segunda-feira, 19 de março de 2018

Dia do Pai


Há catorze anos ainda vivemos os dois – o meu pai e eu - este dia, mas ambos sabíamos que seria, muito provavelmente, o último Dia do Pai que partilharíamos. Fingimos que o não sabíamos e continuámos a nossa conversa. Era uma conversa como se tivéssemos a vida toda à frente. Em finais de Setembro, tudo ficou consumado, o que sabíamos que iria acontecer aconteceu. Mas aconteceu também outra coisa, a conversa não acabou. Ela continuou dentro de mim e, um dia, espero que continue nos meus filhos, pois trata-se de uma conversa infinita, aquela que liga um pai e um filho. E mesmo no momento em que escrevo isto a conversa continua, flui rapidamente. Eu sei tudo o que ele diria e ele sabe tudo o que tenho a dizer. Este mútuo conhecimento não anula a surpresa das nossas palavras, pelo contrário. É esse mútuo conhecimento que permite a contínua surpresa duma conversa sem fim.

domingo, 18 de março de 2018

Os difíceis domingos

Um casal discutia tão alto que não tive maneira de não saber a dolorosa questão que o animava. Ânimo e entusiasmo parecia não faltar a ambos. Na verdade, trivialidades que fazem da vida um drama sem fim ou que trazem à luz tragédias recalcadas, que aproveitam o trivial para simbolizar o terrível. Como não tinha à mão um comando a que pudesse recorrer para desligar o som, deixei-me arrastar para a memória de algumas cenas de filmes de Bergman, onde as pessoas dizem umas às outras coisas terríveis sem levantar a voz. Até para se dizer o terrível há boas e más maneiras. Não sei se os domingos são mais propícios para o desarranjo da felicidade conjugal. A perspectiva de mais vinte e quatro horas partilhadas momento a momento, depois das de sábado, talvez tenha um peso na propensão para o conflito. Amanhã, com as horas ocupadas pela profissão, tudo se tornará mais sensato. Penso, muitas vezes, que por detrás dessas felicidades que se arvoram publicamente há patologias tais que a única maneira de conviver com elas é criar um grande cenário de vida beata, cheio de corações, sorrisos abertos e fins felizes. Depois, chega a hora em que a boca já não consegue mimar o sorriso e a beatitude mostra o inferno. Talvez a ausência de chuva e de vento tenha serenado os espíritos ou talvez se tivessem cansado. Agora, o silêncio desliza num raio de luz e incendeia-se sobre pequena mata de cedros que avisto. É domingo.

sábado, 17 de março de 2018

Regresso a Ítaca


Muitas vezes, quando vou visitar a minha mãe, aproveito por passar por dentro da cidade. Faço-o como se tratasse de um regresso a casa. Não encontro nessa viagem de retorno os escolhos que Ulisses encontrou, no regresso de Tróia, para chegar a Ítaca. Por aqui não há ciclopes de um só olho nem se escuta o canto das sereias. Tudo se passa como sempre se passou, apenas o tempo cobriu cada coisa com o seu manto de poeira e não há quem esteja disponível para limpar o pó. Os conhecidos estão cada vez mais enrugados e os novos, quando se avistam, são escassos e parecem já envelhecidos, contaminados por uma nostalgia de não se sabe bem de quê. Talvez este tempo de Quaresma obrigue a um jejum de novidade e a antiga vila se prepara assim para o grande luto que antecede o domingo de Páscoa. Ao passar pela velha ponte do Raro espreito o rio. Corre exuberante. O castelo, sonolento, abre a boca das muralhas e boceja. A certa altura, na rua da Fábrica, corto à direita. O carro desliza devagar e eu espero ver-me ali, um pouco mais à frente, nos meus dez anos a jogar futebol em plena rua. Paro o carro e só há silêncio. Cheguei, mas eu não estou lá.

sexta-feira, 16 de março de 2018

Iluminações


“De formas mudadas em novos corpos leva-me o engenho a falar”. Assim começa Ovídio as suas Metamorfoses. Vê-se logo que entrei de fim-de-semana. Ora estas metamorfoses são coisas mais importantes do que se pensa. Veja-se o caso de Saulo de Tarso, agora conhecido por S. Paulo. Não fora a súbita metamorfose sofrida por ele na estrada de Damasco e hoje não haveria cristianismo ou, se houvesse, seria outra coisa, talvez menos preocupada com o sexo. Também eu, por vezes, sofro uma metamorfose, não tão dramática quanto a de Paulo, mas também não me ponho a caminho de Damasco. Limito-me a passar pelas ruas de Torres Novas. Durante décadas odiei, com determinação, favas. O cheiro deixava-me nauseado. Como em todos os ódios, também neste o que sobrava em fervor faltava em racionalidade. Há uns tempos, nem sei bem porquê nem aonde, tive uma metamorfose. Hoje foram, não sem grande prazer, o meu almoço. A cada um as suas iluminações.

quinta-feira, 15 de março de 2018

Aguaceiros


Os dias incertos do final do Inverno repercutem-se na indecisão que alastra nos passos dos transeuntes. Não sabem se o seu caminho é o do sol ou se, daqui a instantes, a água derramar-se-á das nuvens como se a arca de Noé estivesse pronta e um dilúvio viesse purificar a terra da maldade humana. Caminho de chapéu de chuva na mão, mas espero que o sol me poupe a um aguaceiro. A cidade ronrona e furtiva escapa-se-me dos olhos. Passos por pessoas que cumprimento, mas não consigo já localizar o nome de algumas. A folhagem da memória é precária e caduca, torna-se pó com excessiva facilidade. À rua onde passo deram-lhe o nome da revolução, mas nela tudo é sossego e indiferença, uma ordem sem a cegueira delirante da exaltação. Por ali, apenas um tribunal, uma farmácia, mais acima, escolas. Nada que lembre a branca obscuridade do entusiasmo e da fantasia. Os dias são como a vida na província, passam devagar, mas o tempo, esse corre desalvorado e sem tino, ansioso a todos entregar, sem demora, à tranquilidade do ataúde. O melhor é abrir o chapéu, uns pingos grossos anunciam a bátega infernal que há-de vir.

quarta-feira, 14 de março de 2018

Vontade


Chove. O vento inclina as copas das árvores, fá-las desenhar figuras bizarras, para depois as deixar sonâmbulas, muito aprumadas, ramos a apontar para o céu. Os campos de jogos da escola em frente estão cobertos por lençóis de água. Não se avista, da minha secretária, vivalma. Vejo as notícias – ah essa oração da manhã do homem moderno que ainda não dispenso – e deparo-me com o anúncio da morte de Stephen Hawking, o físico britânico. Fico a olhar para a rua e a pensar no que foi a sua vida. Na verdade, muitos dos problemas dos homens residem na vontade fraca. Ele que deveria ter morrido há quase meio século viveu em circunstâncias físicas excepcionalmente difíceis e é uma das grandes figuras do século XX e inícios do XXI. Sim, ele teria uma inteligência prodigiosa, mas sem uma vontade de ferro nunca o seu nome teria chegado a nós. Ao olhar os seus dados biográficos, descubro que escolheu bem os dias para nascer e morrer. Nasceu no dia em que, trezentos anos antes, morrera Galileu Galilei e morreu no dia em que, cento e trinta nove anos antes, nascera Albert Einstein. Para completar o quadro, pensei, só falta uma coincidência com Isaac Newton. A chuva rumoreja e o dia enovela-se numa cinza triste. Indiferentes a tudo isto, algumas oliveiras permanecem impávidas, como se soubessem de coisas que nunca imaginaremos.

terça-feira, 13 de março de 2018

Palavrões


Fui à farmácia comprar um medicamento que me há-de fazer bem à hipertensão arterial. Um exercício contumaz que evitará, presumo esperançoso, que a tensão se entregue ao devaneio da hipérbole. Animado pela perspectiva, saio e, em plena avenida, passa um bando de pré-adolescentes. Raparigas e, perdido entre elas, um rapaz. Talvez inconsolado pela sua solidão de género, desdobra-se, em altos berros, em palavrões. Em busca da masculinidade, pensei, ou talvez fique mais aliviado e esteja a prevenir alguma doença do fígado. As pessoas passavam, os homens sorridentes, as mulheres de orelhas moucas. Se tivesse a certeza de que uns palavrões eram, para a hipertensão, mais eficazes que um beta bloqueante, acho que também eu desatava a bradar avenida fora. Duvido, porém, da eficácia da metáfora e segui para casa.

segunda-feira, 12 de março de 2018

A repartição


Um repartição pública tem um ritmo muito próprio e, se observado com atenção, muito regulado. Num tempo em que a sociedade e a natureza se desregulam, há um nicho onde, apesar do aparato das tecnologias de informação e da parafernália dos periféricos, a regularidade se impõe do abrir ao fechar das portas. Contrariamente ao que se pode imaginar, a regularidade pública não é sinónimo de lentidão. Quando hoje, por um daqueles afazeres a que qualquer cidadão tem de se submeter, entrei numa dessas repartições e, depois de tirar a senha, pensei que, com o pouco tempo disponível, o melhor seria ir-me embora. A sala cheirava a mofo e tudo parecia tão lento que, com mais tempo, num outro dia haveria de tratar do que ali me levara. Talvez algum anjo me tivesse soprado ao ouvido, mas acabei por ficar por ali a observar a cadência com que os séculos XVIII e XIX se arrastam em pleno século XXI. Imaginei-me numa daquelas repartições por onde correu o processo que conduziu Joseph K. à morte. A imaginação, porém, não é uma faculdade assisada e não hesita em derramar fantasias e quimeras, quando não calúnias e vitupérios, no espírito do incauto que a transporta. O mofo não tem a ver com a claustrofobia da modernidade, constatei, mas apenas com a humidade e o excesso de pessoas, todas apostadas em não deixar de respirar, num espaço pequeno. E meditando nisto ia observando o ritmo com que tudo se desenrolava. Quando saí, de assunto tratado, tinha passado uma escassa meia-hora, ritmada por um saber feito de séculos, num Estado que encontrou há muito a sua cadência que, só na aparência, não coincide com a nossa. Cheguei à rua e o sol brilhava e os raios reverberavam nos passeios molhados. Meia hora, quem diria? E assim fui à minha vida.

domingo, 11 de março de 2018

Tagarelice


Devaneei, de carro e apressadamente, por algumas ruas da cidade. Tudo me pareceu mais limpo, mas pode ser apenas sugestão trazida pelas bátegas de água. Agora estou em casa e olho pela janela. Ao longe, as muralhas do castelo, por instantes, reverberam. O vento inclina as copas das árvores, o sol brilha enquanto as nuvens não o cobrem, um carro estaciona nos muitos lugares vagos trazidos pelo fim-de-semana. É domingo e as famílias, algumas, terão ido à missa e reúnem-se para celebrar a sua eucaristia privada. Um cão alçou a perna junto a um tronco de árvore, depois baixou-a e seguiu caminho farejando. Folhas caídas e restos de plásticos enrolam-se no vento, elevam-se nos ares e, como sempre acontece, caem. As palavras servem para isto, para quebrar aquilo que o silêncio deveria calcinar, mas que a imprudência dos mortais acaba por transformar em tagarelice.

sábado, 10 de março de 2018

Sábados de província

Fui almoçar ao Arripiado, do outro lado do Tejo. Estamos, na região ribeirinha aqui mesmo ao lado, na altura da lampreia e do sável. A lampreia, confesso, nunca me convenceu. As pessoas dizem que ou se ama ou se odeia, mas o que as pessoas dizem o vento o leva. Nem amor nem ódio, passo bem sem ela, mas se tiver de ser, não volto as costas. Por falar em lampreia, lembrei-me do romance A Saga/Fuga de JB, do galego Torrente Ballester. Fala-se nele, tanto quanto a memória me permite recordar, de lampreias e da relação directa entre a sua qualidade culinária e o suicídio por afogamento. Ano em que o rio não acolha o seu suicida a lampreia não é grande coisa. A idade faz-nos estas partidas, começamos uma conversa e, não tarda, entramos em roda livre e falamos do que vem à cabeça. A ida ao Arripiado, a um restaurantezinho de aldeia com vista para o Tejo, deve-se ao culto do sável. A cada um os seus prazeres, os meus são parcos. Depois do sável, um retorno por Constância, onde temo sempre ter de me encontrar com Camões, embora a sensatez do poeta tenha, até agora, evitado o incidente. E chegado ali, fiquei a olhar o Tejo e o Zêzere, este a derramar-se naquele, eu a recordar inundações, as águas ainda vão baixas, disse, e a ver a vida correr. Heraclito, sentado na outra margem, fazia-me sinal, mas eu, que estava acompanhado, fiz-me desentendido. São assim os sábados na província, quando chove.

sexta-feira, 9 de março de 2018

Registo


Os carros deslizam pela Sá Carneiro, como se estivessem apressados, temerosos de chegar tarde ao fim-de-semana. Por vezes, algum encontra um lugar de estacionamento e pára. De lá de dentro, sai um homem apressado e corre para um dos bancos. Uma trupe de adolescentes passa, perdida na algazarra, confiante na sua imortalidade e logo desaparece. O pior são as bátegas de água. As pessoas protegem-se ou, irritadas, abrem chapéus. Logo o vento sopra, e inclina-os. Mesmo à minha frente, um virou-se, deixando ver as varetas frágeis que seguram o tecido sintético multicolor. Os prédios, presos na sua solidez de aço e betão, olham com indiferença a azáfama dos mortais. E os meus olhos registam tudo isto – o carro que agora passa descuidado molhando alguém – para que o possa contar, como se a minha missão fosse arrolar tudo o que é inútil. Os cedros da escola em frente abanam, tocados pelo vento que a sexta-feira despeja na cinza da tarde.

quinta-feira, 8 de março de 2018

Realidades


Basta, por vezes, uma troca de palavras com alguém para percebermos que o mundo está muito longe daquilo que imaginamos. Sob os nossos olhos, desenrolam-se as coisas mais inusitadas. Não se tratam sequer de mistérios metafísicos mas de realidades vividas, existências sólidas. Mesmo em pessoas com propensão para um certo cepticismo sobre o mundo, pensei no fim da conversa, há um excesso de idealização. A realidade é sempre pior do que imaginamos. O que vale é que vida continua exuberante, indiferente ao nosso idealismo e às nossas desilusões. As coisas são o que são. Não há nada como uma redundância para fim de conversa.

quarta-feira, 7 de março de 2018

Chuva fria


Depois de uma pequena cerimónia, saí da escola sob chuva fria, a água a deslizar no pára-brisas, enquanto as pessoas se escondiam dentro de casa. Nestes dias, a cidade parece-me menos irreal. O tempo invernoso, penso-o muitas vezes, é o tempo da verdade. Os grandes dias de calor são uma antecipação do inferno, no qual já ninguém acredita, e os amenos não conseguem esconder a doce ilusão que os habita. Os dias frios e chuvosos colocam-nos perante a nossa condição de seres abandonados sobre a terra. E isso chega. Claro que há sempre quem tenha qualquer coisa para vender. Uma ideia original, a salvação da pátria, um mundo melhor. Não tenho alma de comerciante nem inclinação para o consumo. Olho as muralhas do castelo e sigo o caminho. Basta-me a chuva fria.

terça-feira, 6 de março de 2018

Constrangimento


Hoje fui a uma pastelaria onde não entrava há muito. Antes de ir tratar de um assunto levemente desagradável, senti que comer uma bola de Berlim não traria mal ao mundo. Deparei-me com antigas professoras, que, calmamente, lanchavam. Todas foram minhas colegas e duas delas deram-me aulas quase há cinquenta anos. A passagem dos anos não ajuda ninguém, pensei, e, ao olhar para elas, vi o tempo, com as suas garras inoxidáveis, deslizar sobre mim. O brilho que um dia as animou, que as fez suportar essa estranha profissão de dar de beber a quem não tem sede e de comer a quem não tem fome, esconde-se agora sob uma névoa de indiferença, onde, para dizer a verdade, não há traço de tristeza ou de alegria. Constrangido troquei algumas palavras amáveis e rápidas. Satisfeita a gula, esperava-me o frio da rua e o tal assunto levemente desagradável, também ele motivado pelo passar do tempo. Um dia, se chegar lá, olharão constrangidos para mim, pensei.

segunda-feira, 5 de março de 2018

Colégio de Santa Maria


Sempre que passo por lá, e faço-o várias vezes por dia, há uma sombra de tristeza a pairar sobre aquele lugar. Não é que esteja abandonado e a ruína seja o horizonte próximo. Pelo contrário, está bem conservado, apesar das alterações inóspitas que a sua fachada sofreu. Houve ali uma vida exuberante, sonhos, uns fundados na terra da realidade, outros mais tresloucados. Hoje tudo isso é uma sombra que se desvaneceu na voragem dos dias. O antigo Colégio de Santa Maria é, mas confesso que não tenho bem a certeza, um lar de repouso de freiras. Manteve a fidelidade ao feminino, mas há muito que não há por ali raparigas de bata azul, carregadas de livros e de ilusões. Agora floresce a indiferença de quem passa ou a melancolia de quem cresceu num mundo que o mundo aniquilou. Olho a rua e o vento sopra, levando com ele folhas mortas, papéis inúteis, restos de plástico, memórias feitas de flocos de nuvens e o tecido inútil de tudo o que passou.

domingo, 4 de março de 2018

Leituras


A chuva sossegou, mas o dia continua preso à cinza com que as nuvens o cobrem. Não saio de casa e aproveito para ir adiantando algumas leituras entre mãos. Estas leituras, na verdade, não me servem para nada. Aquilo que preciso para o exercício da minha profissão é, por escandaloso que pareça, bem mais rudimentar. Muita gente faz o mesmo que eu, porventura melhor, sem ter sequer leituras. Alguém poderá supor que ler tem em si um valor intrínseco. Em tempos, depois de uma fase de crente, tornei-me agnóstico relativamente a esta proposição. Hoje sou ateu. Nenhuma leitura tem valor intrínseco. Pessoas com boas intenções dirão: ler ajuda a compreender o mundo. Também aqui a minha propensão, depois de passar os sessenta, é de transitar do agnosticismo para o ateísmo. Resta ler por prazer. Sim, é uma hipótese. Outra será ler porque não se sabe fazer outra coisa. Aliás nem constituem um dilema. A incompetência e o prazer andam de mãos dadas muitas vezes. Aqui e ali, a muralha de nuvens abre pequenas brechas por onde escorre uma luz viva e se avistam farrapos azuis do céu. O tempo passa, o melhor será mesmo pegar no livro.

sábado, 3 de março de 2018

Deveres


Talvez se devesse, aos sábados pela manhã, ao acordar, recitar como uma oração o poema de Fernando Pessoa que começa com os inusitados versos Ai que prazer / Não cumprir um dever. O problema é que nunca sabemos a que deus devemos dirigir a prece. Os deuses, mesmo os mais condescendentes, são zelosos em matéria de dever e, raramente, atendem tais súplicas. Não se impressionam nem com a luz de uma vela, mesmo eléctrica. Noutros tempos, uma hecatombe movia-lhes o coração. Mas que mortal devedor de deveres tem cem bois para o sacrifício. E assim, enquanto a chuva se entrega à vertigem da queda, entrego-me aos deveres que devoram o tempo. Mais que isto, lembra o poeta, É Jesus Cristo / Que não sabia nada de finanças / Nem consta que tivesse biblioteca… Era sábio esse Cristo, mas o que se poderia esperar do filho de Deus? Que lesse Aristóteles, que ensinasse economia, que escrevesse um tratado de finanças? Um pombo passa diante da minha janela e poisa no telhado da frente. Será o Espírito Santo? Também Ele há-de ter os seus deveres.

sexta-feira, 2 de março de 2018

Homofonias


É um problema de homofonia. E com o passar dos anos a patologia tende a agravar-se. Ontem, por exemplo, depois de discorrer sobre a vexata quaestio das persianas e das minhas deambulações por esta cidade que, em seu seio, me acolhe, acabei por desconcertar, e aqui é mesmo desconcertar, o texto escrevendo “concertadas” no lugar de “consertadas”. O que me valeu foi uma alma amiga que há pouco me fez notar a situação. Não é que não possa haver um concerto para persianas e viola da gamba ou um quinteto de cordas e persianas. Pode, mas não com as minhas persianas, as quais não foram preparadas para o efeito. Limitam-se a subir e a descer, isto quando não entram em greve, como é o caso. Tudo isto para dizer que um erro é um erro, mesmo que a culpa esteja na homofonia e na desatenção de quem escreve. Se fosse dado a angústias, o que não sou, diria que o que me angustie é a possibilidade que o conflito com a homofonia aumente e que novos desarranjos floresçam. O que hei-de eu fazer?

quinta-feira, 1 de março de 2018

Conservação


Devido a um problema com persianas tive de fazer, para acertar a visita de um técnico, um trajecto diferente para casa. Cheguei a uma altura na vida em que qualquer alteração aos hábitos se torna penosa. Embora, a verdade seja dita, esta inclinação para o conservadorismo seja coisa antiga. E foi isso que me entreteve no caminho, enquanto os olhos iam absorvendo a melancolia que se desprende de tudo nesta pequena cidade. Talvez essa melancolia se deva à inclinação conservadora, a qual gera uma incompreensão para muito do que se passa por aqui. A minha esperança, ponderei, reside nos castanheiros da avenida, quando chegar a hora sumptuosa da floração. Serão ainda algumas semanas de pura irrealidade. A pujança das árvores, as cores das pétalas, o rio e, sobre tudo isso, as muralhas do castelo, elas que já viram de tudo, a espiar a vida pobre que sob as suas pedras se desenrola. Talvez para a semana tenha as persianas consertadas, pensei. Não há nada como conservar as coisas.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Beco sem saída


Quando hoje passei pela ponte do Raro e olhei as águas lembrei-me de uma velha canção de Simon & Garfunkel, Bridge Over Troubled Waters. Uma lembrança a despropósito, como me acontece com frequência. Nem a minha disposição é de andar a distribuir consolo, nem as águas do rio, do rio da minha aldeia, quase o digo, sonham sequer em ser turbulentas. Estas súbitas aparições do passado não deixam de ser misteriosas. Seguimo-las e não deixamos de ir dar a becos sem saída. Quantas vezes passei por aquela ponte? Quantas vezes, num tempo tão distante, terei ouvido aquela canção? E tudo o que me motivou num e noutro caso tornou-se tão obscuro que sinto crescer dentro de mim uma dúvida sobre se alguma vez atravessei a ponte ou ouvi a canção. E assim lançada, a minha mente já se precipitava para uma meditação metafísica sobre a irrealidade da existência. O que me valeu foi o semáforo ter aberto. A salvação está em qualquer lado, até num semáforo perdido numa cidade que, também ela, parece um beco sem saída.