quinta-feira, 30 de junho de 2022

Não ter história

Ontem disse que a Arminda casou com o Gustavo, mas o casamento não foi ontem. Foi há mais de um século, em pleno século XIX. Para ser mais exacto, eles não casaram efectivamente, mas o romancista Teixeira de Queirós casou-os no romance os Noivos, obra publicada em 1879. Ontem estava a ler a descrição do casamento, um retrato da Lisboa burguesa, melhor da Lisboa onde uma certa aristocracia se cruza com a emergente burguesia nacional, ainda em fase de brunidura. Segundo alguns especialistas nas coisas literárias (Óscar Lopes e António José Saraiva), Teixeira de Queirós tinha um talento literário semelhante ao de Eça de Queirós. Apesar dos apelidos, julgo que entre eles não haveria qualquer relação familiar, mas estas coisas nunca se sabem. Junho acaba ventoso, com as temperaturas por aqui domesticadas. A partir de amanhã, porém, chegam aos trinta graus, lá para o fim da próxima semana batem à porta dos quarenta. A vida não passa desde perpétuo desequilíbrio. Estava tudo a ir tão bem, tão civilizado, e logo o tempo tem uma crise, um gosto desmesurado pela hipérbole, uma cultura do excesso, que tenho de suportar como posso. Não me perguntem se o casamento de Arminda e Gustavo foi feliz. Não faço ideia, ainda não cheguei lá, mas desconfio que não. Dos amores felizes não há literatura, pois não têm história. Caso exista um paraíso e uma vida eterna nele, também nada disso terá história, pois a história só começa com o mal. É ele que é preciso narrar, talvez, imagino, para esconjurá-lo. Felizes, as pessoas que não têm história, embora todos queiram ter uma. Os desejos pagam-se caro.

quarta-feira, 29 de junho de 2022

Sem narrativa

Há dias como o de hoje em que até um cavaleiro andante se sente no desemprego. Sem tortos para endireitar, sem mundos para pôr nos eixos, logo sem aventuras para delas dar notícia ao mundo. Fui à capital de distrito, que é um lugar aonde gosto de ir, mas nem aí se apresentou caso digno de menção. Diante de mim, acumulam-se as tarefas a que a minha diligência há-de pôr fim, embora esteja pouco inclinado para ser diligente. Está vento, sei-o porque vejo o ramalhar das árvores. As cevadilhas da escola aqui ao lado já perderam as flores. Estavam, ainda há dias, tão exuberantes, mas não suportaram a vinda do Verão. Não estou só no mundo. Na avenida, os carros passam devagar, não vá algum peão intrometer-se no reino dos automobilizados. Também devagar, vão os transeuntes. Algumas mulheres preocupam-se com as saias. O vento tem súbitos atrevimentos, mas ninguém estará interessado em ver aquilo que as saias deixam de tapar. O que me preocupa, neste momento, é o friso das orquídeas. Este ano, as coisas não correram pelo melhor. Umas ainda não floriram, outras deixaram as flores murchar rapidamente. Tivesse eu tempo, e falaria com Nero Wolfe. Ele, entre a resolução de dois crimes e três jantares, haveria de me dar uma solução para as pobres orquídeas. Não tenho tempo, infelizmente. Ah… a Arminda casou com o Gustavo. Estavam noivos e casaram. Isto vem a propósito de quê? De nada, mas talvez amanhã explique, caso deseje tornar-me um émulo do folhetinista Cerdeira.

terça-feira, 28 de junho de 2022

Precipitações no juízo

Por certo, devido ao livre-arbítrio, precipito-me muitas vezes nos juízos que faço e promovo como verdadeiras crenças, que uma análise mais atenta revelará, ao menos dotado dos observadores, a sua falsidade. Imagino, embora seja uma presunção da minha parte, que haverá observadores ainda menos dotados do que eu. Entrei numa livraria. Bem, esta afirmação é falsa. Entrei numa superfície comercial que também vende livros. Dirigi-me às estantes onde está a literatura de ficção, em geral romances e contos, e deixei correr os olhos pelas lombadas dos livros. Passei por de Javier Marías para Amin Malouf e, antes de chegar a José Luís Mendonça, deparo, com grande surpresa minha, com o Manifesto do Partido Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels. Mas isto não é literatura, mas política, quanto muito filosofia política, disse de mim para mim. Devido ao meu livre-arbítrio, conjecturei de imediato que a pessoa que tem a função de arrumar os livros nas prateleiras não faz a mínima ideia dos géneros pelos quais os livros se podem dividir e arrumar. Em abono dessa pessoa desconhecida, tive também um pensamento benévolo. Pelo menos sabe que Marx vem antes de Mendonça e depois de Malouf, o que já não será mau. No entanto, aquela ideia de que a pessoa arrumadora não sabia distinguir os géneros poderá ter sido um juízo precipitado e falso. Ela pode ter pegado no livro, feito uma leitura rápida e achou que tudo o que lá se encontrava era pura ficção. Afinal, penso agora, as pessoas que arrumam livros não estão tão mal preparadas quanto pensei de início. Um leitor atento de Borges teria percebido de imediato o que estava em jogo. Há muito, porém, que não leio Borges e perdi o treino. Não se pense que há, no que escrevo, algum acinte para com a dupla Marx e Engels. Acontece com o que escreveram aquilo que acontece com todos os que escrevem sobre ideias. Políticas, morais, metafísicas, estéticas, religiosas, científicas. As suas obras chegam ao mundo com a pretensão de dizerem a verdade e, com o passar dos anos, transformam-se em literatura, pura ficção, romances, novelas, contos, disfarçados de ensaios, tratados, artigos especializados, sei lá. Veja-se o exemplo dos diálogos platónicos. Literatura e da melhor; o que se pode dizer de Platão, pode afirmar-se de Aristóteles e de todos os que se entregaram à ensaística. O destino de qualquer livro é tornar-se ficção, mesmo os mais ferozmente científicos. Foi isto que aprendi com a sábia decisão de quem arrumou Marx e Engels e o seu popular Manifesto entre a literatura de ficção. Terei de me precaver para evitar, no futuro, a precipitação ao formular juízos. 

segunda-feira, 27 de junho de 2022

D. Taresia

Começámos mal, e o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita. Descubro que tenho uma autêntica colecção de provérbios ao gosto popular. Isso mostra que o meu pensamento, caso tenha um, é puro senso comum. Este mal começar refere-se a Portugal, este país soalheiro, inclinado para o Atlântico, onde se comem farturas e se acompanham as imperiais com pires de tremoços. Como a minha ignorância é muito vasta, não sabia uma coisa que só hoje descobri. A Bula Fratrum Nostrum, de 18 de Junho de 1116, do Papa Pascoal II, reconhece D. Teresa de Leão, a mãe de Afonso Henriques, como Rainha de Portugal. Mais, ela foi reconhecida como Rainha também por Urraca de Galiza, Leão e Castela, sua irmã, e, posteriormente, pelo filho desta, Afonso VII de Galiza, Leão e Castela. Depois, as coisas entornaram-se entre as irmãs e, como costuma acontecer, houve guerra. Afinal, o primeiro rei de Portugal foi uma rainha – assinava: Ego regina Taresia de Portugal regis Ildefonssis filia – o que não deixa de ser particularmente perturbador para nós, homens portugueses, os mais másculos neste mundo e mesmo no outro. Em vez de um patriarca, um macho alfa autêntico, temos uma matriarca originária. O que nasceu torto, porém, não foi o facto de ser uma rainha e não um rei que inauguraram esta aventura, mas aquela história da batalha de S. Mamede. Um acto de sedição. Mal a coisa tinha começado, tivemos logo direito a um golpe de Estado. Ainda por cima, a revolta de um filho contra a mãe, o que dá uma tonalidade psicanalítica, embora invertida, à nossa nacionalidade. Não sei como se poderão sentir todos os varonis aficionados deste meu Ribatejo, educados numa tradição monárquica que remonta a Afonso I, sempre prontos à camaradagem máscula para defrontarem os toiros, quando souberem isto, que afinal foi uma mulher quem, pela primeira vez, pegou o toiro pelos cornos, isto é, o governo de Portugal. Por mim, não me importo que o primeiro rei tenha sido uma rainha, já vi no mundo muitas coisas, mas que se lhe dê o nome pelo qual assinava. Ter uma D. Taresia por rainha é muito diferente de ter uma qualquer Teresa. Começou a semana, e a utilidade desta não faz bem a ninguém.

domingo, 26 de junho de 2022

Um pecado capital

Na sexta-feira, passei o dia a julgar que estava no sábado. Ontem, não foram poucas as vezes que pensei ser domingo. Hoje, porém, não acho que seja segunda-feira, mas também não acho que seja domingo ou outro qualquer dia da semana. Há dias assim, dias que não estão azados para serem seja o que for. São dias sem qualidades. Tanto podem ocorrer ao fim-de-semana, como durante a semana, naqueles dias a que se deu, pela sua inutilidade, o nome de dias úteis. Não se pense que venho aqui, como o fez o genro do senhor Marx, fazer o elogio da preguiça. Ela não precisa de elogios. O pior é que é um pecado capital. Começou por ser designado acédia, mas alguém achou por bem mudar-lhe o nome. Estava, porém, a falar dos dias sem qualidades. O que distingue as coisas e lhes dá a sua individualidade é as qualidades, ou, melhor, a combinação destas. Portanto, hoje vivo um dia indistinguível, pura substância sem acidentes. Imagino que estas ideias só me ocorreram depois de almoço, o que pode ser um sinal de que não bebi água à refeição. É uma possibilidade, mas não confirmo nem desminto. Seja como for, quem me falou de acédia foi o padre Lodo, na chamada dominical. Costuma dizer que ao domingo tem de dizer missa e falar com os amigos. Desconheço a ordem pela qual cumpre a tarefa. Seja como for, disse-me que estava a sofrer de acédia. Temia estar estuporado e não se interessar nem por ele nem pelo que se passa no mundo. Ando há dias assim, vociferou. Sugeri-lhe um psicanalista. Ele riu-se. Não sabe que sou jesuíta, perguntou-me. Sei, sei bem, mas talvez ajudasse. Um jesuíta não se psicanalisa. Confessa-se. Respondi que no foro da consciência de outrem eu não me intrometia. A cada um a sua fé. Ele riu-se e perguntou-me quando iria a Lisboa. É que tinha descoberto um pequeno restaurante que merece bem uma visita demorada. Eu pensei que a acédia era sol de pouca dura.

sábado, 25 de junho de 2022

A invenção do tempo

Talvez seja uma doença, uma adicção. Logo de manhã, recebi um, ou será uma?, sms indicando que o livro que tinha encomendado já estava na pequena fnac que há nesta pequena cidade. Não me precipitei. Deixei passar a manhã e quando, nas torres das igrejas, batia a uma da tarde entrei pela superfície comercial, mas não me dirigi logo ao balcão para fazer o levantamento. Havia que ver os livros. Estava a olhar para as estantes quando me lembrei que um amigo me tinha dito que o último romance do Houellebecq, Aniquilação, é bastante bom. Procuro-o e lá estava ele com os seus 4 centímetros de lombada e 640 páginas. Ao lado estava Serotonina, o penúltimo do mesmo autor e que não tinha comprado. Este é mais comedido. A lombada não chega aos 2 centímetros e as páginas não alcanças as 280. Já podia dirigir-me ao balcão para levantar o que tinha comprado online, o romance de Almeida Faria, Cortes. Quando me desloco da estante para o balcão passo por um outo móvel pejado de livros. Fico a olhar. Peguei num pequeno livro de Ludmila Ulitskaya, um romance denominado Sonechka, com uma miserável lombada de 1 centímetro e que não chega às 120 páginas. Mais centímetro, menos centímetro, peguei também nele. Podem achar que interessar-se pelos centímetros das lombadas é coisa de gente que enlouqueceu. Não os desminto, mas o problema é que cada 10 centímetros de lombadas exigem 10 centímetros de estante. O que me levou a comprar o livro da Ulitskaya foi o que dizia numa das badanas: Para Sonechka, a leitura tornara-se uma forma ligeira de loucura, que não a abandonava nem durante o sono: dormia como se estivesse a ler os seus sonhos. Sonhava com romances históricos cativantes e, pela natureza da acção, adivinhava o tipo de letra e, estranhamente, sentia os parágrafos e a pontuação. Isto convenceu-me. Nunca tive inclinação para o romance histórico, mas, agora que não tenho pouca idade, descobri que isso era um erro. Eles são uma espécie de ficção científica ao contrário. Esta, muitas vezes, inventa mundos futuros. Os romances históricos inventam mundos passados. Que diferença há entre eles e os romances que se presumem num presente? Nenhuma, pois todos fazem o mesmo. Inventam um tempo. Agostinho de Hipona, um converso ao cristianismo, num arrebatamento confessional escreveu: Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; se quero explicá-lo a quem me pede, não sei. Estas palavras têm sido citadas milhares e milhares de vezes, como introdução ao enigma do tempo. Talvez não exista enigma nenhum. Porquê? Porque não existe tempo. Então por que razão temos a sensação de que ele existe? Porque contamos histórias. O tempo é aquilo que as nossas histórias – os romances, por exemplo – inventam. Uma curiosidade. A Ludmila Ulitskaya e o Almeida Faria nasceram ambos em 1943. Ela nos Urais e ele no Alentejo. Não se pode dizer que sejam sítios fáceis para nascer.

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Com papas e bolos

Por razões que não vêm ao caso, tenho estado a ler um romance de Luís Augusto Rebelo da Silva, Lágrimas e Tesouros: Fragmentos de uma História Verdadeira, publicado no ano de 1863. O título não é particularmente prometedor. A acção passa-se no tempo de D. Maria I e centra-se na figura de William Beckford e da sua viagem ao mosteiro de Alcobaça. A descrição da recepção do aristocrata inglês e dos priores – de Aviz e de S. Vicente – que o acompanhavam é um exercício de ironia que nos retrata muito bem. Não deixa de ser interessante que, desde o século XVIII, se democratizou aquele estilo pomposo e provinciano de recepção de gente reputada como importante, tão bem descrito por Rebelo da Silva. Encontramo-lo numa câmara municipal se lá vai um ministro, numa instituição pública se um superior na hierarquia burocrática a visita, provavelmente numa paróquia, se o bispo ali se desloca. Não se trata, todavia, de uma mera saloiice, mas de um acto de fina manhosice com que os que estão em baixo tentam, e muitas vezes conseguem, enganar quem está acima. O ridículo em que facilmente se cai é menos ridículo do que parece, é um exercício gongórico para apaziguar e, se possível, cegar as potestades que têm um poder despótico, mesmo num regime democrático. Penso muitas vezes que os portugueses cultuam os que estão acima apenas porque não os podem matar. Como não se pode democratizar o homicídio, democratizou-se esta arte de bem receber que assenta no provérbio com papas e bolos se enganam os tolos. De resto, somos um povo pacífico, apesar de no século passado termos assassinado um Rei, um príncipe herdeiro, um Presidente da República e de termos falhado por um triz o homicídio de um Presidente do Conselho. Nem sempre os homicidas são competentes.

quinta-feira, 23 de junho de 2022

Mouras encantadas

O meu apaziguamento com S. Pedro é total. Está um magnífico dia de Outono. Temperatura amena, o sol escondido por nuvens não ameaçadoras, um vento moderado. Talvez a chuva faça uma visita, mas sem excessos. O dia está de tal modo que comecei a imaginar que não faltaria muito para o Advento e logo chegaria o Natal. Eu sei que este tempo é sol (ou antes falta de sol) de pouca dura. Estou sem assunto. Enquanto este – o assunto – me vai faltando, oiço a música do tunisino Dhafer Youssef. Veio de outro mundo, mas a sua estranheza não é inquietante. Pelo contrário, há nela qualquer coisa que estabelece uma relação com um ouvinte ocidental. Talvez acorde imagens vindas da infância, de um tempo em que se ouviam histórias sobre mouras encantadas. É possível que já não se contem histórias de mouras encantadas. Não as contei aos meus filhos nem aos meus netos. Talvez devesse sentir remorsos por o não ter feito, mas nunca me ocorreram. É assim que se quebram tradições. As coisas entram no reino do esquecimento e desaparecem. Este desaparecimento, todavia, não significa uma dissolução dessas coisas no nada. De súbito, elas reaparecem e saudamo-las com o coração aberta, como se fossem um velho amigo que há muito não víamos. Aqui, nesta cidade onde enfrento o duro peso da realidade, também viveram, há muito, mouros e, por certo, mouras. Imagino que algumas possam ter sido encantadas, outras foram apenas encantadoras. A estas, a morte levou-as. As outras estão por aí invisíveis à espera da hora em que possam manifestar-se numa qualquer história que um pai conta a um filho. O Outono benfazejo progride por dentro deste Verão. Quando se não tem assunto, fala-se do tempo. Eu sigo à risca o adágio.

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Aristocratas falhados

No ano de 1883, Alberto Pimentel publica um romance com o título Aventuras dum Pretendente Pretendido. Os dois primeiros curtos parágrafos são um retrato do país. Cito-os, mas como se fossem apenas um: Portugal é um país de pretendentes e de ministros. Começa-se por pretender qualquer coisa e acaba-se por pretender qualquer pasta. Estas coisas vêm de longe e, provavelmente, irão para longe. Somos um país cheio de pessoas com pretensões. Estas, aliás, alimentam uma boa parte da nossa literatura e não apenas a de segunda classe. Talvez sejamos todos aristocratas falhados. Pode haver mesmo uma causa genética para tamanho desgosto com aquilo que se é e tanta azáfama para se ser o que não se é. Há tempos, embora não me lembre quando, li que um especialista em genealogia, dos mais reputadas, asseverava que todos os portugueses são descendentes de Afonso Henriques. Não serei eu que o vou desmentir, mas sendo assim já se percebe de onde vem este vício da pretensão, que se terá tornado em virtude. Também Afonso Henriques, um dia, pretendeu ser Rei. Daí, por via genética, através de uma rede de trocas de genes, umas legais outras nem por isso, a pretensão fez caminho e aninhou-se no coração de cada português, neto longínquo daquele que, entre nós, mais pretensão albergou. Aliás, isso explica por que razão vivemos numa República. Seriam tantos os pretendentes à coroa, que o melhor é que nenhum a use e que se pretenda outra coisa, nem que seja a pasta de ministro.

terça-feira, 21 de junho de 2022

Princípio de incerteza

Chega a ser penoso. Pobre S. Pedro. O santo orientador do bom andamento das coisas meteorológicas perdeu a tramontana. Presumo que antigamente (pois antigamente tudo correria pelo melhor, desde que não estivéssemos lá) ele geria com zelo e eficácia os humores do clima. Agora, a idade tornou-se uma fonte de contínua desorientação. Troca constantemente os pés pelas mãos. Hoje, segundo se sabe, é o primeiro dia de Verão. Fui presenteado (é um presente e uma bênção celestial) com um dia de Inverno. Chuva, vento e frio. Mesmo que este desconcerto tenha, para mim, em dias como o de hoje, uma vantagem, não posso deixar de ficar perturbado com o que se está a passar. Cada vez mais o clima parece retirar-se de uma pacífica e tranquilizadora cadeia de causalidade para entrar no inferno da aleatoriedade. Dantes, pensava-se que os meteorologistas falhavam as previsões porque não estavam na posse de todos os dados e de todas as leis que regulariam a evolução do estado do tempo. Hoje, começamos a desconfiar que não existe qualquer lei, que tudo se passa ao acaso. Um dia de Inverno tanto pode suceder no Inverno, como no Verão. Talvez S. Pedro decida as coisas fazendo rolar um dado onde estão inscritas as estações do ano, havendo duas faces onde está escrito: tempo sem estação adequada. Em cada dia ele faz rolar o dado e assim determina o estado do tempo que nos cabe aqui. Talvez se tenha tornado, em segredo, adepto do Princípio da Incerteza de Heisenberg, que pode ser formulado do seguinte modo: quanto menor for a incerteza do Santo na administração das chaves do céu, maior será a incerteza na gestão do clima. Consta que Einstein – e Einstein é uma autoridade – terá afirmado que Deus não joga aos dados. É um facto. Deus não tem corpo, logo não tem mãos. Sendo assim, não tem como agarrar num dado e fazê-lo rolar sobre uma mesa. Mas se Deus não joga aos dados, em lugar nenhum está escrito que um santo não o possa fazer. Perante o enigma de o primeiro dia de Verão ser um dia de Inverno, apresentei um argumento para a melhor explicação, que não deixará de convencer o mais céptico dos leitores. É aquilo a que se poderia chamar uma argumentação a que não falta cogência. E anátema seja quem discordar.

segunda-feira, 20 de junho de 2022

Serões de província

Diante de mim, um livro publicado em 1940. Tem uma assinatura e, como data, apenas o ano de 1942. Isto na parte superior da terceira página. Na parte inferior, todavia, existe uma dedicatória e uma assinatura. Existe também a data de 16-XI-59. Percebe-se que, apesar de diferenças assinaláveis, é a mesma assinatura. A de uma mulher, embora não se consiga decifrar o nome. Terá comprado o livro em 1942 e ofereceu-o à filha e ao genro dezassete anos depois. Aliás, tenho outro livro da mesma autora com a assinatura da filha com a data de 21 de Fevereiro de 1942. Parecia haver aqui uma tradição familiar na compra de livros, mas chegou o dia em que essa tradição desapareceu e a biblioteca familiar – se é que havia uma biblioteca – foi vendida a alfarrabistas, o que me permitiu muitas décadas depois comprar ambos os livros. Que pessoas seriam aquelas? Teriam alguma posição social. A filha era tratada por um diminutivo que só ocorreria em classes socais com algum estatuto. A mãe sabia escrever e tinha uma letra que denotava não possuir apenas uma educação básica. Além disso, lia. O que lia ela e a filha? Sarah Beirão. Portanto, uma família culta, mas esteticamente ancorada no passado. As senhoras deviam ler, faria parte da educação, talvez mesmo da educação sentimental. Aliás a colecção onde os livros de Sarah Beirão se inserem, Colecção Portuguesa de Domingos Barreira – Editor, afinam pelo mesmo diapasão. A maior parte dos autores são desconhecidos, mas os títulos não enganam. Perguntar-se-á como sei eu que uma das mulheres é a mãe e a outra, a filha? Porque antes da assinatura da oferta se encontra a expressão da mãe mt amiga. Está uma segunda-feira melancólica. A temperatura, por aqui, não chegou sequer aos 24 graus. Felizmente, mas o dia está coberto com um véu – uma mantilha – de nostalgia. Quase que sinto uma funda simpatia por estas senhoras de boa sociedade provinciana. Como é que eu sei que eram da província. No livro da filha, está lá o nome do local onde vivia, uma cidade, nos dias de hoje, da Beira. As coisas que se descobrem com pequenos vestígios. Ou pelo menos imaginamos descobrir, para virmos aqui narrar como se estivéssemos num serão de província.

domingo, 19 de junho de 2022

Da obesidade do tempo

Há qualquer coisa errada nas apreciações correntes sobre a passagem do tempo. Não são poucas as pessoas, onde se inclui este narrador, que têm a impressão – ou mesmo a certeza – de que o tempo passa cada vez mais depressa. Ora, tive a prova irrefutável de que não é assim. Pelo contrário, o tempo está a passar mais devagar. Ontem falei da súbita manifestação no meu horizonte sonoro de um amola-tesouras e referi – ou pensei fazê-lo – a decepção de não ter chovido. Cheguei mesmo ousar escrever que há alguma coisa a funcionar mal no mundo, o que, em boa verdade, é uma impossibilidade, pois, como todos sabem, vivemos no melhor dos mundos possíveis. Ontem não choveu, mas hoje sim. O som da flauta de pã do amola-tesouras sempre é anunciador de chuva, só que esta atrasou-se. Melhor, o tempo passou mais devagar, como se os segundos tivessem sofrido uma dilatação. Isto traz um importante problema sobre a relação entre o tempo e o mundo. Se o tempo pertence ao mundo e este é o melhor dos mundos possíveis, então temos aqui um sarilho qualquer. A minha intuição é que o tempo não pertence ao mundo e, por isso, a sua obesidade, não afecta o facto de este ser o melhor dos mundos. Os atrasos que há nele não se devem a ele, mas a um factor estranho – o tempo – que não deve ser tido em consideração quando se julga a bondade deste mundo. Isto tem aplicações extraordinárias. Por exemplo, por que razão os transportes públicos andam sempre atrasados? Não por eles, que são os melhores transportes públicos possíveis, mas porque o tempo, por falta de ginásio, se dilatou. Esta também é uma excelente explicação – que nunca me tinha ocorrido – para um problema que me atormenta com alguma regularidade, o do atraso das consultas médicas em relação ao horário acordado. Os médicos não se atrasam, o tempo, que é um factor estranho à medicina, é que se dilata. Penso que para um domingo, uma descoberta como esta é razão suficiente para me sentir realizado, dilatadamente realizado.

sábado, 18 de junho de 2022

Amola-tesouras

Acabei de ouvir o som inconfundível da flauta de pã tocada por um amola-tesouras. Deu-me, de imediato, vontade de ir perscrutar o horizonte e descortinar se ali havia nuvens negras. Contive-me e consultei a aplicação no telemóvel. Sou informado de que a possibilidade de ocorrer chuva é nula. Há qualquer coisa que está a funcionar mal no mundo. Se chega um amola-tesouras, então vai chover. Se fosse dado à lógica, coisa que não sou como se pode ver por estes textos, diria que estamos perante uma proposição condicional. Sendo a proposição antecedente – chega um amola tesouras – verdadeira e a consequente – vai chover – falsa, fica provado que, por menos neste caso, a velha sabedoria ao gosto popular, saber que tanto me anima a alma de narrador de nulidades, tem graves problemas. Abri a janela e chegou até mim alguma esperança. Avisto nuvens, talvez elas se apiedem dos velhos saberes e façam o favor de deixar correr alguma água, só para aquela proposição condicional passar a ser verdadeira e evitar que as tradições morram desmentidas pela experiência. Falando mais seriamente (ainda), sempre achei estranho o modo como esses agentes económicos – um amola-tesouras é um agente económico – surgem inopinadamente no meio de um lugar. Nunca acreditei que eles viessem de um outro sítio, que percorressem um caminho para chegar ali e tomassem outro para se irem embora. A experiência é interessante pois está ligada à audição. De súbito, ouve-se a flauta de pã, a qual é tocada uma meia-dúzia de vezes, e depois, também subitamente, deixa-se de ouvir. Isto prova que os amolas-tesouras são seres fisicamente inexistentes, mas que se materializam e desmaterializam. Como prova adicional, para quem queira dizer que isto infringe a inferência da melhor justificação, que seria mais sensato crer que eles chegam e partem como qualquer mortal, posso aduzir com o problema da sua própria existência. Como podem existir amola-tesouras se não há quem tenha tesouras ou facas para amolar, ou mesmo chapéus de chuva para consertar? Se uma tesoura ou uma faca ficam rombas ou um chapéu de chuva se estraga, vai tudo para o lixo e compram-se novos instrumentos. Não é sensato crer na existência económica de amola-tesouras, logo, pois a economia é a condição de possibilidade da existência no mundo actual, não existem amola-tesouras, por muito que oiçamos flautas de pã a anunciá-los. 

sexta-feira, 17 de junho de 2022

Water-closet

Imagino que por falta de assunto ou por ser sexta-feira à tarde, hoje começo (ou quase) com uma citação, encontrada na internet (vazadouro onde se encontra de tudo) de Fialho de Almeida sobre o distinto grupo Os Vencidos da Vida: Dúzia e meia de ratões que, quando juntos, o que pretendem é jantar; depois de jantar, o que intentam é digerir; e digestão finda, se alguma coisa ao longe miram, tanto pode ser um ideal, como um water-closet. Concebo que naqueles dias a expressão water-closet ainda não se tinha resumido a WC, mas talvez esteja a tornar manifesta a minha ignorância. Haverá, por certo, quem aprecie a ironia na referência aos ratões ou às suas actividades pantagruélicas. Porém, o mais subversivo está nesse dilema posto naquilo que esses folgazões miram. Ou o ideal, ou o water-closet, isto quer dizer que, em boa verdade, o ideal está em concorrência com a casa de banho. A partir desta aproximação, deixo à venturosa imaginação do leitor o que pensar do idealismo. Não me comprometo. Seja como for, a agremiação recreativa Os Vencidos da Vida sempre me foi simpática. E é nestas coisas que nós, portugueses, nos mostramos como um povo vetusto e, por isso, sábio. Algum americano poderia reconhecer-se como um loser? A designação, porém, é demasiado ambígua. Aparentemente, é negativa. Aqueles intelectuais reconhecem-se como derrotados. No entanto, a expressão pode ser lida de outro modo. A vida é de tal modo exuberante que submerge as pretensões do intelecto. Uma leitura mais nietzschiana. Assim, não estariam a lamentar as derrotas pessoais, mas a celebrar a vitória da vida sobre as suas ilusões. O grupo gerou, no meio literário lisboeta, escárnio, maldizer e, principalmente, inveja, coisa de que a nossa velha sabedoria ainda não nos curou. Abel Botelho escreveu uma peça de teatro que tinha por título Os Vencidos da Vida. A polícia decidiu proibir a representação porque, segunda consta, continha um elevado grau de violência satírica pessoal. Não sei se a peça foi publicada. Não consegui encontrar-lhe rasto. Sei que tanto os vencidos da vida como os que, com mal disfarçada pena, não pertenciam ao grupo estão mortos, vencidos pela morte, mesmo aqueles cujo nome ainda se celebra. Uma coisa é a vida e outra o nome. Ou será que a vida de uma pessoa não passa do nome que ostenta? Ou, ainda, tanto uma coisa como a outra, no water-closet, têm por destino ir cano abaixo? 

quinta-feira, 16 de junho de 2022

Eros, esse deus caprichoso

Para um feriado, saí cedo de casa. Umas compras a fazer, coisa para despachar rapidamente, e poder dedicar-me a uma das minhas actividades preferidas, isto é, não fazer nada. Eram nove da manhã quando estou a passar por um sítio onde lavam carros. Espreito para ver se estava aberto. Estava, havia dois empregados e apenas dois carros para lavar. É hoje, pensei. E não vai demorar, disse para comigo. Entrei. Era o terceiro, coloquei o carro na fila e aguardei sentado num banco de madeira. A organização empresarial foi benévola para mim e ofereceu-me duas horas e meia para estar ali sem fazer nada, enquanto os funcionários aspiravam e lavavam as viaturas com ademanes de amantes apaixonados e carinhosos. Acariciavam e massajavam os carros, tudo sem pressa, pois o amor é coisa para saborear com lentidão. Por mim, e apesar de gostar de não fazer nada, preferia que a lavagem fosse menos erótica, mais veloz, que o amplexo entre os funcionários e as viaturas, caso fosse mesmo necessário, não ultrapassasse a amplitude de uma rapidinha, e não se tornasse aos olhos de todos uma ménage poliamorosa com requintes de filme erótico para ocupar três horas as salas de cinema. Perdida a manhã, decidi ir pôr gasolina. Aqui, além da manhã, perdi o dinheiro. Perdido por cem, perdido por mil, vou ver a pressão dos pneus. Indescritível. Estava miseravelmente baixa. De tal modo que num deles a máquina se recusou a trabalhar várias vezes. Prometi a mim mesmo que cada vez que for trocar euros por gasolina hei-de ver a pressão dos pneus. Entre mim e os carros não há qualquer mediação de Eros. O investimento do meu desejo não recai sobre eles. Por mais curvas ondulantes que tenham, não me acendem a libido. Portanto, carro meu tem todas as razões para me ser infiel. O tempo aqui continua tempestuoso. Chove e troveja. A tensão existente não é minha amiga. Rouba-me o prazer de não fazer nada. Vou ocupar-me de alguma coisa.

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Um imenso borbulhar

Um concerto de corta-relva. O solista esforça-se, mas a orquestra não o ajuda. Talvez o compositor não tenha tido em consideração a potência sonora do instrumento mecânico e a sua possível incompatibilidade com os diversos naipes instrumentais. Por isso, o cortador de relva parece perdido no próprio relvado que tem para cortar. Quando, por instantes, suspende a actividade, consegue-se ouvir os carros, o vento e até um coro de adolescentes. Talvez tudo isto não passe de um ensaio. Tenho particular pouca sorte. Este tipo de espectáculo acontece sempre que estou em casa. Também podia fechar as janelas, é verdade. Ia escrever que a mente humana é muito volúvel, mas corrijo. A minha mente é muito volúvel, a dos outros não faço ideia. Iria cometer uma generalização precipitada e, porventura, injusta. Mesmo agora a volubilidade da minha me deu uma prova irrefutável, mais uma. Não sei porquê, mas passou de um argumento sobre a existência de Deus da autoria de Anselmo de Cantuária para as 24 Horas de Le Mans, do ano de 1972. Por mais que procure em mim, não encontro razão para qualquer um destes pensamentos me ter vindo, nem um motivo para saltar de um para o outro. Não têm ligação entre si. Poderia explorar este estranho encontro para dizer que a mente é um lugar onde borbulham pensamentos sem que para esse borbulhar haja razões. Serão de geração espontânea. Eu sei que haverá logo quem afirme que pelo facto de eu não saber a razão desses pensamentos não significa que ela não exista. Concedo que poderá ser assim, mas, com a temperatura que está, hoje adopto a teoria da geração espontânea. A ideia de que o que acontece tem causa e que está determinado é uma ilusão fundada na necessidade humana de encontrar explicações para acalmar os medos que o incausado provoca. A realidade, tal como este texto, não passa de um imenso borbulhar sem causa nem sentido, o conjunto de irrupções súbitas sem que nada as provoque ou produza. Julgo que com este calor, nem o santo de Cantuária me vale. Cada vez tenho piores ideias, mas são as que me ocorrem, isto é, as que borbulham ao acaso na minha mente, se é que tenho uma.

terça-feira, 14 de junho de 2022

O princípio de farsa

Quando as coisas são vistas de fora, tudo o que parece decisivo mostra-se como risível, objecto possível de um sorriso malicioso ou de uma boa gargalhada, mesmo se ingénua. Se há coisa que acalora ainda hoje apoiantes e adversários – por motivos contrários, claro – é o 25 de Abril de 74. Sobre a data fazem-se juras de amor eterno ou proclama-se um rancor que nem no inferno será apaziguado. Contudo, a leitura da meia-dúzia de páginas que Alexander Kluge dedica ao acontecimento, no volume II da sua Crónica dos Sentimentos, acaba por tornar todo este excesso de sentimentalidade não apenas anacrónico como ridículo. Não terá sido por acaso que essas considerações são feitas no volume com o título A Queda para Fora da Realidade. Nisto não há uma crítica – favorável ou desfavorável – ao acontecimento português, mas ao entusiasmo que, na época, os jovens estudantes alemães – ainda grávidos das ideias de 68 – dedicaram ao assunto, onde viram a possibilidade de conjugar a revolução e o romantismo, antes de se fazerem à vida. Um desses jovens – a vítima do texto de Kluge – escreve: Durante muito tempo [Portugal] fica imune aos conflitos do resto do mundo. Explora os recursos das suas colónias com uma crueldade indolente, mediana. Contudo, é o próprio Kluge que afirma: Depois, a revolução de 1974 empurra Portugal para a realidade do século XX. A princípio com traços de conto de fadas: um Presidente de monóculo, claramente vindo de outro tempo, une o Norte e o Sul do país, sociedades inconciliáveis. Um conto de fadas com um Presidente de monóculo. Como, perante esta leitura cruel, os sentimentos ainda poderão encontrar combustível para se incendiar? Não se pense, porém, que o caso português é excepcional. Não, todos os grandes, e os pequenos, acontecimentos são habitados, de forma mais clara ou mais obscura, por um princípio de farsa. Por trágicos e grandiosos que eles sejam, contêm sempre uma farsa. Isto dever-se-á ao facto de todos nós, seres humanos, sermos, na realidade, uns farsantes. E é essa qualidade que transportamos para tudo o que fazemos. Um dos talentos de Kluge – que não será menos atreito à farsa – é, em poucas palavras, mostrar a farsa onde os outros vêem coisas que lhes incendeiam as paixões. E aqui temos uma revelação: o conúbio entre a paixão e a farsa. Sobre este casamento, todavia, resguardo a minha opinião. Por hoje.

segunda-feira, 13 de junho de 2022

Santo António

Está a ser um ano péssimo para as orquídeas aqui de casa. À exuberância de outros tempos sucedeu um desalento inexplicável. Uma parte não floresceu ainda – algumas prometem mesmo não dar flor – e as que floresceram fazem-no de um modo triste, melancólico, deixando as folhas murcharem rapidamente. O friso das orquídeas já teve melhores dias. Em Lisboa, é dia de feriado municipal, dia de Santo António. Ainda não compreendi a falta de previsão política dos sucessivos regimes que nos têm pastoreado. Perante a tensa disputa sobre se o santo é de Lisboa ou de Pádua, coisa que chega a envolver académicos, tê-lo como patrono de um feriado nacional seria um argumento convincente a favor da tese lisboeta. Promovê-lo a santo nacional para dar uma dura machadada nas pretensões dos paduanos e favorecer as dos lisboetas. Depois, todos os portugueses poderiam ir à praia ou a banhos noutros locais e não apenas os lisboninos. Onde me encontro, aa pequena cidade que me vê arrojar o peso da existência, estão previstos 40 graus lá para as três da tarde. Uma realidade excessiva para a minha capacidade de a suportar. Encerro-me dentro de casa, corro persianas e espero não ter de pôr um pé fora de casa, mas não sei se tenho sorte. Umas crianças em transição para o momentoso período da adolescência esganiçam-se na praceta. O sol não lhes afecta o corpo nem os neurónios. Talvez eu já tivesse sido assim, mas não juro. Movido a insónias progrido na leitura de A Consciência de Zeno, de Italo Svevo. Alguns aspectos mais risíveis da personagem Zeno lembraram-me uma outra personagem, Giovaninno, do romance À Descoberta de Milão, de Giovanni Guareschi, o autor dos épicos romances cujas personagens principais são o padre D. Camilo e o líder comunista Peppone. Fui verificar as datas de edição e o livro de Svevo – aliás, Aron Hector Schmitz – antecedeu o de Guareschi em 18 anos. Talvez este tenha sido influenciado, de algum modo, por aquele. Agora tenho mesmo de sair e encarar o dragão do calor. Uma aventura que enfrento, mesmo sem lanças nem flechas.

domingo, 12 de junho de 2022

Num limbo

Não tarda e terei de regressar a casa. Segundo sou informado, as temperaturas na pequena cidade onde levo a existência quotidiana terá chegado perto, demasiado perto, dos 40 graus. Nem sei bem o que dizer, pois só de pensar no caso sinto uma vertigem. Por aqui o tempo está espantoso, 21 graus, apesar de haver sol. O meu neto veio passar parte do dia comigo. Nos seus três anos e meio conseguiu arrastar-me à praia, um sítio que evito. Há qualquer coisa que os netos possuem que contamina os avós e os leva a fazerem coisas que, noutras circunstâncias, se recusariam a fazer. Depois, os netos vão-se embora e os avós ficam sozinhos, entregues a si num mundo que começa a não ser o deles. Nunca foi, claro, mas havia a ilusão de se pertencer a uma certa realidade, onde se reconheciam sem questionamento regras e hábitos. Agora, tudo começa a estranhar-se. Nessa estranheza emerge uma inquietação, e esta sublinha a distância, cada vez maior, entre o mundo a que se pertence e o mundo que existe. O mundo a que se pertence já não existe. O mundo que existe não tem lugar para nós. A partir de certa altura da vida entramos num limbo. Nem estamos no paraíso nem no inferno. Estamos em nenhures e quem vive em nenhures por certo não será coisa alguma. Há domingos que deveriam ser substituídos por outra coisa, talvez por um sábado. Seriam mais tranquilos, imagino.

sábado, 11 de junho de 2022

Do cultivo das aparências

Este sábado está a decorrer de modo anómalo. Comecei por fazer uma caminhada, a meio da manhã. Onde estou, a temperatura é muito moderada e o céu matinal estava coberto de nuvens. Os seis quilómetros de exercício renderam-me 72 pontos cardio. A OMS recomenda um mínimo de 150 por semana. Aceito a recomendação, embora não saiba muito bem para que serve. Quero parecer obediente. É um facto que apenas quero parecer e não ser, mas se todos cultivássemos as aparências o mundo seria um lugar muito melhor. Imagine-se um exemplo. Os dirigentes de um país estão cheios de vontade de invadir outro e destruí-lo. Contudo, prezam muito as aparências e evitam fazê-lo para não passar por belicistas e selvagens que, na verdade, são. Como se pode inferir, o cultivo das aparências é a salvação do mundo. Não há coisa pior do que essa ideia atoleimada de alguém querer mostrar o que é. Que guarde para si o que é e mostre aos outros um comportamento benévolo e afável. Estou a desviar-me do assunto. Estava a falar da anomalia do dia. Ora, para além dessa epopeia de caminhar seis quilómetros, tenho estado a descarregar uma série de romances, caídos no domínio público, de autores portugueses nascidos no século XIX e que escreveram nesse século ou no início do seguinte. Descobri uma coisa espantosa e anómala (daí a anomalia, que nada tem a ver com o conceito daquele autor que trouxe o conceito de paradigma para a ribalta, de tal modo que não há cão nem gato que não fale de paradigma). As universidades americanas e canadianas compravam a literatura portuguesa – e de muitos outros países, imagino – desse tempo para enriquecerem as suas bibliotecas. Não se pense que eram apenas os grandes nomes como Garrett, Herculano, Camilo, Júlio Dinis, Eça ou Antero. Por exemplo, Guilherme Centazzi, Manuel Pinheiro Chagas, Faustino da Fonseca, Arnaldo Gama, Joaquim Leitão e muitos outros. Fiz uma recolha interessante, num certo site americano, coisa de gente boa, interessada em partilhar o que está esquecido. Mesmo que quem o faça seja para manter as aparências, o benefício geral é imenso. Eu estou grato, a eles e às aparências.