segunda-feira, 1 de junho de 2020

A força do prefixo des-

O país desconfina-se, descontrai-se, ansioso por fugir à desconsolação dos últimos meses. Nunca é demais admirar a pujança do prefixo des-. As línguas parecem possuir arquitectos poderosos que em segredo lhes pensam as artimanhas e as tornam eficazes para dizermos aquilo que queremos que oiçam. Alguém pergunta-me que balanço faço disto tudo. Quando diz disto tudo faz um gesto englobante e eu percebo que os gestos também são significantes possuidores dos seus significados. Respondo que balanços não são o meu forte e a contabilidade é um assunto esotérico para o qual não estou iniciado. Respiro, o ar está quente. Estive junto ao mar durante o fim-de-semana, o ar era fresco e eu pensei que talvez o Éden fosse na Terra. Não fui à praia, lugar que dispenso, mas caminhei bastante, até sentir o caminho nos músculos das pernas. Também elas se vão desconfinando. Na praceta aqui em baixo oiço crianças, quase adolescentes. Nas vozes não se nota vestígio do que se tem passado. Um incómodo temporário na gestão dos rituais impostos pela idade. A temperatura ainda vai subir até aos 27 graus. O silêncio de há umas semanas foi substituído pelo rumorejo do trânsito. Ontem acabei de reler um romance em que a personagem principal enlouquece e o filho é assassinado. Há vidas assim, mesmo as romanescas, talhadas para desgraça, carcomidas lentamente pelo caruncho até que desabam com um fragor tal que o barulho se ouve mil léguas em redor. Tenho nas mãos um pequeno caderno cor-de-laranja. Nele está escrito: Cada ser humano tem por fundamento o Urmensch, cada um de nós representa uma limitação específica desse Urmensch. Não faço ideia o que teria bebido quando escrevi isso, e se não bebera nada o caso ainda é mais grave. O melhor é rasgar a folha e queimá-la. Hoje é segunda-feira, dia 1 de Junho. Continuo a vasculhar o caderno, encontro umas anotações ilegíveis sobre Os Sonâmbulos, de Hermann Broch. Também sou um sonâmbulo. Pobre Pasenow, penso eu para acabar esta conversa.

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