quinta-feira, 30 de julho de 2020

O dia da matrícula

Lembrei-me agora de que tenho um assunto a tratar numa dessas repartições públicas que, apesar de continuamente modernizadas, nunca deixam de parecer emanações neo-realistas vindas dos anos quarenta do século passado. A memória vive de súbitas eclosões, relâmpagos raramente antecedidos pelo trovão. Vive também de associações. Vejo-me há muitos anos a subir, levado pela minha mãe, uma rua inclinada que terminava lá no alto, numa praça, mesmo ao lado de uma igreja dedicada ao Salvador. Naquele dia, a ida ficou-se a meio caminho. Entrou-se pelo portão de ferro e o destino era uma dependência modesta de um palácio, então em decadência. Subimos os degraus. Lá dentro, dois sacerdotes da instrução pública registavam matrículas, distribuíam alunos por professores, tratavam do expediente. Era um dia quente de Julho, eles estavam de fato e gravata e usavam as negras mangas de alpaca como qualquer amanuense. Lembro-me, passados tantos anos, da poalha a girar nos ares iluminada pelos raios de sol que entravam pelo vidro encardido de uma janela. Tudo aquilo era tão soturno, que se fosse dado a sonhar, certamente aquelas imagens haveriam de vir misturadas em algum pesadelo. Os livros de registo eram, aos meus olhos, descomunais, pareciam ocupar todo o tampo das secretárias, e os missionários educativos preenchiam-nos vagarosamente, usando uma caneta de aparo que ia molhando num tinteiro de tinta azul aguada. Desenhavam a letra com a precisão que o hábito dá. O meu nome ficou lá inscrito, aguado de azul, na classe de um professor de fama tenebrosa, soube-o depois. Na parede, ladeando um crucifixo onde Cristo continuava pregado, duas fotografias assombravam aquela repartição já de si assombrada. Quando a minha mãe me tirou dali, pensei que me tinha libertado de qualquer coisa que, mais tarde, associei a um filme de terror, daqueles em que uma inquietante estranheza prenuncia uma desgraça. Não devemos dar trela à memória, pois ela não se cala e aquilo que esqueceu inventa-o para que a conversa não acabe. Parece ser hora de almoço. Ainda oiço o ranger do aparo sobre as folhas de papel almaço. Seriam?

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