Começa-se a ouvir o bater das botas cardadas no alcatrão. Os
exércitos de Julho batem já em retirada, derrotados pela implacável queda das folhas
do calendário. Muito ainda haverá a penar para que um cessar fogo de alguns
meses permita uma vida sem a ameaça contínua de se ser bombardeado pela aviação
do calor. A milícia estival estende quase sempre as suas operações muito para
aquém e para além daquilo que um tratado antigo, que dividia o território do
ano em estações iguais, lhe outorgou. Bebo água para me hidratar e observo o
vagar com que a minha mente orquestra a realidade. Oiço vozes lá fora, mas não
consigo compreender o que dizem. São apenas ondas sonoras que vão e vêm, murmúrios,
súbitas irrupções de notas agudas, e logo o som baixa e não é mais que um
restolhar de folhas secas num Outono adiantado. Há muito que me recomendo o
evitar de truques estilísticos, a pôr de lado metáforas e alegorias, alguma
metonímia perdida. Falta-me o talento. Descrever a realidade com exactidão é a
mais difícil das tarefas. Suspeito que a realidade não gosta que a descrevam e
depois lança feitiços sobre quem escreve para que se perca no desvio retórico,
imaginando que a metáfora nasce do brilho da escrita, quando não é mais do que
a manifestação da sua pobreza. Eu sei que não estou no melhor dos dias, mas
escusava de ter escolhido um assunto tão mórbido. Sempre podia falar do friso
das orquídeas, do que me disse a Marília ontem, quando se cruzou comigo à porta
de uma grande superfície e me reteve para confidências. Talvez ache que eu tenho
cara de sacerdote ou alma de psicanalista. Não tenho, a minha virtude que tanto
atrai a confissão é a indiferença. Quero eu lá saber da vida dos outros, se nem
da minha sei. Não tarda e ouvem-se os primeiros pelotões de Agosto. Pobre
Marília, também os calores a importunam.
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