sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Para uma sociologia da imaginação

Como tantas vezes me acontece, um acaso levou-me a um romance – o único do autor – de Branquinho da Fonseca, Porta de Minerva. Estava numa estante e nunca pensei em lê-lo. Contudo, peguei nele e duas circunstâncias levaram-me a mudar de opinião. Uma absolutamente lateral. A capa da minha edição é do pai de um amigo meu, um dos mais importantes designers gráficos portugueses do século XX. A segunda, imagino que a mais decisiva, foi a longínqua memória de ter lido a novela O Barão, a obra-prima do escritor. Quando a li, há décadas, fiquei impressionado, mas não voltei a ela, nem a qualquer outra obra do autor. Entrei, então, pela Porta de Minerva e deparo-me com uma Coimbra talvez dos finais da República. No terço que li, tudo gira em torno dos estudantes, dessa incompreensível, para quem não estudou em Coimbra, praxe, da terrível divisão entre caloiros e doutores, das tradições académicas. O romance não tem o poder magnético de O Barão. Não deixa, no entanto, de ser um interessante documento sociológico sobre uma realidade social que teve no país um peso desmedido e que o conformou naquilo que ainda é hoje, apesar de, imagino eu, esse peso ter sido reduzido drasticamente. Penso, não poucas vezes, que nos falta uma sociologia da imaginação nacional. O objecto de investigação seriam as obras de arte, o trabalho dos grandes artistas, mas também dos medianos e dos menores. O que estaria em jogo não seria a qualidade estética das obras, mas como a imaginação desses artistas nos imagina na narrativa, no teatro, na pintura, na escultura, na poesia, no cinema, na música. Uma coisa é a realidade objectiva que a história e a sociologia pretendem captar, a vida crua com os seus eventos. Outra bem diferente é aquela para que aponta a flecha do desejo, desejo esse que alimenta a faculdade de imaginar. Deste ponto de vista, uma obra menor de um autor esquecido pode ser tão importante, ou mais, do que uma obra do cânone, pois esta será sempre uma excepção. E os nossos desejos raramente são excepcionais.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

A vida prosaica das ideias magníficas

Já vamos no segundo dia do novo ano e ainda não vi nada de substancialmente diferente daquele que acabou. Quase me apetece perguntar por que espúrias razões acabaram com o ano, se o novo é igual. É provável que, com o desenrolar dos meses, o novo se diferencie do velho, mas sempre se podia ficar mais um tempo em 2024, desacelerando o tempo, dando mais e maiores horas a cada dia, alterando mesmo o calendário para 14 ou 15 meses. Todas estas ideias magníficas que me nascem na mente encontram a barreira inultrapassável que o homem comum ergue contra o génio, pois só um génio poderia ter ideias tão desaparafusadas. Este génio dedicou o dia de hoje ao trabalho, embora – pois sempre é um génio envelhecido – tivesse de passar pela dentista, uma rapariga novinha e doce que dificilmente se imagina, mesmo que se seja genial, de broca em punho ou de alicate a puxar um dente tomado por uma qualquer moléstia (o que não era o meu caso), a superintender a boca dos pacientes. Não contente com isso, ainda fez uma visita à farmácia, onde, além de comprar medicamentos, trocou umas palavras com o farmacêutico de serviço sobre certos efeitos secundários que um medicamento não se cansa de produzir. No fundo, a vida é isso: uma salsada de consequências benéficas misturadas com efeitos secundários. Chegará o momento em que os efeitos secundários suplantarão as consequências benéficas, mas as coisas são o que são e também o que não são. O não-ser ainda fará, de algum modo, parte do ser, mas hoje não estou inclinado para a ontologia. Não choveu neste segundo dia do ano. Não me parece que isso seja um bom presságio. Não tarda e teremos as barragens a reclamar pela falta de água. Um péssimo acontecimento.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Primeiro dia

Chegou o crepúsculo do primeiro dia do ano. Recolhi-me, como se este fosse um dia de meditação, mas não meditei sobre nada. Talvez tenha meditado, mas essas meditações foram tão secretas que nem o próprio meditador deu por elas. Na rua, havia uma luz solar límpida, mas a preguiça evitou que me expusesse a ela e ao frio que a acompanha. O sol de Inverno, como todos sabem, é uma armadilha para incautos. Disfarça-se de promessa calorosa para atrair os ingénuos ao frio que faz reinar. As festividades estão consumadas. Amanhã, a realidade volta com toda a sua colecção de imperativos. Obedecerei, pelo menos a alguns; a outros deixá-los-ei flutuar até que se dissolvam por si mesmos. Fui fechar uma persiana. Olhei para a rua e não havia ninguém, nem os constantes passeadores de cães, nem os extraviados da família, nem os loucos que aproveitam estes dias para exibir gratuitamente a sua loucura. Uma quietude como a que carcomia as cidades naqueles dias em que uma pandemia tomou de assalto a casa do homem. Podia ter evitado esta metáfora, tão cansada está que não passa de uma catacrese; mas também eu estou cansado e não me apetece inventar metáforas no primeiro dia do ano. Não me ficava bem. Seria um exercício exibicionista, apesar do anonimato que cobre autor e narrador destes textos. Deveria escrever anonimatos, pois ambos são anónimos, mas com uma diferença substancial. No caso do autor, foi-lhe dado um nome no registo civil e no baptismo. Já o narrador não foi registado, nem baptizado, tão pouco crismado. O autor negou-lhe o direito mais básico que é ter um nome como chave de uma identidade. Não me vou revoltar com isso, pois o primeiro dia do ano é o menos indicado para revoltas, sublevações e insurreições. Cumpro ordens. Foi para isso que o autor me criou, para narrar o que lha passa pela mente, embora eu não tenha a certeza se a sua mente existe de facto, mas se fui criado por ela, pelo menos terá existido.

terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Fim de ano

O último dia do ano pouca diferença tem do primeiro dia do ano seguinte, disse-me há pouco um amigo a quem telefonei para dar os parabéns. Não sei, continuou, se é preciso mais pontaria para nascer no último dia do ano ou para o fazer no primeiro. As minhas reflexões sobre o calendário nunca tinham chegado a este capítulo, mas também não nasci no último dia do ano; nem no primeiro. O ano despede-se. Fá-lo como o fazem todos os anos. Em silêncio. Os homens, porém, não se calam e hão-de encher o planeta com o seu vozear sem fim. Daqui a pouco irei fazer uma caminhada, coisa pequena, pois suponho que estará frio na rua. O próprio Sol parece ter perdido energia, mas isso é uma ilusão. Ele continua a arder com vigor, numa afirmação de poder que nós, seres humanos, agradecemos, mas que não deixamos de temer, pois não nos vá acontecer como aconteceu ao pobre Ícaro. Lá fora, uma criança chora, o baloiço range, os transeuntes apressam-se, talvez tenham um réveillon. Não, não, dantes é que havia réveillons, hoje não se usam palavras francesas para designar coisas dessas. Aquiesci, mas não faço ideia do que seja a New Year’s Eve. O melhor é não me meter por esse caminhos e meditar, enquanto caminho, na passagem de ano.  Amanhã será outro ano. E outro dia.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Uma lógica insurreccional

Foi em Vico que li, como título de um capítulo de Ciência Nova, a expressão lógica poética. O conteúdo desse capítulo não vem ao caso, mas apenas a expressão. Poética surge como uma qualificativo da lógica, permitindo pensar que existem lógicas que não são poéticas. Isso conduz à questão de saber o que constitui a poeticidade de tal lógica. O melhor caminho, porém, será partir da poesia e tentar descobrir nela a lógica que a ordena. O discurso poético é uma insurreição contra a semântica, a sintaxe e a própria lógica que preside ao discurso corrente. Rasga o sentido corrente das palavras, cultivando a ambiguidade através da anfibologia, da metáfora, da sinédoque ou da metonímia. Subverte as regras sintácticas ordenadoras do discurso usando hipérbatos, anástrofes ou, de modo radical, sínquises. Apaga os imperativos dos velhos princípios lógicos ao cultivar oxímoros, paradoxos, antíteses e contradições. Há uma profunda coerência no ataque poético ao discurso corrente e à lógica que preside ao pensamento correcto. Poderíamos dizer que há uma coerência na produção da incoerência semântica, sintáctica e lógica. O estranho é que, apesar desta insurreição contra a coerência do discurso, a poesia não é destituída de sentido, nem de ordem sintáctica ou de lógica. Um poema abre o pensamento, a linguagem e a experiência para um além que estava oculto pela semântica, a sintaxe e a lógica correntes. A poesia é dotada de uma lógica insurreccional contra os limites semânticos, sintácticos e lógicos que determinam o horizonte do pensamento e da experiência dos homens. Oferece pontos de fuga e vislumbres de mundos possíveis que, por norma, parecem impossíveis.

domingo, 29 de dezembro de 2024

A fria vingança

Como é sabido – a teoria da literatura não esquece de o referir – há uma descoincidência entre autor e narrador. Apesar destes textos não serem literários ou, no melhor dos casos, serem exemplos de má literatura, também há neles não apenas um desencontro entre autor e narrador, mas um verdadeiro conflito de pontos de vista. Eu, pobre narrador, sou uma criação ficcional de um autor anónimo, o qual não me permite fazer coisas que ele faz. Por exemplo, falar de política. Ora, descobri há pouco uma enorme colecção de artigos do autor sobre esse tema. Crónicas publicadas num jornal regional, de acordo com a sua natureza provinciana, para não dizer paroquial ou mesmo tacanha. Estive a ler textos de 2012 e de 2024. Senti-me recompensado e vingado. Ele envelheceu. Os textos de 2012 eram muito mais vivos e acutilantes do que os actuais. Não foi só o corpo dele que envelheceu, o olhar que perdeu fulgor, mas a sua verve e o modo como expressa as suas extraordinárias – quero dizer, disparatadas – ideias sobre a coisa pública também envelheceram. Falta-lhes a jovialidade e sobra-lhes o cansaço. Enquanto narrador, dava-lhe um conselho. Dir-lhe-ia: não guardes para amanhã o que podes fazer hoje. E quando ele me perguntasse o que deveria fazer hoje, dir-lhe-ia: deixar de escrever para jornais. Isto, porém, é impossível, pois é um autor despótico que nunca se permitirá escutar o que um narrador tem para lhe dizer. Assim, e para vingança, vou deixá-lo patinar no seu envelhecimento, que será também o seu envilecimento, até que os seus escritos não sejam mais do que um longo exercício de decrepitude. A vingança serve-se fria.

sábado, 28 de dezembro de 2024

Poeta, não profeta

Em 1572, foi publicada a primeira edição de Os Lusíadas. O poema de Camões é uma prova clara de que poeta e profeta não coincidem na mesma pessoa. Talvez se pudesse mesmo afirmar que a capacidade poética é inversamente proporcional ao poder profético. Vale a pena visitar a sexta estrofe do primeiro Canto: E vós, ó bem nascida segurança / Da Lusitana antiga liberdade, / E não menos certíssima esperança / De aumento da pequena Cristandade; / Vós, ó novo temor da Maura lança, / Maravilha fatal da nossa idade, / Dada ao mundo por Deus, que todo o mande, / Pera do mundo a Deus dar parte grande. Como se sabe, trata-se da dedicatória a D. Sebastião. Quase tudo o que nela se afirma é manifestamente falso. É verdade que essa falsidade só se revelou em 1578, na batalha de Alcácer Quibir. Não, D. Sebastião não foi a segurança da liberdade dos portugueses, pelo contrário, nem confirmou a certíssima esperança do aumento da pequena Cristandade. Ainda menos se tornou o temor dos mouros. A maravilha fatal daquele tempo, foi fatal, mas não uma maravilha, e foi fatal não para os inimigos, mas para si mesmo e para os portugueses. Escrevi que quase tudo o que Camões afirma sobre D. Sebastião é falso. Não disse tudo pois não sei se os últimos dois versos são verdadeiros ou falsos. O que sei é que os poetas farão melhor em não se pôr a fazer adivinhações rimadas sobre a vontade de Deus, a qual é, para os homens, mais escura que a noite escura. Isto partindo do princípio de que Deus existe e tem uma vontade, pois mesmo que se admita a existência de Deus, não é claro que um ser divino tenha uma vontade, coisa que parece ser humana, demasiado humana, para que possa ser atribuída a Deus.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Por amor ao dever

As festividades natalícias estão consumadas, o que é um grande alívio. Hoje, já me pude sentar à minha secretária, sem que obrigações – informais, por certo, mas mesmo assim obrigações – me façam levantar e andar por aqui e por ali. Coisa que contraria o meu espírito de sedentário ultramontano. A minha viagem preferida é aquela em que nunca saio do mesmo lugar, onde o princípio, o meio e o fim coincidem. Não é uma viagem fácil, pois existe sempre uma pressão para que a pessoa se desvie da sua rota e ande por caminhos que não são os seus, e todos os caminhos que existem por este mundo não me pertencem. Andar por eles é como invadir uma propriedade privada. Imagino que a espécie humana terá se não um gene, pelo menos uma forte inclinação cultural para andar sempre em movimento. Não por acaso, colonizou praticamente todo o planeta e, não contente com isso, sonha colonizar outros planetas. Isto coloca um problema. Terei uma anomalia genética que me eliminou o gene do nomadismo ou a minha socialização gerou um mostro sedentário? Seja qual for a resposta a esta excruciante questão, a verdade é que quando viajo no mesmo sítio sinto que vou muito mais longe do que quando me ponho a viajar como um turista. Turista acidental, claro. Voltando às festividades natalícias que em teoria são do meu agrado, mas que na prática se tornaram penosas, a boa notícia é que o conjunto de deveres estão cumpridos. E isto pode ser utilizado como um excelente exemplo de acção moral, segundo o critério de Kant. Cumpro os deveres natalícios não por sentir neles um interesse particular, nem por ter uma especial inclinação por eles, mas simplesmente por serem um dever. Faço-o por amor ao dever e não porque tema as consequências de não os cumprir ou espere um benefício pelo seu cumprimento.

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Fazer exercício

Foi o meu exercício matinal. Tive de ir a uma rua desconhecida de uma cidade aqui ao lado. Como se tornou moda, também esta cidade tem um fascínio – talvez um fetiche – com o reordenamento do trânsito, alterando-o segundo um critério tão secreto que nem os próprios responsáveis pelas alterações o conhecem. Valeu-me uma aplicação denominada Waze, que me levou à porta do estabelecimento a que queria ir. Além desta capacidade de me guiar pelo labirinto das ruas cheias de proibições, permissões e sentidos obrigatórios, tem uma outra, milagrosa. Ao dizer chegou ao seu destino, eu parei o carro, liguei os quatro piscas, saí, recolhi a encomenda, paguei – tudo isso sem que um polícia se interessasse pelo meu carro. Terei, um dia destes, de acender uma vela a S. Waze, protector dos infractores de estacionamentos proibidos. Talvez – penso agora – a razão tenha sido outra. Os agentes da autoridade, tomados pelo espírito natalício, fecham os olhos a estes pequenos delitos de trânsito. Uma terceira possibilidade é que andem todos entretidos a comprar os últimos presentes de Natal para oferecer aos cônjuges ou candidatos a cônjuges. Declaro, por minha honra, que não fui comprar nenhum presente, nem qualquer coisa que se relacione com o Natal. Fui a uma mercearia buscar a tradução que me faltava, das três publicadas em Portugal, do Ulisses, de James Joyce. O proprietário do estabelecimento tinha-a anunciado num dos sites de venda de livros em segunda mão e, como era aqui ao lado, aproveitei para fazer exercício. Estas vésperas de Natal não são fáceis.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Singularidade e comunidade

Os versos de John Donne, No man is an island, / Entire of itself; / Every man is a piece of the continent, / A part of the main, tiveram uma enorme fortuna, apesar de terem sido escritos no século XVII, época em que a afirmação do indivíduo, enquanto singularidade diferenciada do todo, começava a estabelecer-se e a lançar as raízes do individualismo posterior. Imagino, não poucas vezes, que a arte do romance está intimamente ligada a essa tensão entre o indivíduo e a totalidade – o continente, no poema de Donne. Em A Parede, Marlen Haushofer radicaliza essa individualização, mas para encontrar uma comunidade mais funda. A personagem, uma mulher de que nunca se conhecerá o nome, descobre que, de um momento para o outro, ficou separada do mundo humano por uma parede ao mesmo tempo invisível e intransponível. Mais, começa a ter razões para pensar que a espécie humana terá praticamente desaparecido. Esta singularização forçada e radical – imposta não se sabe bem nem porquê, nem como, nem por quem – leva-a a procurar refazer o continente, agora com os animais com que estabeleceu laços no território onde ficou confinada. A protagonista descobre que existe uma rede mais funda do que aquela que se estabelece socialmente com seres da mesma espécie. Para ela, na morte destes seres – do cão, da gata, do vitelo – podem aplicar-se os versos finais do poema de Donne: Any man's death diminishes me, / Because I am involved in mankind. / And therefore never send to know for whom the bell tolls; / It tolls for thee. Ela morre também na morte deles. A radicalidade da narrativa de Marlen Haushofer torna patente a necessidade de comunidade – e de comunhão – sentida pelos humanos. Uma experiência bem diferente é a de Peter Kien no romance Auto-de-Fé, de Elias Canetti. Ele é obsessivamente solitário e intrinsecamente misantropo. É a manifestação de uma crença e modo de ser contrários ao verso de Donne. Kien é uma ilha rodeada por livros. E quando estabelece relação com Therese – primeiro, sua governanta; depois, mulher – o desastre é total. A saída da singularidade e o fazer parte de uma comunidade, tão pequena quanto a de um casal, é a porta aberta para todas as desgraças. O romance moderno, aquele que poderá ter nascido com o D. Quixote, de Cervantes, o Simplicissimus, de Johannes von Grimmelshausen, ou, antes destes, Gargântua e Pantagruel, de Rabelais, parece ser uma meditação contínua sobre a singularidade de seres que só podem existir mergulhados numa totalidade.

domingo, 22 de dezembro de 2024

Pequenas blasfémias

As percepções mudam mais rapidamente do que pode imaginar, disse, depois de intróito formal dos cumprimentos, o padre Lodovico Settembrini. Está a falar por enigmas, respondi. Ah... tem razão, ultimamente tenho sido acusado com regularidade de estar a ficar enigmático. Se fosse misterioso, ainda compreendia, volvi. Estava a referir-me ao romance que estou a ler. Melhor, a reler mais uma vez, afirmou o padre Lodo. Perante o meu silêncio, continuou: trata-se do Ulisses, do Joyce. Não me parece uma leitura própria de um sacerdote jesuíta, disparei. Ele, porém, riu-se e informou-me, sentencioso: não há leitura que não seja própria de um jesuíta, já o devia saber. Saber, eu sabia. Era dele, do Ulisses, que eu estava a falar, das percepções que mudam. O livro foi publicado em 1922, em França; a sua importação foi proibida para o Reino Unido até ao início da década de trinta. Também os EUA o proibiram até 1933. Consideravam-no obsceno. As percepções de obscenidade, nesses países, demoraram cerca de uma década a mudar. Hoje, porém, ao ler-se o romance – continuou o padre –, nem se compreende a acusação. Muito me conta, respondi a rir. Pensava que aquilo que o poderia preocupar não era tanto o sexo, mas a heresia inicial de Buck Mulligan, o ritual blasfemo a parodiar, com a bacia de barbear, o sacrifício eucarístico. Já não tenho idade para me preocupar com essas coisas. Se vivesse naquela época – sublinhou, com vivacidade italiana, o meu amigo –, talvez me sentisse indignado, mas não passa de literatura. Ainda bem que o diz, respondi. Temos um jesuíta contra o Índex, alvitrei. Está atrasado no tempo, ouvi do outro lado. O Index Librorum Prohibitorum foi instituído por Paulo IV, em 1559, e abolido por Paulo VI, em 1966. Não me parece – disse eu – que, apesar do Índex ter passado à história, a leitura do Ulisses, com essa referência constante ao paganismo grego, seja a leitura natalícia mais adequada. Pelo menos, para um sacerdote. Não se preocupe, respondeu-me. Nós temos um mecanismo que trata de limpar as possíveis manchas trazidas pelas leituras ou pela vida. Uma espécie de tira-nódoas, concluí. Não obtive resposta à pequena blasfémia.

sábado, 21 de dezembro de 2024

Um portal

Por vezes, as traduções operam verdadeiros milagres. Datado de 1960, o filme Le Petit Soldat, de Jean-Luc Godard, não teve por título, neste pequeno país, o literal O Soldadinho, mas O Soldado das Sombras. Uma tradução feliz, não apenas porque capta a natureza sombria do exército a que o soldado pertence, mas pela conjugação do efeito metafórico do vínculo entre soldado e sombras e, ainda mais, pela presença da aliteração na primeira sílaba de ambas as palavras. Talvez a tradução seja contraproducente, pois contém tal força que dispensa o próprio filme. Ela abre a imaginação a uma viagem que começa no país das sombras que, como qualquer país, tem o seu exército e os seus soldados. Não se sabe se essa pátria obscura se encontra ou não em guerra, nem se a missão do soldado é pacífica ou de combate. Esta ignorância permite que cada um construa uma história, conforme os seus desejos ou as suas necessidades. Haverá quem veja no soldado um agente de paz, um cidadão de um país em que a vida decorre sem os percalços da guerra. Outros fantasiarão o soldado em plena batalha, tomado pelo ardor do confronto, inclinado para o heroísmo. Isto mostra que uma expressão como O Soldado das Sombras é, na verdade, um portal por onde se entra para diversos mundos, muitas vezes estranhos uns aos outros. Contudo, a expressão é apenas um caso particular de um fenómeno muitos mais amplo e geral que é a linguagem. Esta é muito mais do que uma meio de comunicação ou de expressão, mas a abertura que permite aos homens entrar no mundo. Este, porém, deverá ser entendido como um substantivo colectivo. Mundo significa o conjunto infinito de mundos possíveis e imagináveis.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Um koan para meditação

Estamos a 20 de Dezembro, e o estado do mundo não me parece muito saudável. Isso, todavia, não é uma novidade. É da sua natureza estar doente. O mundo sofre de uma patologia crónica. Mesmo nos bons momentos, caso existam, continua doente. Não geme, mas a palidez que lhe recobre a face não permite outra conclusão. Outras alturas, além da doença crónica, de ordem física – os organismos sociais não chegam a ter uma natureza biológica, não passando de estruturas mecânicas –, o mundo sofre de acentuada paranóia. É para lá que se caminha. Ora, quando uma ordem mecânica se torna paranóica, aquilo que podemos esperar não é o internamento compulsivo dessas massas nos hospícios, mas vê-las a ditar ordens e a serem servidas por aqueles que deveriam trazer ordem e razão. Nestes momentos, a doença do mundo torna-se aguda. Inflamado, começa a borbulhar em incêndios. As consequências são sempre piores do que se espera. Com esta análise, este narrador desocupado deu um precioso contributo para uma hermenêutica da realidade, coisa que todos afirmam ser a casa onde vivem, mas que ninguém sabe o que é. Há dias que aqui se narram os feitos heróicos que constituem a gesta do narrador. Não havendo gigantes a vencer ou eixos para pôr no lugar, o narrador contribui com a sua especulação não apenas para a elevação da metafísica a ciência – coisa que nem Kant percebeu ser possível –, mas ainda para o diagnóstico da moléstia viciosa que se apoderou do mundo desde que o homem, ao entrar nele, o constituiu. Esta última afirmação parece bizarra, mas deverá ser considerada como um koan para meditação, caso alguém queira dedicar-se ao Zen.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

O enjambement do Inverno

O Outono aproxima-se do fim. Pouco mais de trinta e seis horas e ouvir-se-á pancadas na porta. É o Inverno que chega e quer entrar na casa grande do ano, embora o ano tenha apenas mais uns dias e logo dá o último suspiro e entrega a alma ao criador. Por isso, a estação fria tem de recorrer ao enjambement e espraiar-se no verso seguinte, introduzindo um infeliz desalinhamento da disposição métrica e sintáctica do ano com a estrutura semântica. Tivesse este narrador sido chamado para criar as estações do ano, outro seria o calendário. Nada de começar no fim, que é aquilo que o Inverno faz. Parece que meteu uma cunha, coisa normal neste país, para apanhar o subsídio e os presentes de Natal,  bem como a folia de fim de ano. Não compreende – certamente, por falta de inteligência – este narrador o cultivo que certos sectores da sociedade fazem da natureza como padrão dos comportamentos. Se o metro-padrão fosse natural, um dia teríamos um metro do tamanho de noventa centímetros e no outro mediria centro e doze, com mais um ou dois milímetros. Outra coisa que me irrita é, para além da data, a hora do começo. Neste infeliz ano, o Inverno começa no dia 21 de Dezembro às 9 horas e 19 minutos. Por que raio, não começa às zero horas? Que sentido faz uma pessoa olhar para o relógio, ver que são 9 horas e 15 minutos e pensar que ainda está no Outono? Deixo aqui o meu contributo decisivo para um mundo melhor. O próximo Inverno, depois deste, deverá começar às zero horas do dia 1 de Janeiro de 2026. Temos de começar a pôr ordem no caos que os homens introduzem na vida sempre que se dispõem a regular seja o que for por padrões da natureza.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Desordem da natureza

Uma das editoras a que compro livros tem por hábito oferecer-me pequenos contos em livros de dimensões frugais, 15,5 X 10,5 cm, com cerca de vinte páginas. O último que li, de Alphonse Daudet, tem o inusitado título de A Mula do Papa. Inusitado porque se espera que um Papa, ainda por cima de Avignon, se desloque de cavalo e não num ser híbrido, fruto de relações sexuais não previstas na ordem natural do mundo. Que ordem é essa? A de que cavalos se cruzem com éguas e burros com burras. Contudo, num momento de desatenção, a ordem do mundo desordenou-se, e um cavalo enamorou-se de uma burra, ou um burro seduziu, não a burra que lhe fora destinada, mas uma égua. Desse cruzamento ímpio nasceu a tal mula que os acasos do mundo fizeram que se tornasse propriedade de um Santo Padre de nome Bonifácio. Ora, apesar de ser propriedade de um Sumo Pontífice, a mula não seguia os ensinamentos de Cristo, talvez pela sua origem duplamente pecaminosa: concebida no pecado da luxúria, como acontece a grande parte dos seres vivos, e de uma luxúria contra-natura, coisa que, sendo menos rara do que se pensa, ainda assim tem a sua raridade. Não estava disposta, essa criatura pactuada com o demónio, a dar a outra face e, será o pior, não era avara no cultivo do rancor. A isto adicionava uma memória persistente e viva, fruto, aposto, de uma longínqua hibridação em que um elefante terá dado um contributo genético que se veio a manifestar na memória da mula. Um tal Tristet Védène, um dia, pregou-lhe uma partida de mau gosto, uma cabriolice de adolescente. Ela, com todo o peso hereditário, onde se manifestavam os vícios em que a natureza se perde, jurou vingar-se. Esperou sete anos – um número cabalístico que é um princípio hermenêutico para interpretar a narrativa de Daudet – para consumar a vingança através de um extraordinário coice que, por certo, concentrou a força dos antepassados burros, cavalos e, suponho, elefantes. O pobre Tristet sumiu-se da Terra e a mula aplacou a raiva alimentada por sete anos de espera. Ficámos assim a saber que estes produtos híbridos, frutos do desejo desordenado, não são fiáveis, isto é, dignos de fé. O melhor é abstermo-nos de comércio com eles. Já basta o comércio espúrio de onde provêm. É plausível pensar que nunca mais Papa algum teve uma mula por animal de transporte. O cavalo seria mais digno da sua dignidade, apesar de Cristo ter preferido um burro.

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Meditações sobre o calendário

Daqui a uma semana, estaremos na véspera do dia de Natal. Daqui a duas semanas estaremos na véspera do dia de Ano Novo. No entanto, hoje, só estamos na véspera de amanhã, uma pobre quarta-feira, tão pobre que nem chega a ser uma quarta-feira de cinzas. Como se pode ver pelos exemplos, até o calendário é dado à desigualdade, tornando uns dias memoráveis e outros, infelizes, tão banais que nenhuma recordação deles se regista. Ao contrário do que se pode supor, esta desigualdade não resulta de uma conspiração de adeptos do inigualitarismo – se me for permitido usar o termo – nem, tão pouco, de injustas  relações entre os dias. Se todos os dias fossem ilustres, a memória humana perdia-se e acabava por não prestar atenção ao motivo de notabilidade de qualquer um deles. A nossa consciência não suporta demasiada luz. Pelo contrário, por cada dia cintilante, necessita de longas semanas de repouso. Pode-se pensar que um dia de Natal e um dia de Ano Novo, apenas com uma semana de distância, é uma overdose de dias fulgurantes. Há, contudo, uma sabedoria que aniquila esse excesso. O dia de Natal ocorre num ano e o dia de Ano Novo, noutro. Esta mudança de ano implica uma alteração radical na relação dos dias entre si. Um faz parte de um jogo a acabar e o outro é o começo de um novo jogo. Depois, virá o Carnaval, mas logo se transforma em cinzas, na quarta-feira seguinte. Contemplemos, porém, o crepúsculo de mais uma terça-feira indiferenciada, talvez a sua mediocridade tenha alguma coisa para nos ensinar.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Dias confusos

A ligeira indisposição que me acomete só em aparência foi causada por uma combinação de bolo rainha e de dois cookies de chocolate. Não se pense que a causa, por não ser material, esteja em mim, na minha alma inclinada à gula. O que aconteceu foi apenas uma ocasião para Deus manifestar o seu poder. Claro que não fui eu que imaginei semelhante explicação e muito menos seria possível imaginá-la à segunda-feira, dia em que não imagino seja o que for. Trata-se da opinião do célebre – nos dias de hoje, muito menos célebre – Nicolas Malebranche e do seu ocasionalismo. O filósofo francês do século XVII e início do XVIII defendia que as causas naturais – neste caso, as complexas transformações químicas promovidas em mim pelos bolos comidos em louvor da gula – não são causas reais, mas meras ocasiões para que Deus manifeste o seu poder causal, o único que existe. E aqui esse poder causal poderia ser pensado como um exercício punitivo de quem se deixa enredar nas malhas da tentação. Mesmo nas acções humanas, o verdadeiro poder causal é de Deus. Isto coloca um problema ao ocasionalismo de Malebranche, pois, se aceitarmos uma natureza, incluindo a humana, desprovida de autêntico poder causal, teremos de colocar na conta de Deus todo o mal moral, além do físico. Malebranche encontra uma escapatória. Deus é a causa dos movimentos do mundo, onde se incluem os dos homens, mas são estes que, tendo sido criados livres por Deus, são responsáveis pelas intenções que presidem aos actos que praticam, mas de que não são a sua causa real. Talvez a segunda-feira seja um dia confuso.

domingo, 15 de dezembro de 2024

Metamorfoses na capital do império

Acabado de chegar de um fim-de-semana na capital. De novo, uma sensação estranha. Lisboa está animada, cheia de vida e, no entanto, parece agonizante. A Lisboa genuína está a desaparecer devido à gloriosa era do turismo. Isso não será grande problema para os turistas, pois estes não sabem distinguir a realidade do simulacro. Enquanto, a ficção vai substituindo a vida verdadeira, o visitante acidental passeia por ali, sem compreender o que se está a passar, submetido que está à necessidade de olhar. O desenvolvimento dos meios de transportes teve um inesperado impacto nas cidades. Deixaram de ser lugares onde se vive, para se tornarem um espectáculo que se vê. Esta transformação da cidade biossocial na sociedade meramente visual é uma degradação das modalidades genuínas de ser cidade. Do ponto de vista ontológico, para recorrer ao jargão filosófico, passa-se da presença viva à mera representação. As pessoas estavam presentes naqueles espaços, pois era ali que decorria a sua vida, os seus dramas, as suas vitórias e derrotas. Agora, as pessoas estão ali para representarem um papel. É essa transição da presentificação à representação que torna, por vezes, desconfortável deambular pelos sítios que outrora ainda não tinham sido devorados pela sanguessuga turística. Lisboa não é a primeira cidade a que acontece tal metamorfose. Não será a última. Ao transformar-se em mercadoria, é essa a metamorfose porque passa, corre o risco inerente a inúmeras mercadorias. Desaparecer no acto de consumo.

sábado, 14 de dezembro de 2024

Entre o bife à Marrare e o gato de Schrödinger

Talvez o mais célebre bife da gastronomia portuguesa seja o bife à Marrare. Hoje decidi, em rememoração, ir almoçar um bife à Marrare num belo restaurante lisboeta. O normal seria fazer o exercício ao jantar, mas as rememorações nocturnas começam a ser penosas. Podemos imaginar que um bife à Marrare actual é uma repetição daqueles que, no início do século XIX, António Marrare criou num dos seus quatro cafés de Lisboa, todos tão mortos quanto o seu criador. Contudo, mesmo que as receitas usadas sejam as originais, não é de crer numa repetição. Não apenas porque nada se repete neste mundo, mas também porque uma receita culinária é como uma partitura musical. Terá de ser interpretada, e tudo depende da qualidade do maestro e dos músicos que ele dirige. Como na arte, seja a da música ou qualquer uma das outras, a criação sobrevive ao criador. Pode-se pensar que a culinária é uma arte do efémero, que morre no consumo do prato. Contudo, também nisso se pode estabelecer uma analogia com a música. Cada interpretação de uma sonata, de uma sinfonia ou de qualquer outra obra morre no momento da sua execução. Também ela é efémera. Resta a partitura, tal como, na culinária, resta a receita. Podemos pensar que esta analogia entre culinária e música não é extensível a artes como a literatura, a pintura ou a escultura. Isso, porém, reside numa visão fisicalista das obras de arte. O romance ou os poemas inscritos no papel dos livros são também partituras que só vivem na efemeridade da leitura. Se ninguém está neste momento a ler Os Maias, o romance de Eça de Queirós existe num estado idêntico ao do gato de Schrödinger: num estado de superposição, em que está vivo e morto ao mesmo tempo. É apenas a receita culinária que espera um chef – um leitor – que a actualize e a faça viver nesse momento de leitura. O mesmo se passa com as esculturas e as pinturas. São partituras que esperam os seus intérpretes e só nestes têm vida. Toda a arte é efémera. Melhor, toda a arte é uma colecção de efemeridades: aquelas em que um leitor ou espectador as trazem de um limbo onde, repito, são verdadeiros gatos de Schrödinger.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Julgamentos

Saí do carro e caminhei na avenida. Senti o frio sem saber se era uma graça ou uma maldição. Temos uma necessidade invencível de classificar as coisas, os acontecimentos e as pessoas. A nossa faculdade de julgar nunca está de férias e só descansa enquanto dormimos, e, mesmo neste caso, não é certo, pois os sonhos podem ser momentos em que ela opera, muitas vezes de forma distorcida. A minha sorte – ou a da minha faculdade de julgar – é que raramente me lembro de sonhar. A maior parte das vezes, a nossa faculdade de julgar é determinante: parte de um princípio universal e determina um caso particular; parte de uma ideia de justiça e avalia se um certo comportamento é justo ou injusto. Noutros casos, ela é reflexionante: parte de casos particulares e tenta encontrar ou criar um princípio que dê sentido a esses casos. Por exemplo, na ausência de um conceito a priori de beleza, a faculdade de julgar parte de uma certa obra de arte e, através da reflexão, tenta reconhecer essa beleza. Era assim que, no século XVIII, pensava o senhor Immanuel Kant. Aproveito-o para lidar com a minha ignorância acerca de o frio sentido na avenida ser uma graça ou uma maldição. Também estas noções sofrem de uma deficiência de definição a priori. Tenho de partir da experiência e entregar-me a uma cadeia de reflexões. Talvez o faça, pois já não sinto frio, nem estou na rua. O pior é que já não tenho a experiência do frio sentido, mas apenas a sua memória. Este é um verdadeiro pensamento de sexta-feira, dia em que a utilidade cede o seu lugar às coisas inúteis. Eu já entrei nestas.