terça-feira, 16 de março de 2021

O grito do Ipiranga

Oiço o sexto livro de Madrigais de Carlo Gesualdo, Príncipe de Venosa. Melhor, os madrigais do sexto livro. O compositor destas extraordinárias obras era, literalmente, um assassino. A distância entre o sublime e o macabro é muito mais curta do que pensamos. Nem se pode dizer que tenha sido movido pela paixão amorosa, mas apenas pela fria fogueira da honra. Pode ser que, penso-o caridosamente, naqueles dias, a honra ainda aquecesse os corações. Consta que toda a vida de D. Carlo esteve em conflito com a sua música, mas isso será um modo superficial de ver o assunto. A sua música sublime terá nascido como apaziguamento da desarmonia que o habitava. O dia, como o de ontem, tem estado estival. Uma luz exuberante, agora a declinar. Devia ir caminhar, desentorpecer as pernas, respirar o ar puro dos campos, caso ainda exista ar puro nos campos. O que desejava, na verdade, era andar perto do mar, agora que não há turistas, nem veraneantes, apenas as pessoas de ocasião. A realidade, sempre pronta para me contrariar, não me o permite, e eu aceito as coisas como elas são, com resignação, sem tentações de dar o grito do Ipiranga. Nada, porém, me ajuda nessa libertação. Não sou um D. Pedro e o rio que passa aqui não se chama Ipiranga, fosse eu outro e o rio, o certo, haveria de se ouvir a mil quilómetros o urro que daria. Assim, limito-me ao grito mudo do quadro do Munch. O expressionismo ficar-me-á melhor que o romantismo independentista e liberal do D. Pedro. A conversa hoje está muito voltada para príncipes e reis, e eu que sou republicano. Talvez seja um republicano não praticante.

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