Por vezes, sou dado a rememorações, talvez com a esperança
da ressurreição de alguma coisa perdida ou de alguém que a morte, lúbrica e
pegajosa, raptou para não mais libertar. É um sinal inequívoco de que os anos,
muitos, passaram por mim e o passado pesa mais que o futuro. A culpa destes
pensamentos, pensei-o agora, é do dia. A cinza rumorosa da tarde, a espuma do
frio a entranhar-se nos ossos, os ramos despidos das árvores no limiar do
esquecimento, tudo isso conspira para que a memória cresça e se transforme numa
hipérbole que me esmaga, enquanto oiço o vozear de quem vai rua fora, envolto numa
capa de segredos que lhe dilaceram o coração. Hoje é quarta-feira e a minha
indústria é escassa para domar a melancolia furtiva, essa sombra vacilante suspensa
nas nuvens.