extrema, acabaram por proporcionar um mundo mais benevolente para a maioria das pessoas. É aquilo a que Hegel chamou de astúcia da razão. Do ponto de vista de uma contabilidade utilitarista, a mudança de poder foi moralmente boa, ao proporcionar a felicidade de um maior número. Contudo, o espírito sente, perante o ethos triunfante uma certa repulsa, pois a conduta dos indivíduos é movida por aquilo que uma longa tradição, que junta o legado grego e, principalmente, o cristão, sempre considerou adverso à virtude moral, o agir segundo o interesse próprio. Cristo, o modelo do homem na cultura ocidental, morreu na cruz movido pelo interesse dos homens e não pelo seu interesse pessoal.
sexta-feira, 19 de janeiro de 2024
Contra a colaboração
Estou em maré de citações. Citar outrem é aliviar-se do encargo de pensar por si. É uma espécie de coexistência espúria, como o são todas as coexistências. Ouvi-o a Bernardo Soares e li-o no seu livro do desassossego, quando passei os olhos pelo trecho Colaborar, ligar-se, agir com outros, é um impulso metafisicamente mórbido. A alma que é dada ao indivíduo, não deve ser emprestada às suas relações com os outros. O facto divino de existir não deve ser entregue ao facto satânico de coexistir. Descobri, em tempos, que vivemos num mundo de colaboradores e que colaborar é uma virtude primeira das relações sociais. Essa descoberta deixou-me sempre desconfortável. Eu não sou um colaborador, falta-me a alma de colaboracionista. A minha revolta contra o verbo colaborar era estética. A colaboração é uma coisa feia. O Bernardo Soares, porém, veio ajudar-me a compreender o fenómeno. Há na colaboração uma morbidez metafísica. Uma decomposição metafísica não cheira menos mal do que uma decomposição física. Pelo contrário. Imagine-se o mau cheiro que deita a putrefacção de uma alma. Começa com um cheiro a enxofre e a partir daí a gama dos odores é cada vez mais repelente. Em vez de desperdiçar a nossa personalidade em orgias de coexistência, a expressão é do Soares, entreguemo-nos à ascese da existência, digo-o eu para evitar que o acto de citar cubra todo este texto. Chegou a sexta-feira, o que me poupa a algumas orgias da coexistência. Entro nela como se entrasse para um eremitério.
quinta-feira, 18 de janeiro de 2024
Trazer à linguagem
Albert Manguel, o conhecido autor de Uma História da Leitura, na Nota Prévia ao romance de ficção científica Solaris, de Stanisław Lem, afirma Na nossa arrogância só vemos o que queremos ver, vendando os olhos para o resto. A ciência elabora argumentos de ficção científica para nos consolar ou entreter, mas, na realidade, limita-se a dar respostas a expectativas tradicionais. Há nas palavras de Manguel uma insurreição contra o hábito. Nem a ciência escapa à submissão à tradição. Para completar a diatribe revolucionária, acrescenta Ficam por dizer o inimaginável, o impensável, o inacreditável. Ester ardor contra o instalado esbarra, como qualquer projecto revolucionário, com aquilo que se propõe. Dizer o inimaginável, o impensável, o inacreditável. Há dois equívocos neste programa. O inacreditável ocupa um lugar não despiciendo nos actos de fala e de escrita. Muitas são as coisas inacreditáveis que são ditas e escritas. Por vezes, são-no de tal modo que, apesar de absolutamente inacreditáveis, elas são acreditadas e multidões há que juram serem verdadeiras. Se há uma coisa que está no poder da linguagem humana é dizer o inacreditável. O segundo equívoco nasce do programa utópico de dizer o impensável e o inimaginável. A linguagem tem um vínculo com o pensado e o imaginado. Aquilo que não pode ser pensado ou, tão pouco, imaginado não pode ser dito e isto não se deve à submissão dos homens ao hábito ou a uma tenebrosa tradição, mas à natureza do impensável e do inimaginável. Contudo, a linguagem tem tido um enorme poder para trazer à expressão aquilo que ainda não tinha sido pensado ou imaginado, mas que, em última análise, não era ontologicamente impensável e inimaginável. Se a linguagem fosse sempre dependente de um hábito ou de uma tradição, o mais plausível seria que ainda não existisse uma verdadeira linguagem humana, mas apenas um sistema rudimentar de vocalizações que se repetiriam infinitamente, um sistema pré-babélico partilhado por todos os animais humanos. A confusão das línguas resultante da aventura de Babel não é outra coisa senão o símbolo de uma humanidade que procura trazer à linguagem aquilo que ainda não foi pensado ou sequer imaginado, mas que não é, por natureza, impensável ou inimaginável.