O mais espantoso deste mundo é ser composto por vários mundos que se cruzam formando um tecido policromático. Tive de ir a uma outra cidade fazer uma tomografia axial computadorizada. Para chegar ao destino utilizei os serviços de GPS do telemóvel. Talvez por se estar na Quaresma ordenaram-me para ir em jejum, um daqueles jejuns que se faziam noutras épocas. Depois de formalidades sanitárias – apontaram-me para a testa um revólver que mede temperaturas e passei as mãos por álcool gel – e burocráticas, depois de alguma espera em que fui lendo, no meu eReader, um romance, lá vou para uma sala cuja porta tem o sinal de perigo de radioactividade. Sem contador Geiger, enfrento a ameaça. Deito-me numa marquesa e obedeço a duas estimáveis raparigas, que, apanhando-me deitado, ligam-me a uns eléctrodos e picam-me os dedos e as veias de um braço. É para introduzir o contraste, dizem. Lá me deixo contrastar. Olho a máquina cilíndrica e penso que vou ser criopreservado, mas é falso. Vão apenas bombardear-me com radiação atómica. Devia ter trazido o contador Geiger, é o que penso enquanto entro e saio do túnel. Está acabado, dizem. Pergunto-me se o acabado sou eu ou o exame. Desligam-me. Pode ir embora, dizem sorridentes, pois imagino-lhes o sorriso sob a máscara. Agradeço. Depois de todo este tempo no mais admirável dos mundos novos, vou para o carro e desembrulho uma sandes trazida de casa, certo que não haveria aonde comer e beber café, como se fizesse um daqueles piqueniques de que falava o Cesário Verde. Pena que não houvesse qualquer burguesa a descer do burrico, que sem posturas tolas colhesse um ramalhete rubro de papoulas. Os tempos cruzam-se, é verdade, mas perde-se sempre qualquer coisa pelo caminho. Neste caso, a aguarela.
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