sábado, 27 de março de 2021

À superfície

Ontem fiz uma boa caminhada. É um sintoma, pensei, de que vou retomar a prática. Agendei de imediato na memória repeti-la hoje. Não me esqueci do agendamento mnemónico, mas o projecto gorou-se. Deixei passar a hora certa, pois todas as coisas têm a sua hora, e agora, nesta altura do ano, é demasiado tarde, pois o ar fica frio, há um vento desagradável de Noroeste, que se entranha e acaba por fazer a garganta ressentir-se. Fui à farmácia comprar um sucedâneo da vesícula, uns comprimidos que imitam aquilo que ela era devia fazer, mas por se ter perdido numa sala de operações, não pode fazer. Imagino que apenas dará conta das actividades mais superficiais, mas essas bastam-me. Aliás, o melhor é uma pessoa deixar-se de profundidades, quanto mais à superfície, melhor. Quando se é novo e pretensioso, julgamos que só as coisas profundas interessam. Com o passar dos anos, vai-se mudando de ponto de vista. O mais interessante está à superfície. Não há como uma bela aparência. Quanto ao que ela esconde, o mais sensato é não querer saber. Há ainda uma luz crepuscular. Amanhã a hora mudará. Dizemos estas coisas, como se existissem horas para mudar. A vida não passa de um conjunto de ficções de que nos convencemos que são a realidade.

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