O país desconfina-se, descontrai-se, ansioso por fugir à
desconsolação dos últimos meses. Nunca é demais admirar a pujança do prefixo
des-. As línguas parecem possuir arquitectos poderosos que em segredo lhes
pensam as artimanhas e as tornam eficazes para dizermos aquilo que queremos que
oiçam. Alguém pergunta-me que balanço faço disto tudo. Quando diz disto tudo
faz um gesto englobante e eu percebo que os gestos também são significantes possuidores
dos seus significados. Respondo que balanços não são o meu forte e a
contabilidade é um assunto esotérico para o qual não estou iniciado. Respiro, o
ar está quente. Estive junto ao mar durante o fim-de-semana, o ar era fresco e
eu pensei que talvez o Éden fosse na Terra. Não fui à praia, lugar que dispenso,
mas caminhei bastante, até sentir o caminho nos músculos das pernas. Também elas
se vão desconfinando. Na praceta aqui em baixo oiço crianças, quase
adolescentes. Nas vozes não se nota vestígio do que se tem passado. Um incómodo
temporário na gestão dos rituais impostos pela idade. A temperatura ainda vai
subir até aos 27 graus. O silêncio de há umas semanas foi substituído pelo
rumorejo do trânsito. Ontem acabei de reler um romance em que a personagem
principal enlouquece e o filho é assassinado. Há vidas assim, mesmo as
romanescas, talhadas para desgraça, carcomidas lentamente pelo caruncho até que
desabam com um fragor tal que o barulho se ouve mil léguas em redor. Tenho nas
mãos um pequeno caderno cor-de-laranja. Nele está escrito: Cada ser humano tem
por fundamento o Urmensch, cada um de
nós representa uma limitação específica desse Urmensch. Não faço ideia o que teria bebido quando escrevi isso, e
se não bebera nada o caso ainda é mais grave. O melhor é rasgar a folha e
queimá-la. Hoje é segunda-feira, dia 1 de Junho. Continuo a vasculhar o
caderno, encontro umas anotações ilegíveis sobre Os Sonâmbulos, de Hermann Broch. Também sou um sonâmbulo. Pobre
Pasenow, penso eu para acabar esta conversa.
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