Almocei tarde, pois passava do meio-dia quando fui levantar à FNAC dois livros que tinham sido encomendados para a minha neta mais velha. Aproveitei e comprei um livro de Louise Glück, a Nobel da Literatura de 2020. Leio o primeiro poema e discordo de imediato da tradução de um verso, não porque esteja mal traduzido, mas porque lhe rouba o pathos poético. A palavra inglesa pode ser traduzida por um verbo ou por um substantivo. O tradutor escolheu o substantivo, eu traduziria com o verbo. O substantivo, naquele verso, fixa a realidade, o verbo põe-na em movimento. A poesia despetrifica o real, mostrara-o no seu eterno fluir. Umas vezes fá-lo com um verbo, outras com um substantivo. Depois da discordância, fui à varanda fumar meio cigarro, enquanto bebia café. Na praceta, um casal apanhava sol sentado numas escadas que esboçam um anfiteatro que nunca virá à existência. O cabelo dela refulgia. A uns dez metros, dois homens conversavam sentados no murete de cimento de um dos canteiros. Do outro lado, uma rapariga, sentada numas escadas que levam a uma empresa de serviços, apanhava sol e escrevia num computador. Tudo isto acontecia sob o véu do ruído que se desprendia da praceta contígua, onde um homem com uma máquina de cortar ervas as ia decapitando em sossego. Olho, agora, para a Sá Carneiro e vejo outro homem debruçado sobre o capot de um carro. Rubrica folhas brancas, talvez uma escritura. Aposto que o faz no canto superior direito. O documento é enorme, pois ele está constantemente a voltar as folhas e a rubricá-las. Temo que se canse ou que passe alguma sem nela deixar o sinal da sua vigilante anuência. Por detrás dele passa uma criança de bicicleta, seguida por uma mulher. Será a avó, pensei. Há poucos carros em movimento e o dia tem um ar quaresmal. Da varanda vejo tudo o que há para ver no mundo, pois este não é mais do que aquilo que se avista de uma varanda, da minha varanda. Leio um novo poema, Primavera, e torno a discordar. A poetisa escreve the warm air fills with bird calls. O tradutor verte por o ar morno enche-se do chilrear dos pássaros. Agora, a minha discordância tem sinal contrário. Onde é usado o verbo, chilrear, eu usaria o substantivo, chamamentos, o ar morno enche-se com os chamamentos dos pássaros. Não, os pássaros meus vizinhos não chilreiam. Eles fazem chamamentos, convocações. Por vezes, intimações. É esse poder de convocação existente na linguagem dos pássaros que Louise Glück dá a ver. Digo eu, que talvez não veja muito bem.
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