quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Devaneio matinal

As noites são caminhos abertos na planície que nos levam para a terra da transparência. Assim comecei a história, mas logo veio a manhã e tantos imperativos trazia consigo que esqueci o que a noite me tinha ditado. Não é a natureza que é uma floresta de símbolos, ponderei, mas o fluxo que o sono coa para dentro da consciência. Árvores, ruas, um pregão ouvido há cinquenta anos, a mão que brilhou diante dos olhos e incendiou o desejo de não mais a largar. Depois, deixamos as palavras enraizarem, cuidamos delas, trazemos-lhe água e elas florescem, para nos acariciarem, enquanto afundamos a cabeça na almofada e esperamos que o mundo acabe ou um rio de pétalas desagúe por detrás dos canaviais onde se esconde a infância. Ao menos tiveste uma infância, pensei, enquanto lavava os dentes e espreitava não sem horror o rosto que despudorado o espelho me devolvia.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Aguaceiro

De súbito, um aguaceiro cobre os vidros do carro, desfoca a paisagem, torna imprecisos os contornos de quem passa. Logo o limpa-pára-brisas, a ruminar vaivéns, devolve ordem ao mundo e figura aos peões. Que monotonia de ritmo, pensei, enquanto olhava um renque de velhas moradias, daquelas que, com o passar das estações, já mal suportam o peso da sombra. Mura-as paliçadas de tijolo e cal e por detrás destas avistam-se laranjeiras e limoeiros, exuberantes na cor dos frutos, que se escapam dos promontórios verdes das ramadas. Esta terra não deveria ter nome, murmurei. Não havia ninguém para me escutar e eu ri-me, a pensar no amargo das laranjas e no brilho baço dos limões. Os dias já estão mais longos e a hora melancólica do crepúsculo chega cada vez mais tarde. Se soubesse o que fazer de mim, tudo seria mais fácil. Assim, perco-me em taxionomias insignificantes e contabilidades sem deve nem haver.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Desconsolo

Depois de almoço tive de ir ao banco, no centro histórico da cidade. Sejamos piedosos e não poupemos a hipérbole. Ao entrar, lembrei-me do tempo em que não havia ali pessoa que não conhecesse. Agora, constatei, não sem incredulidade, que nenhum daqueles rostos me dizia alguma coisa. Tentava situá-los aqui ou ali, mas só o silêncio respondia à minha interrogação. A cidade é exígua, o tempo, porém, não vacila e arrasta na voragem tudo o que foi comum. Saí desconsolado pelo peso da ignorância. Uma ameaça surda pairava sobre a minha inquietação. Janeiro é um mês cruel e estende as suas garras até aos confins da memória. Quando esta sangra, então ele afrouxa os tentáculos e deixa-nos à porta de um jardim onde ninguém nos espera. Olho as ruas, as pessoas que vão e vêm, os escombros da velha vila a céu aberto. A vida, pensei, é uma árvore calcinada pelas tentações de Inverno. Que catarse poderá pacificar as almas?, perguntei, ao avistar os ciprestes do cemitério. O carro trouxe-me rapidamente para casa.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Infrutuosidade

Um alarme dispara não sei bem onde. O som progride como um insulto a quem escolheu o silêncio para esquecer a alegria do sol ou algum dever que a vida, esse naufrágio entre dois esquecimentos, sempre traz no aconchego da sua farta algibeira. Duas pessoas vão pelo passeio e o seu andar lembra-me uma redondilha, e logo começo a escandir-lhes os passos, a espreitar-lhe a prosódia, certo que também o mover dos corpos na rua obedece ao segredo de uma poética, que apenas a distracção nos faz ignorar. O melhor seria pensar noutra coisa, reflicto, ser útil e dar à indiferença estes pensamentos que são como flores feias e estéreis. O que vale é que o alarme se calou, e o dia mutilado refaz a mão decepada e com ela acaricia a infrutuosidade de tudo o que penso.

domingo, 20 de janeiro de 2019

A porta do meio-dia

O vento ondula o arvoredo como se este fosse uma seara arcaica trazida dos confins da terra. E eu aguardo o deslizar do dia, a espuma das horas que se derrete ao sol, o rigor do esquecimento que a tudo há-de trazer paz e purificação. Uma nuvem passa diante do sol e a luz entenebrece um pouco, mas logo o vento leva a intrometida e deixa que os raios caiam como punhais sobre os transeuntes. Estes vão em pequenos bandos, lembrando famílias a caminho da igreja num domingo de há cinquenta anos. Com o florete das palavras desenho na areia os frutos que me cabem, enquanto imagino o canto das cigarras ou o sabor do vinho novo. Afasto-me das minhas paixões e cruzo o adro da manhã para entrar, inútil e cego, pela porta do meio-dia.

sábado, 19 de janeiro de 2019

Anacrónico

Os pássaros que ainda há pouco tempo cantavam perto da minha janela emudeceram. Eram pássaros tardios, sei-o bem, e há muito que deveriam ter partido. O tempo fê-los perder a memória e confundiram a púrpura dos dias com o fulgor do Verão. Também eu confundo os tempos e caminho pelo Inverno como se ainda fosse Outono. Pensava em tudo isto, enquanto contemplava a mansidão da luz batida pelas águas frias de Janeiro. Alturas há em que me assalta uma estranha convicção: este não é o meu tempo. Sou, atavicamente, anacrónico. Rio-me e pergunto se há outra coisa que possa fazer senão rir-me de mim mesmo. Num poema de Eugénio Andrade encontro a afirmação o teu destino és tu. Não, o meu destino não sou eu. Sou como os pássaros que emudeceram na minha janela ou como a chuva que se calou tomada pelo peso da tarde. Se estivéssemos em Outubro tudo seria perfeito, pensei, enquanto o meu destino galopa, incendiado e pueril, diante de mim.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Desculpa

Esta chuva impaciente e frágil veio mesmo a calhar. Que boa desculpa encontrei para não ir dar a minha caminhada profiláctica. Assim, fico por aqui a ruminar sobre o desvario do mundo, a meditar na água que cai e na bem-aventurança que ela é para a agricultura. Há quem tenha alma de caminhante, mas esse, por um qualquer motivo que desconheço, não é o meu caso. Prendo-me então ao flanco do silêncio e enquanto leio aguardo o crepúsculo que me há-de anunciar o aconchego furtivo da noite.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Notícia

Vai-se pela rua ou entra-se numa rede social e é-se colhido por uma notícia para a qual nunca há uma cesta preparada para a depositar. A terrível ceifeira, a desmemoriada que nunca esquece a vil ocupação, deslocou-se, fremente e impúdica, e cortou cerce onde não se esperava que cortasse. Faz-se, assim, em nós um grande silêncio. Contam-se os dias, os anos, os caminhos partilhados e as esperanças havidas e, por ordem inevitável do mundo, perdidas. Então uma espada de pez cai sobre o dia e tudo ensombrece, como se um exílio nos esperasse ou uma gaivota perdida apagasse o sol.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Rememorações

Por vezes, sou dado a rememorações, talvez com a esperança da ressurreição de alguma coisa perdida ou de alguém que a morte, lúbrica e pegajosa, raptou para não mais libertar. É um sinal inequívoco de que os anos, muitos, passaram por mim e o passado pesa mais que o futuro. A culpa destes pensamentos, pensei-o agora, é do dia. A cinza rumorosa da tarde, a espuma do frio a entranhar-se nos ossos, os ramos despidos das árvores no limiar do esquecimento, tudo isso conspira para que a memória cresça e se transforme numa hipérbole que me esmaga, enquanto oiço o vozear de quem vai rua fora, envolto numa capa de segredos que lhe dilaceram o coração. Hoje é quarta-feira e a minha indústria é escassa para domar a melancolia furtiva, essa sombra vacilante suspensa nas nuvens.

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Amor

Está um dia esquivo e a cidade respira rente à melancolia. O rio, a ciciar pela chuva que há-de vir, desliza oscilante e de água escassa, sem um barco que lhe abra as entranhas e lhe inscreva, momentânea, uma esteira que lembre o ondulado tecido pelo passar dos grandes navios. Tudo nesta cidade é minguado, menos o desvario com que a percorro para não me perder na aspereza das ruas ou na solidão que sobre ela desce em borbotões da serra. São assim as cidades de província e por isso são amadas. Também eu a amo pela sua escassez e pelo jardim que agora cruzo e cai sobre os meus ombros como um grande capote que protege o meu ser provinciano do grande rugido cosmopolita.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

O tempo foge

Estava há pouco a ver os livros de um dos leilões que se estão a tornar moda na internet, quando me deparei com uma obra em dois volumes, de um autor russo cujo nome não é apenas impronunciável como inescrevível. A prosa foi publicada pelas Edições Avante e tem o nome Para a Crítica da Ideologia Burguesa. Ao vê-la, sorri. É perante coisas como esta que uma pessoa tem a certeza que as pretensões humanas são limitadas, mesmo que o desejo seja infinito. Apesar da crítica, e enquanto os críticos se afundavam no lodaçal do não ser, a ideologia burguesa lá se foi aguentando, mesmo que haja quem lhe rosne, lhe faça figas e a encha de manguitos, e de negros e irreversíveis prognósticos. Não pense o leitor que eu tenha alegria – ou tristeza, diga-se – nesta vitória da afrontada ideologia sobre a crítica e os críticos. Todas estas coisas passam, como passam as borbulhas na adolescência, que tanto desespero provocam e logo se vão. Também um dia a malfadada ideologia morrerá, velha e abandonada, sem o conforto dos sacramentos, sem um crítico que lhe faça o velório ou a acompanhe à última morada. E era aqui, para acabar com brio, que deveria pôr uma citação de Virgílio sobre o tempo e a sua fugacidade, mas também em mim o desejo é maior que as possibilidades. Vou dar uma volta, ver as vistas e apanhar sol.

domingo, 13 de janeiro de 2019

Paganismos de província


Contrariamente ao que é costume, hoje, domingo, tive de ir fazer compras, coisa que me deixa num humor variável, umas vezes mau e outras indiferente. E enquanto passeava pelos corredores de uma grande superfície, visitando os múltiplos altares e parando em várias capelas, todos eles, altares e capelas, dedicados a um santo necessário ao bem-estar, pensava que antigamente os domingos estavam despojados destes cultos pagãos. A missa do meio-dia em S. Pedro, depois almoço em família, e, se fosse o caso, uma ida ver o futebol ao Almonda Parque, mais conhecido pelo quintal do Zé Maria. O mundo era mais simples e eu mais ingénuo, mas talvez não tão idiota. Não havia grandes superfícies e mesmo que a ida à missa se tivesse transformado, como era recorrente na época, numa oportunidade para ver as raparigas, e nisso estava toda a devoção pagã do rapazio, a verdade é que o objectivo desse pobre paganismo provinciano era mais interessante do que observar coisas tão cosmopolitas como as líchias vindas da China ou as papaias provenientes do Brasil.

sábado, 12 de janeiro de 2019

Sábados


Os sábados contêm uma promessa que descubro sempre ser falsa. Se os olho a partir dos dias da semana, eles parecem-me uma luz bruxuleante ao fundo do túnel. E nesse luzir mortiço esconde-se, confesso, a esperança da eternidade e a crença no paraíso. Sim, os sábados são pressentidos como se não pertencessem ao tempo, com o seu passar rápido e inelutável, mas à dimensão da intemporalidade. Depois, o sábado chega e mal dou por isso já o sol se entrega nas mãos do crepúsculo, a temporalidade ri-se alacre das minhas tristes divagações e o ritmo das coisas humanas, demasiado humanas, cobra o seu soldo e traz a canga que me submete ao duro jugo da realidade. É o que faz cultivar ilusões em vez de aprender a jardinar e a podar roseiras.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Sanidade


Quando caminho à noite, tenho o costume de dar várias voltas a uma certa praça. É um exercício ritual que tem por fim não pagar por algum pecado mas poupar-me a ter de pensar por onde hei-de ir. Actualmente, devido ao frio, dou os meus passeios à tarde e abstenho-me de andar às voltas no mesmo lugar. Há coisas que se fazem à noite e que de dia são impossíveis. Há que preservar a imagem, mesmo que fantasiosa, de que se possui uma certa sanidade mental.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Hóspedes

Há dias comprei um livro, num leilão na internet, de Heinrich Böll. Trata-se de uma obra publicada entre nós em 1972, pela velha Arcádia. Tem capa dura e papel de boa gramagem. É composto por um conjunto de contos e de um deles recebeu o título Os Hóspedes Inesperados. Foi um sentimento de irmandade que me levou a adquiri-lo. Também eu, onde quer que vá, sou um hóspede inesperado. O sítio não me espera e a minha presença é constrangedora. Isto pensava eu quando atravessava a cidade para ir para um lugar onde todos me esperavam, sem que a minha presença deixasse de ser constrangedora. O que me vale, meditei, é o sol de Inverno. Brilha, aquece um pouco, mas evita excessos, comportando-se com prudência e sabedoria.

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Sabedoria


Estes dias ensolarados e frios morrem sob um véu de tristeza e melancolia, pensei ao olhar pela janela. O fulgor do sol começa definhar, a toldar-se indeciso, e onde antes havia vibração insinua-se uma pequena névoa. Logo se transforma em escura nuvem de pesar, que cobrirá as pessoas que passam indiferentes e que, revestidas pela saúde do seu espírito, sabem que os dias não morrem, nem são tristes e melancólicos, mas apenas dias que hão-de dar lugar à noite, separados por crepúsculos. E eu, não sem ponta de inveja, olho-as e maravilho-me com essa sabedoria e paz de espírito que nela se oculta.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Más leituras


Como Rosseau também eu tenho os meus devaneios de caminhante solitário. Poderia meditar sobre o lixo que encontro, as pessoas que passam por mim, a azáfama dos escapes a libertarem o ar puro que hei-de respirar. Poderia, mas não foi o que fiz hoje. Isso deveu-se à impertinência de uma frase de Jean-Jacques lida pouco antes de me dispor a sair para a rua: “Quando o meu destino voltou a lançar-me na torrente do mundo, já aí não encontrei nada que pudesse, por um momento que fosse, atrair o meu coração.” Era essa incapacidade do mundo em atrair-me o coração que ocupava os meus pensamentos, enquanto as pernas se deslocavam, mecânicas, para destino nenhum. O pior é que o mundo que ia vendo, em vez de me tranquilizar com um desmentido, apenas confirmava aquilo que tinha lido. Talvez não deva ler antes de ir caminhar.

domingo, 6 de janeiro de 2019

Bolo-rainha em dia de Reis


Hoje é dia de Reis. As pessoas aproveitam o sol, dão passeios vagarosos pelas ruas, cumprimentam-se como se não se vissem há muito, vão aos cafés e compram bolo-rei ou bolo-rainha, este uma introdução recente, talvez em nome da igualdade de género. Foi tudo isso que vi, quando, também eu, fiz o mesmo e, por opção cá de casa, deixei-me embalar por essa desejada igualdade. Quando saía da pastelaria com a caixa do bolo nas mãos e os olhos a piscar por causa do sol, meditei que estava deslocado. Hoje é dia de Reis e não de Rainhas. É assim que se pervertem as tradições, constatei ancorado num conservadorismo trazido pela idade. Levados pelo prazer estético, esse exercício de individualistas dados ao hedonismo, trocamos as frutas cristalizadas pelos frutos secos, como se fosse um upgrade do software que nos há-de levar ao paraíso gustativo. Que Baltasar, Belchior e Gaspar nos perdoem por os termos trocado pela rainha de copas.

sábado, 5 de janeiro de 2019

Caminhadas


Há muito que não fazia uma caminhada. Hoje, porém, enfrentei estradas e caminhos. A verdade é que o fiz não por amor ao dever de andar (que Kant me perdoe) ou às paisagens que atravesso. Quando combinei a revelação que esta manhã a balança me fez com o resultado, recebido ontem, de umas análises de rotina, aliás com quase todos os valores no lugar certo, percebi que talvez o médico não estivesse destituído de alguma razão ao receitar-me exercício físico. E foi assim que me expus ao sol entristecido da tarde e me aventurei por caminhos a que os escapes dos automóveis e camiões dão o seu inigualável perfume. Fi-lo como quem toma um comprimido ou bebe umas gotas cujo amargor nunca a água dilui ou dissipa. Quando cheguei a casa, prometi que amanhã voltaria e que ainda me haveria de tornar um desportista a sério, daqueles que treinam todos os dias, embora nunca joguem ao domingo.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Utilidades


A semana passou depressa, pensei ao chegar a casa. O pior é a contradição entre o corpo e a realidade. Esta exige-me um respeito temeroso pelo calendário, pela separação árdua e fria dos dias úteis dos outros, enquanto aquele se rebela contra este jogo de distinções e anseia pela hora em que todos os dias se possam tornar frutuosos, libertos da inutilidade dos dias úteis.