quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Devaneio matinal

As noites são caminhos abertos na planície que nos levam para a terra da transparência. Assim comecei a história, mas logo veio a manhã e tantos imperativos trazia consigo que esqueci o que a noite me tinha ditado. Não é a natureza que é uma floresta de símbolos, ponderei, mas o fluxo que o sono coa para dentro da consciência. Árvores, ruas, um pregão ouvido há cinquenta anos, a mão que brilhou diante dos olhos e incendiou o desejo de não mais a largar. Depois, deixamos as palavras enraizarem, cuidamos delas, trazemos-lhe água e elas florescem, para nos acariciarem, enquanto afundamos a cabeça na almofada e esperamos que o mundo acabe ou um rio de pétalas desagúe por detrás dos canaviais onde se esconde a infância. Ao menos tiveste uma infância, pensei, enquanto lavava os dentes e espreitava não sem horror o rosto que despudorado o espelho me devolvia.