Pela primeira vez desde que começou o confinamento fui comprar laranjas ao campo. Um comércio arcaico e contemporâneo. Arcaico porque se funda numa relação directa entre produtor e consumidor, sem esse gigantesco exercício a que se dá o nome de intermediação. Contemporâneo porque é feito ao ar livre, o que conjugado com o uso de máscaras, estará de acordo com as normas de segurança contra os vírus perigosos que a contemporaneidade trouxe. Nunca deixa de me maravilhar o facto de num mesmo instante se poder existir em várias épocas. Talvez cada um de nós viva constantemente em diversas eras, apesar de não ter consciência disso. Talvez sejamos construídos por fatias de tempo, que se vão mesclando dando a ilusão de serem um único e mesmo tempo. Depois de comprar laranjas, fui ver o meu neto. Brincámos um pouco, mas as distâncias ainda são grandes. Quase metade da vida dele foi passada em pandemia. Agora, deixo cair a noite sobre os ombros e escuto os rumores da cidade e a música de Morton Feldman. As peças para piano são construídas por hiatos ostensivamente perspícuos entre as notas, então estas parecem emergir do nada e afundar-se nesse mesmo nada de uma forma tão nítida que torna patente o quão finita é a realidade. Como é hábito, falo do que não sei, mas se as pessoas falassem apenas do que sabem, a espécie humana seria muda.
Também comi uma bela laranja, curiosamente comprada no talho...as coisas mudaram tanto que agora muitos talhos também vendem legumes e fruta. Mas laranjinha comprada no campo soa-me bem, oxalá a qualidade corresponda:)
ResponderEliminar~CC~
Laranjas no talho, levantar livros na lavandaria, ir aos correios numa espécie de livraria-papelaria, um admirável mundo novo. As laranjas são sempre asseguradas, é um microclima muito especial e, diga-se, muito micro.
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