Lembrei-me agora de que tenho um assunto a tratar numa dessas
repartições públicas que, apesar de continuamente modernizadas, nunca deixam de
parecer emanações neo-realistas vindas dos anos quarenta do século passado. A
memória vive de súbitas eclosões, relâmpagos raramente antecedidos pelo trovão.
Vive também de associações. Vejo-me há muitos anos a subir, levado pela minha
mãe, uma rua inclinada que terminava lá no alto, numa praça, mesmo ao lado de
uma igreja dedicada ao Salvador. Naquele dia, a ida ficou-se a meio caminho.
Entrou-se pelo portão de ferro e o destino era uma dependência modesta de um
palácio, então em decadência. Subimos os degraus. Lá dentro, dois
sacerdotes da instrução pública registavam matrículas, distribuíam alunos por
professores, tratavam do expediente. Era um dia quente de Julho, eles estavam
de fato e gravata e usavam as negras mangas de alpaca como qualquer amanuense. Lembro-me,
passados tantos anos, da poalha a girar nos ares iluminada pelos raios de sol
que entravam pelo vidro encardido de uma janela. Tudo aquilo era tão soturno,
que se fosse dado a sonhar, certamente aquelas imagens haveriam de vir misturadas
em algum pesadelo. Os livros de registo eram, aos meus olhos, descomunais,
pareciam ocupar todo o tampo das secretárias, e os missionários educativos
preenchiam-nos vagarosamente, usando uma caneta de aparo que ia molhando num
tinteiro de tinta azul aguada. Desenhavam a letra com a precisão que o hábito
dá. O meu nome ficou lá inscrito, aguado de azul, na classe de um professor de
fama tenebrosa, soube-o depois. Na parede, ladeando um crucifixo onde Cristo
continuava pregado, duas fotografias assombravam aquela repartição já de si
assombrada. Quando a minha mãe me tirou dali, pensei que me tinha libertado de qualquer
coisa que, mais tarde, associei a um filme de terror, daqueles em que uma
inquietante estranheza prenuncia uma desgraça. Não devemos dar trela à memória,
pois ela não se cala e aquilo que esqueceu inventa-o para que a conversa não
acabe. Parece ser hora de almoço. Ainda oiço o ranger do aparo sobre as folhas
de papel almaço. Seriam?
Sem comentários:
Enviar um comentário