sexta-feira, 31 de julho de 2020

Julho fina-se

Como o mês acaba hoje, acho que vou dedicar-me a uma sessão de auto-análise, para descobrir os avanços e os obstáculos que me tolhem no glorioso caminho em direcção à excelência. Quanto mais excelente me torno, mais próximo fico da morte. Começar assim não é recomendável. Quem há-de querer ler coisa mórbidas, pois para mórbida basta a vida. Sentados numa esplanada, um homem e uma mulher formam um casal perfeito. Ela não fala, ele não olha para ela, prefere um jornal desportivo, muito mais palpitante do que vinte anos de cansaços e amarguras. Ela elege como destino do olhar o horizonte. Ali, esconde-se tudo o que a vida prometeu. Afinal eram falsas promessas. Quanto a mim, tomo café com a lentidão de um veleiro num mar sem vento e escrevo estas coisas destituídas de sentido no bloco notas do telemóvel. A vida é sempre muito mais exígua do que o nosso desejo, o problema é que além do desejo também nos foi dada a ilusão. O homem põe o jornal de lado e preenche com demora um boletim do Euromilhões. Talvez esteja a consultar no inconsciente as informações que o guiarão à fortuna. A mulher revira os olhos, cansada de tanto horizonte e eu deixo-os em paz, afinal o motivo da minha existência, no dia de hoje, sou eu, agora que me imagino no divã a fazer associação livre, enquanto escrevo os meus feitos e defeitos naquele sítio onde me é permitido enfrentar a necessidade. Não devias falar por enigmas, diz-me a consciência. Sempre achei a consciência uma grande rameira. Vende-se-me com demasiada facilidade. Se fosse casado com ela passaria o dia a ler jornais desportivos. Julho está a finar-se.

2 comentários:

  1. E eu continuo a gostar tanto de o ler... falta-me é um narrador que transforme em palavras aquilo que sinto.

    Bom Agosto, HV.
    🌻
    Maria

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