Há quem escreva longos poemas para desaparecer dentro deles, como se fossem um véu que a tudo ocultasse, o esconderijo seguro contra os bombardeiros inimigos que, a toda a hora, sobrevoam a cidade e deixam cair, sobre as cabeças incautas, bombas ovaladas. Estas explodem com o barulho de um cataclismo, ensurdecendo a população, dando vida à palavra catástrofe, fazendo florir em bocas desdentadas vocábulos como desgraça, desdita, desastre. Ainda é cedo para que alguém diga tragédia, pensa o poeta que, com a sua inclinação lírica, não tem um estro trágico. As deflagrações ouvem-se a grande distância, mas, ao longe, ninguém vê a fragmentação das casas, o estilhaçar dos vidros, a queda das paredes, os corpos despedaçados, as loiças escaqueiradas ou o poeta a tecer o poema, onde se esconde, traçando um labirinto, para que nele o inimigo, a que Ariadne nenhuma concederá o fio da vida, se perca e, com o passar dos dias, morra de fome, deixando um cadáver cada vez mais ressequido, que alguém milénios depois encontrará. Não me perguntem porque escrevi isto, pois não faço ideia. Uma razão plausível diz-me que não me tendo ocorrido mais nada aproveitei estas palavras que me foram saindo dos dedos, entraram pelas teclas e desabrocharam no monitor. A maior parte das coisas que acontecem acontecem assim, sem que os seus autores façam qualquer ideia da razão. Outra hipótese, a que não faltará verosimilhança, é que tudo se deva aos astros, a uma conjugação enviesada entre o Sol e a Lua, talvez a um amuo de Júpiter, ao rancor de Marte ou ao desejo de Vénus. Ó Afrodite Citereia! Esta exclamação pontuada é uma saudação, um tributo, quase uma oração. Não me peçam explicações. Hoje é sábado, dia 30 de Maio. O mês colocou o pescoço na guilhotina, espera apenas que o carrasco acerte as contas do serviço, coisa a que a arte de regatear trará a sua demora. São soturnas as metáforas que me ocorrem neste início de tarde.
sábado, 30 de maio de 2020
sexta-feira, 29 de maio de 2020
Ir ao campo
O que me vale é que não tarda e estou a caminho de casa. O
texto começa mal. Não devia ter vindo ao campo. Cansa-me tanto bucolismo
mecânico. Motores por todo o lado, numa imitação infernal da música minimal
repetitiva, composta por alguém à beira da loucura. Fala-se do campo e as
pessoas imaginam cenas idílicas com pastoras e pastores, longos interlúdios
musicais e fogosos amplexos amorosos, ao som do chocalhar dos rebanhos e do
canto dos pássaros, como se aquilo fosse o jardim do Éden, cujas portas
tivessem sido reabertas. Não foram. Na cidade, ao menos respiramos um ar
poluído autêntico e sujeitamo-nos ao ruído, pois nunca nos foi prometido outra
coisa, a não ser o desatino desenfreado, o vício sem controlo, a maldição
eterna. Falo assim, como se vivesse numa grande metrópole, mas a minha cidade é
uma aldeia pequena, num recanto da província, onde passa um rio afável, em
cujas margens pescadores apanham peixes que logo devolvem ao fio de água que
serpenteia entre o casario. O campo não faz bem à escrita, puxa-me para o lugar
comum, aviva o provincianismo que me habita. Apiedo-me de mim. O fim-de-semana
caiu-me em cima e ainda não sei bem o que fazer com ele. Dos escritores
neo-realistas, há um de que gosto bastante, talvez o único. Carlos de Oliveira.
Pensava que tinha toda a sua obra e hoje descobri, já nem sei bem porquê, que
me falta o segundo romance, Alcateia.
Não sei se ele o renegou, pois os escritores têm destas coisas. Fazem filhos e
depois recusam-se a reconhecê-los. Talvez me ponha em campo e descubra a matilha
de lobos. Existirão outros encontros bem mais perigosos, podem crer. Hoje é
sexta-feira, dia 29 de Maio. Não faço ideia para que serve contar os dias, como
se existissem dias, semanas, meses, anos. Uma voz vinda dentro de mim diz-me
não sejas idiota, se não fossem contados, não existiriam. Continua a contar, ou
queres acabar com o tempo. Não percebi a agressividade da voz, mas obedeço.
quinta-feira, 28 de maio de 2020
Liquidem os objectos
Os objectos tornaram-se exercícios difíceis. Portas, maçanetas, chaves, corrimãos, botões do elevador, terminais de multibanco, puxadores, superfícies lisas e rugosas, garrafas de vinho e de azeite, pacotes de arroz ou de massa e todo o resto do mundo dos objectos desde que venham do desconhecido ou do conhecido exterior à caverna que habitamos. Há que ter cuidado, não tocar, desinfectar, colocar ao sol, à sombra, à chuva, dar-lhe o ar do meio-dia ou da meia-noite, pô-los em repouso, em quarentena, oferecer-lhes uma quaresma, para ressuscitarem no seu domingo de páscoa. Haveremos de enlouquecer com esta xenofobia sanitária, nesta nova selva com aparência civilizada, onde os tigres, leões e leopardos foram substituídos por um frasco de compota, uma embalagem de bolachas ou a garrafa de água que se compra na estação de serviço. Confesso que não sei o que me deu hoje para este tipo de peroração, mas ainda há dois meses e meio pegava nos objectos sem pensar e agora é o que é. Tudo se pode dividir entre o puro e o contaminado, como se as coisas tivessem uma natureza moral, dotadas de sexualidade e que devessem entregar-se na noite de núpcias em estado virginal, puras, intocadas, plenas de inocência. Talvez o melhor seja acabar com os objectos. Quando a temperatura sobe por estes lados, não afianço a qualidade do meu estado mental. O termostato que mede a febre da casa começa a aproximar-se de uma zona perigosa. Tremo só de pensar o que poderá esconder. Hoje é quinta-feira, dia 28 de Maio. Terei de fazer duas visitas, uma ao meu neto, a outra à sua bisavó. Devia poder juntá-los, mas ainda não vai ser hoje. Bebo água por uma garrafa-termo, o que me vale é que a tinha comprado no ano passado, naquele tempo em que se dispensava certificação moral às meras coisas.
quarta-feira, 27 de maio de 2020
Trocas neuronais
A primeira palavra que escrevi continha um erro ortográfico, fruto de uma associação que poupo aos leitores. Fiquei a olhar para o teclado e para dentro de mim, perguntando-me que estranhas conexões se passaram na mente para que os dedos, sem quererem saber da ordem que lhes dera, conquistassem autonomia para se submeterem a um outro senhor, cujos impulsos sendo meus me escapam. Sim, a psicanálise também vive disso, embora o caso seja já mais do foro do neurologista. O telhado esbranquiçado, talvez um cinza muito claro, do pavilhão desportivo da escola vizinha reverbera batido pela impiedade dos raios solares. Oiço uma máquina em manobras, talvez numas obras por perto, mas não a avisto. O dia desliza quente e sorrateiro. Na rua estão 34 graus e nem as sombras me convidam para sair de casa, embora o arvoredo da Sá Carneiro esteja exuberante. Por vezes os erros preocupam-me, não pela ortografia, mas por aquilo que eles revelam do estado do meu aparelho neuronal, caso possua um, coisa por provar. Os livros das estantes que me rodeiam têm o condão de me irritar. Não por eles, mas pelas ilusões que me levaram a comprá-los. Talvez exista em mim um pendor masoquista, pois os livros com os quais estou reconciliado estão longe da vista. À minha volta só fantasias e quimeras. Isso, porém, não interessa a ninguém e, além do mais, pode nem corresponder à verdade. Hoje é quarta-feira, dia 27 de Maio. As acácias já esconderam debaixo das folhas os ramos que o Inverno despira. Há árvores que não cultivam o pudor, a primeira das virtudes públicas que qualquer um deve ostentar para não cansar os outros. Os pássaros não se calam, numa cegarrega interminável. Podiam ir cantar para outra rua, mas essa já deve ter os seu tenores.
terça-feira, 26 de maio de 2020
A data em que a vida muda
Nunca sabemos a data em que uma vida muda, foi o que pensei
ao consultar o calendário. Nicolau II, da Rússia, foi coroado a 26 de Maio de
1896, não sabia ele que isso lhe iria marcar a fortuna e que o levaria a uma
morte infeliz e prematura, porque alguém, talvez sem saber o que fazer dele, se
lembrou de a antecipar. Vejo-o a ser coroado, rodeado pela corte, num quadro de
Serov e quase sinto vontade de lhe gritar para fugir dali, que renuncie à coroa
e vá dar uma volta pelo mundo com a Feodorovna. Calo-me, pois ele não me
ouviria. Somos sempre surdos para as palavras do destino, as potestades mais do
que os outros mortais. A cidade vai retomando os seus ruídos e rumores, o
gorgolejar da vida, o trânsito que se adensa, as gentes que se tomam de calores
e, mesmo de máscara cingida, se despem para o Verão antecipado. Chegou-me um
vídeo do meu neto. Sobe para uma cadeira, dali trepa para a cadeira de
refeição, senta-se no tabuleiro e pega num livro. Abre-o e faz um discurso,
como se lesse na mais estranha das línguas. Isto gerou um conflito de
interpretações acerca da performance
da criança. A avó ficou encantada com a teatralidade da leitura e o avô com a
destreza da subida. Homens e mulheres vêem o mundo de lugares diferentes, disse
eu, mas não estou certo se, ao escrevê-lo, não estarei a ofender algum
imperativo igualitário. Nestes dias, contentamo-nos com poucas coisas. Ontem
anotei que tinha de encolher estes textos. Até a mim me cansam. Hoje é
terça-feira, dia 26 de Maio. Outro mês que declina e com ele também a Primavera
começa a preparar as malas para um novo exílio. Os anjos insistem em
disfarçar-se de pássaros. Eu finjo que me iludem, mas sei muito bem que não são pássaros.
segunda-feira, 25 de maio de 2020
Paisagens despovoadas
Uma algazarra lá em baixo, mas as vozes calaram-se de
imediato e tudo voltou ao silêncio que tem, não sem insídia, marcados os
últimos tempos. Continuamos cercados por estatísticas e profecias, numa
loquacidade que ainda não esmoreceu, numa facúndia que não sofre desânimo. Cada
espécie grasna à sua maneira e a nossa não é excepção. A escola aqui ao lado
deve ter alunos, mas ainda não os avistei. Ter-se-ão contraído até se tornarem
uma sombra que evita chocar contra outra, não vá acontecer uma faísca e logo um
incêndio. A janela aberta deixou-me ouvir alguém espirrar num apartamento
contíguo. Hoje já videoconferenciei por duas vezes, o que me ocupou a manhã. Medito
sobre estes textos e pergunto-me se não me tornei num insuportável misantropo.
Não tenho heróis nem vilões, não descubro personagens a quem dar vida, como se
estivesse apenas interessado em paisagens das quais, para sua salvação, vou
eliminando a humanidade. Imagino-me a escrever romances apenas compostos por
paisagens, sem presenças humanas mas com acção. Árvores e animais tomam a
palavra, arquitectam traições e assassínios. Os elementos animam-se e dotados
de alma falam. A água e o fogo disputam entre si, a terra e o vento proclamam, uma,
a excelência da imobilidade, e, o outro, a primazia da inconstância. Outras
vezes são os móveis que tomam a palavra. As cadeiras discordam, as mesas
marcham em protesto e até um aparador julga ter direito a exprimir uma opinião
que ninguém lhe pedira. À minha frente tenho a terceira edição de um dos mais
extraordinários romances escrito em língua portuguesa, Finisterra – paisagem e povoamento, de Carlos de Oliveira.
Comprei-o em Lisboa no dia 9 de Outubro de 1979. Nesses dias ainda assinava os
livros que comprava e registava o dia da aquisição. Depois o amor à propriedade
e ao calendário feneceu. Leio: Ao fim da
tarde, um último raio de sol embate no nódulo da vidraça, pulveriza-se em
coágulos brancos, dispersa-se pelos cantos do quarto. E em tudo isto há tal
perfeição que acho uma bênção não ter personagens nos meus textos. Hoje é
segunda-feira, dia 25 de Maio. A rede mosquiteira que me protege da invasão dos
insectos está caída, será sensato ir compô-la, antes que um exército de melgas
encontre por aqui o seu campo de combate. Talvez amanhã descubra alguma
personagem para me alegrar a narrativa. Tenho de cortar no tamanho dos textos,
anoto.
domingo, 24 de maio de 2020
Aloquetes e cadeados
Leio mais devagar. Pareço arrastar a leitura não por
desinteresse mas por um qualquer motivo que desconheço. É possível que os olhos
se cansem, é possível que as coisas habituais estejam a perder sentido, é
possível qualquer outra razão que desconheço ou que quero desconhecer. É o que
acontece com a minha leitura de O Jardim
dos Finzi-Contini. Há pouco uma palavra surpreendeu-me. O narrador, para
que a bicicleta não fosse roubada, deveria colocar nas rodas um aloquete. Fui
ver quem tinha traduzido o livro. O poeta Egito Gonçalves, um homem que nasceu
em Matosinhos e morreu no Porto. Percebi de imediato a opção por aquela
tradução e não pela sulista e latina cadeado. A primeira vez que ouvi a palavra
foi no dia em que me apresentei num quartel da cidade do Porto para cumprir
serviço militar. Sempre achei a palavra inusitada, apesar da sua origem inglesa
e francesa. O dia encandeceu. O calor espalhou-se pelas ruas e anuncia os dias
tórridos que hão-de vir. No final da manhã, desci o viaduto de carro e passei
pela velha ponte medieval que permitia chegar ao centro da antiga vila. Em tudo
havia um ar dominical, até o sol vestia um fato domingueiro, como antigamente
as pessoas o faziam para ir à missa. Depois tornou-se de mau tom, ao domingo,
andar vestido de domingo, uma coisa de provincianos retardados e, como todos
nós provincianos retardados sabemos, ninguém quer passar por provinciano
retardado. Estou a repetir-me demasiado. No friso que lhes cabem as orquídeas
estão praticamente todas floridas. Apenas uma ainda retém as flores em botão,
como se persistisse em defender um segredo que não quer partilhar com ninguém. Hoje
é domingo, dia 24 de Maio. Tivesse eu poderes para tal e fechava todo este
tempo numa despensa escura e esconsa e depois trancava a porta com um aloquete,
atirando a chave para o oceano. Haveria então de me sentar na borda do poço que
havia na entrada da infância e comer nêsperas, caso as houvesse, ou magnórios
se estivesse no norte.
sábado, 23 de maio de 2020
Luz e trevas
Nada o homem receia mais do que ser tocado pelo
desconhecido. É com esta frase que começa o longo ensaio Massa e Poder, de Elias Canetti. Este pavor é o horizonte onde se
desenrolam as vidas humanas. A maior parte do tempo nem damos pela a existência
dele, mas se algo desconhecido nos toca, ele lança as garras de fora e o homem
treme e teme. Talvez tenhamos aceitado sem grandes problemas este tempo de
confinamento devido ao pânico que o desconhecido desencadeia nos nossos
organismos. Depois, como em tudo, cansamo-nos e, intrépidos, enfrentamos o
desconhecido, ou imaginamo-lo conhecido e o medo de por ele ser tocado vai-se
desvanecendo, não porque se é corajoso mas porque o hábito venceu o estado de
vigilância. Aos sábados dever-se-iam evitar estas meditações, não porque traiam
melancolia mas por serem sérias. O dia está quente, mas temperado pelo vento
que faz balançar os ramos das oliveiras e refresca a atmosfera. No friso das
orquídeas, a branca ainda tem flores, mas a folhagem está a amarelecer devido
ao esforço contínuo em florir. Fora ela mulher e seria mãe de vinte filhos. É
um enigma ela estar neste estado há bem mais de um ano e continuar a rebentar.
Imagino que também ela terá medo do desconhecido e por isso se protege na
caverna da floração. Se não estivesse mole, com os neurónios lânguidos, devido
ao calor, esforçar-me-ia por encontrar uma metáfora mais reluzente. Tenho
estado a ouvir Palestrina. Este tem uma peça denominada Missa do Homem Armado. Isso lembrou-me um outro músico italiano,
quarenta anos mais novo, Don Carlo Gesualdo, Príncipe de Venosa, que assassinou
a mulher, Maria d’Avalos, e fez assassinar o amante desta, Fabrizio Carafa,
Duque de Andria, ao apanhá-los em flagrante. Um crime de honra que animou os
finais do XVI. A primeira vez que ouvi a sua música, interpretada pelo The Hilliard
Ensemble, pensei que só um anjo luminoso a poderia ter composto. Muitas são as
trevas que se escondem na luz. Hoje é sábado, dia 23 de Maio. A tarde começa a
perder o fulgor e, não tarda, dobrará o joelho para que o inexorável carrasco a
decapite e a entregue ao reino das coisas que passaram. Também Maria d’Avalos
teria a sua luz e não terá tido tempo para perder o fulgor. Não devia ter
casado com o primo.
sexta-feira, 22 de maio de 2020
Do tédio e das papoilas
Chegou o fim-de-semana, mas agora tudo parece contaminado. A
semana entra pelo seu fim como se este fosse dado à utilidade. Aqui deveria
acrescentar e vice-versa, mas talvez não seja verdade que também o
fim-de-semana contamina os dias de labor. Num livro de um filósofo americano
leio que o tédio é um assunto sério e ele acrescenta pressuroso que a essência
do tédio reside em não termos interesse no que se passa. Tudo isto é dito
candidamente num ensaio sobre o amor. Uns sofrem de spleen, outros são atacados pela náusea e outros não se interessam
pelo que se passa. Não vou pensar sobre este assunto, mas talvez coleccione as
palavras para criar uma taxinomia de estados existenciais e poder usá-los
sempre que tenha oportunidade. Comecei a falar de contaminação, mas logo me
perdi por outros caminhos, como se a realidade se estivesse sempre a bifurcar-se
diante de mim, para que eu me perca nela e não encontre o caminho para casa.
Voltando ao magno problema da contaminação, também a noite contamina o dia com
as suas asas de seda negra e assim a luz vai tornando-se crepuscular, cheia de
tremores e hesitações, fazendo crescer as sombras até que tudo se apague e se
envolva no pez que uma existência entediada faz cair sobre o mundo. Há pouco vi
gente a entrar para o bar do outro lado da rua. Pergunto-me se já se poderá ir
beber uma cerveja, embora eu não goste particularmente dessa bebida de
bárbaros. Como é habitual, não me ocorre nada para dizer. Hoje é sexta-feira,
dia 22 de Maio. Ontem foi feriado, mas esqueci-me de o proclamar. Muitos são os
concelhos que fazem da Quinta-Feira de Ascensão o seu feriado. Imagino que vejo
papoilas na escola ao lado, mas por certo não se tornarão no supremo encanto da
merenda, pois as burguesas já não fazem piqueniques, nem tomam parte em
histórias que mesmo sem grandeza dariam ainda uma aguarela.
quinta-feira, 21 de maio de 2020
Dia da espiga
Sem ser convidada, uma varejeira entrou pela janela. Zumbe e
rodopia até que encontra a saída, devolvendo ao lugar onde me encontro o
silêncio. Afundo-me nessa ausência de som, mas interrompo-a com o barulho dos
dedos a bater nas teclas. O melhor é fechar a janela, pensei. Há que evitar que
insectos não desejados entrem por ela. Passei o dia a fazer uma daquelas coisas
que o dever – ou a necessidade de pagar as contas – me impõe, mas que há-de
servir para pouco, caso sirva para alguma coisa. As minhas netas acabaram de
sair da escola, quero dizer que abandonaram o lugar em frente ao computador e
retomaram o ritmo incerto da adolescência. Se tudo o que se tem passado fosse
um intervalo, uma espécie de interlúdio dramático, talvez ainda fizesse
sentido, mas se é uma nova realidade, então há que fazer longos exercícios de
paciência. À minha frente ergue-se uma acácia, mais ao longe um bosque de
pinheiros mansos. Uma ilusão de óptica cria um espaço contínuo entre ambos,
apenas diferenciado pelos díspares matizes de verde. Os pardais ameaçam entrar
pela casa, mas no último instante arrependem-se e, numa curva apertada,
afastam-se. O terraço está cheio de folhas mortas. Cada uma é um pensamento que
a acácia pensou e logo esqueceu. Também eu vivo rodeado de folhas mortas, os
pensamentos que fugiram de mim, que foram mais rápidos que o meu desejo de os
segurar. Não tarda e virão os dias de calor e as pessoas hão-de vestir roupas
estivais e costureiros haverá que desenharão máscaras para cada estação. Nas passerelles, mesmo nos desfiles de
roupas interiores ou de praia, os modelos terão uma máscara atarraxada ao
rosto. Fui mordido num dedo. Uma baba cresce irritante, tenho de procurar a
pomada ou esquecer-me da mordedura. Não haverá maior virtude que a do
esquecimento. Hoje é quinta-feira, dia 21 de Maio. Não haverá festejos da Ascensão
e eu não irei pelos campos apanhar a espiga. Nunca fui, mas talvez esteja a
mentir. O alarme da casa disparou. O seu zumbido é pior que o da varejeira, mas
alguém o acalmou.
quarta-feira, 20 de maio de 2020
Rememorações em dia de calor
Uma estranha conjugação de luz, vento e arvoredo levou-me para um mundo que desapareceu há muito. Olho-o estupefacto, é apenas um universo fantasmático, povoado de sombras e murmúrios. Não são as árvores, nem a água, nem o vento, nem as casas, nem as pessoas, nem sequer eu, mas os espectros de tudo o que ficou lá atrás, sepultado como ficam todas as coisas que recebem da mão do tempo a pérfida estocada. Quase não me reconheci, mas ao ver uma figura mergulhar num grande tanque de rega, sob a copa das ameixoeiras, recordei-me que seria eu. Em tardes infindáveis de Verão, matei o calor naquela água e sentei-me no largo muro do tanque enquanto ouvia o ramalhar das árvores, o canto dos pássaros e olhava com atenção o jogo de luz e sombra que o ondular dos ramos projectava na superfície do mundo. Quem vivia nessa casa morreu há muito. O telemóvel insiste em cortar-me a rememoração e enviar-me para o território da realidade. Resisto, porém, e penso, para me iludir, que ainda estão longe os pavorosos dias de Verão. Leio que não nos devemos deixar enganar pela retórica dos maus argumentos e concluo que só devemos deixar-nos lograr pela retórica dos bons argumentos. Depois penso que cada um se deixa burlar por aquilo que tem à mão. Iludir-se com bons argumentos pode ter um preço demasiado alto a pagar para alcançar uma coisa que não necessita de qualquer esforço. Imagens do passado batem à porta, atiram pedras à janela, insistem em assombrar-me. Conversas entre adultos, um cão ou um gato com que brinquei, as figuras que desfilam agora na minha memória e que foram apagadas deste mundo. Alguém que tinha um dente de ouro, o maço de notas tirado da algibeira pelo homem do peixe, as tulhas de grão e feijão de alguma mercearia, cuja dona vestia uma bata negra acetinada, as bombas de extracção de azeite e petróleo. Depois chega a procissão com os andores, as raparigas vestidas de branco com tabuleiros à cabeça e a pomba do Espírito Santo. No largo em frente à igreja, do outro lado da estrada, ainda vejo o placard que anunciava um jogo de futebol jogado há quase sessenta anos. Hoje é quarta-feira, dia 20 de Maio. Um pássaro, talvez um deus disfarçado, diz-me que não devo rememorar os mundos que ficaram submersos. Digo-lhe que tem razão, mas que não sou dono da minha memória, nem da minha vontade, nem de mim. Mais uma razão para não fazeres o que não deves fazer, responde-me ele.
terça-feira, 19 de maio de 2020
Perdido no mundo
Sorrateiro, o Verão instala-se. Chega de garras afiadas, estiletes e punhais de luz sobre a pele, até que o ânimo sangre e uma preguiça se instale, convidando os corpos ao relaxe e as almas ao pecado. Nesta trama romanesca, em que as personagens se dividem em corpo e alma, o corpo é inocente, mas a alma é culposa, duma culpabilidade insinuante, plena de manhas, truques e armadilhas. É ela que obriga o corpo a arrastar-se no lamaçal do erro, ele que por si mesmo não seria mais do que uma abóbora à espera que o tempo passasse. Esta deriva pela teologia talvez se deva a ter estado todo o dia ocupado com dados, gráficos, leituras e relatórios. Ou então será da música que estou a ouvir e que de súbito me raptou da rasura habitual e me pôs em contacto com os excruciantes problemas da relação entre corpos e almas. Raramente sabemos o que causa os nossos pensamentos. Esta frase demonstra que sou uma pessoa cautelosa. Fosse eu intrépido e diria que nunca sabemos o que causa os nossos pensamentos. Hoje todavia não quero ofender aquelas pessoas que sabem sempre quais as causas das coisas, a começar pelos seus pensamentos. Eu nasci para a ignorância, para o erro e para a perda. Ainda ontem decidi andar mundo fora, pés na terra, a respirar os ares do campo e perdi-me. O mundo campestre é sempre igual e trocou-me as voltas. Já estava a ver que não encontrava a estrada que me haveria de levar à casa da partida. O que vale é o telemóvel, que recebeu a indicação do sítio que me esperava e lá fui eu guiado por uma voz que entoava daqui a 200 metros cortar à esquerda. E eu, fiel como um cão, cortava à esquerda e à direita, se recebesse ordem para tal. Aquilo que poderia ter sido uma aventura digna de D. Quixote foi decepcionante. Estava perdido mesmo junto ao sítio onde devia chegar. Nem moinhos havia para desafiar. Hoje é terça-feira, dia 19 de Maio. Oiço uma sirene, talvez também ela ande perdida. Esperam-me longa horas de trabalho, mas o corpo, levada pela obscura potência da alma, apenas lhe apetece dormir. Não há corveia maior do que ter um corpo que se deixa enrodilhar pelas tramóias da alma. Ou será o contrário?
segunda-feira, 18 de maio de 2020
Por que não te calas?
Oiço o
ladrar de um cão. Haveria de ser o ladrar de um gato ou de uma galinha, pergunta-me
a minha consciência. Olho-a com desdém e não respondo. O animal insiste em
fender o silêncio, em abrir-lhe um buraco por onde a sua inquietação se escoe e
ele possa com alívio deitar-se ao sol em prolongado descanso. Um dia haveremos
de compreender a língua dos animais, o dialecto de cada espécie, o significado
preciso de cada modulação sonora, o sentido que nasce do ritmo com que entoam o
que querem comunicar. Mais tarde, talvez muito mais tarde, aprenderemos a
interpretar o silêncio das árvores, dos arbustos, de todas as espécies que
fazem parte do reino vegetal. Uns comunicam connosco pelo som, outros pelo
silêncio, mas ainda somos demasiado infantis para afinar os nossos sentidos
pelos das outras espécies. Não sei o que me deu para entoar um louvor à
harmonia universal. Também eu tenho necessidade de belas ilusões. Se não me dão
a verdade, pelo menos ajudam à boa disposição. Sigo um conselho de Winston Churchill:
Seja optimista. Não serve de muito ser
outra coisa qualquer. Hoje por hoje entrego-me ao optimismo, não porque
haja razões a seu favor, mas porque se é pessimista relativamente às
alternativas. Em resumo, o verdadeiro optimista é aquele que é pessimista
perante o pessimismo. Continua a ser notória a minha falta de assunto. Poderia
seguir a injunção que há uns anos um certo rei dirigiu a um protótipo de
tiranete. Por que não te calas? Esta é uma belíssima pergunta, para a qual não
encontro resposta. Talvez siga o ensinamento do antigo primeiro-ministro inglês
e diga: Falo. Não serve de muito estar
calado. Comecei a semana útil com estas inutilidades, mas é com elas que
preencho a vida. Hoje é segunda-feira, dia 18 de Maio. Ao longe avisto um
bosque de pinheiros mansos. Sobre ele esvoaçam anjos magníficos, de asas
luminosas e espadas de diamante. A minha consciência salta de imediato para
diante de mim e diz-me que eu não me chamo João, nem estou na ilha de Patmos,
nem me alimento de gafanhotos. Fiquei sem palavras.
domingo, 17 de maio de 2020
Querido diário
Quando me dispus a escrever este texto fui assaltado pela
ideia de que todos eles constituem um diário. Daí a imaginação cabriolou e após
um salto mortal disse-me, com aquele sorriso cândido que todas as imaginações
possuem, que lhe poderia chamar querido diário, como no filme do Moretti. Para
dizer a verdade e assim demonstrar a autenticidade com que narro, nestes textos,
as mais excruciantes aventuras de um narrador desavindo com o autor, confesso
que grafei Nannetti, numa feliz fusão de Nanni e de Moretti. Isto não é um bom
sintoma, mas há que ter paciência e aceitar a realidade como ela é. Uma coisa
que me encanita – meu Deus, não poderia evitar estas derivas de gosto popular e
escrever simplesmente irrita? – nos italianos é a duplicação de certas
consoantes. Ainda não descobri o segredo porque umas vezes elas aparecem em
pares e outras singulares. Terei de dar mais atenção aos nomes italianos, anoto
na agenda onde escrevo todas aquelas coisas que quero fazer mas que, por certo,
nunca farei. O vento agita os ramos da acácia, os pássaros cantam e oiço vozes
ao longe, um murmúrio, como se escandissem orações, numa devoção em que as
imagino de terço na mão. Percebo depois que veneram outra coisa e que se a têm,
a piedade está disfarçada e oculta por afeições que me recuso a partilhar.
Quando era adolescente, ainda não muito entrado nesse momento tenebroso da vida
humana, a esta hora já teria saído da Missa e estaria a caminho de casa. O
almoço naqueles dias era um pouco mais tarde, mas não tão tarde como vai ser o
deste dia, em que uma mosca entrou pela janela aberta e se prepara para me
encanitar. Hoje é domingo, dia 17 de Maio. A Direcção Geral de Saúde continua a
emitir o boletim epidemiológico, a política volta lentamente, enquanto abro a
boca e bocejo, não por causa da epidemia nem da política, mas porque a preguiça
me tenta, ao estender-me as suas garras de algodão para que embalado na maciez lhe
entregue corpo e alma. Vade retro.
sábado, 16 de maio de 2020
Da poligamia semântica
A buganvília púrpura exubera, mas a amarela parece
moribunda, encostada a um pilar, incapaz de afastar o abraço sesgo com que a
morte a está a enrolar, fazendo-lhe cair as flores, colorindo de castanho a folhagem,
retirando o ânimo que lhe deu vida. Hoje caminhei pelos campos. Havia piteiras,
algumas com figos arroxeados, alcachofras selvagens e pinheiros mansos a
bordejar as estradas de terra batida, ainda com poças de água, pequenos lagos
onde não há navegante que se aventure. As vinhas e os pomares de citrinos,
animados por um espírito geométrico, prestavam culto ao velho Euclides,
enquanto eu respirava um ar que já quase não sabia existir. Oiço a voz das minhas
netas, combinam uma daquelas coisas que só as raparigas sabem o que é, enquanto
o dia declina, com o Sol a esconder-se atrás de nuvens escuras. Há bocado
trovejou, mas não choveu e os trovões envergonhados retiraram-se para longe. Na
acácia que avisto, pousou um pássaro que não consigo identificar. Leio num
livro sobre a arte de argumentar a injunção de que se use para cada termo um único
sentido. O autor é adepto da monogamia semântica. Fico encantado com tamanha
sabedoria, mas as línguas têm uma terrível inclinação para a poligamia e, por
má fé e desobediência aos sábios conselhos dos filósofos, entregam-se à esquiva
falácia da equivocidade e dotam os termos com mil sentidos, arquitectam
armadilhas chamadas metáforas, metonímias, oximoros, paradoxos, hipálages e
todo um poderoso arsenal com que bombardeiam os quartéis onde se acolitam os
defensores da boa moral semântica. Desavergonhadas as línguas ainda têm a
pretensão de que só assim se pode falar da realidade. O que tem tudo isto a ver
com as buganvílias ou a combinações secretas das minhas netas? Nada, mas é o
que acontece sempre que os homens abrem a boca e se põem a falar ou mexem os
dedos para digitar o que lhes passa pela cabeça, se a têm. Hoje é sábado, dia
16 de Maio. Os dias continuam a crescer. Ao longe vejo uma palmeira que escapou
à hecatombe que dizimou a espécie. Uma nuvem negra atravessa o meu campo de
visão. Anuncia a noite empurrada por um vento melancólico. Pudera eu ser adepto
da monogamia semântica e tudo seria mais fácil. Um banco seria um banco e nada
mais que um banco, mas não falemos de coisas equívocas.
sexta-feira, 15 de maio de 2020
Aventuras no novo reino dos bonifácios
Um pastel de feijão. Estou
falar a sério, até um bolo trivial se tornou acontecimento digno de
registo, pelo menos do meu. A necessidade de fazer uma escritura levou-me a
Santarém, mesmo ao lado da Bijou, uma
das célebres pastelarias da cidade. Acabado o acto burocrático, não resisti e,
ao fim de mais de dois meses, comi um bolo de pastelaria, não dentro dela mas
sentado no velho largo do seminário, como se fora um hippie fora de tempo e de lugar. Fazer uma escritura também não
deixa de ser um assunto interessante. Parece uma reunião de um bando já com as
máscaras postas pronto para o assalto. Aquilo que é um encontro entre pessoas
de bem, mediado pelo representante da autoridade civil, que exercem a sua
vontade em comprar e vender tornou-se uma estranha mancomunação para onde se
vai disfarçado, temeroso, e de olhar desconfiado. O que um vírus faz às
relações sociais. Prevejo já uma avalanche de doutoramentos em Sociologia do
COVID-19, a que se hão-de juntar outros na Economia, na Psicologia e até na
Antropologia. Outro ritual novo e inusitado, também um óptimo campo de trabalho
para sociólogos e antropólogos, é a paragem numa estação de serviço de uma
auto-estrada para ir a uma casa de banho. Há agora todo um conjunto de licenças
a obter para se alcançar uma chave extraída de um sítio onde estava em
desinfecção, que logo se tem de devolver para ser de novo desinfectada. Não só
o mundo se tornou um lugar perigoso como um sítio onde haveremos todos de
enlouquecer, para gáudio dos psiquiatras e psicanalistas, que também não
estarão melhores do que os pacientes, mas têm mais experiência na arte do
disfarce. O que valeu fui o pastel de feijão, mesmo comido na rua, mesmo
transportando-me para o hippie que
nunca fui. Hoje é sexta-feira, dia 15 de Maio. Onde me encontro neste momento
há sol e ouvem-se pássaros, mas como tudo na vida também isso é passageiro. A
próxima vez hei-de comer uma bola de Berlim, mesmo que isso desencadeie uma
guerra com a balança ou me obrigue a uma declaração em favor do flower power. Até trautearei If you're going
to San Francisco / Be sure to wear some flowers in your hair.
quinta-feira, 14 de maio de 2020
Bátegas de água e dicionários
Olho pela janela como se estivesse confinado. Um forte
aguaceiro rompe o sossego com que o dia desliza para o fim. Uma bátega de água.
Assaltou-me a curiosidade e fui tentar saber de onde vinha a palavra. Ela tem
dois sentidos. Quando significa bacia, terá vindo do árabe bâtiya, mas se significa chuvada a origem obscurece-se. O
dicionário da Porto Editora alvitra que pode ter vindo de bater. O Houaiss,
apesar de sublinhar a origem controversa do vocábulo, adianta que é uma
derivação por analogia. Imagino que seja a confissão de um acordo com o que diz
o da Porto Editora, mas não afianço. Quando apareceu em Portugal, comprei o
dicionário Houaiss. Seis volumes em papel com uma letra tão pequena que só de
olhar para ela uma pessoa começa a fantasiar dores de cabeça. Há muito que não
lhe toco. Comprei uma versão digital e é essa que utilizo. Evita-me dores de
cabeça e o trabalho incerto de encontrar a palavra no seu lugar alfabético.
Basta digitá-la e, como num filme de fantasia, ela aparece, com a informação, a
idade e até a origem, mesmo se obscura. É um dicionário perfeito para quem se
interesse por coisas inúteis. Qual o primeiro registo escrito conhecido de uma
palavra? Ele informa. Bátega, 1525. Já bateria terá sido em 1546 e batente em
1456. Como se vê, este conjunto de inutilidades é de uma enorme importância num
tempo em que as pessoas estão obrigadas ao jogo do confina e do desconfina,
rodeadas de bátegas de água. O pior, e isso ocorre muita vezes, o dicionário
recusa dar informação. Guarda-a para ele. É inútil discutir. Parou de chover.
Em Portugal, segundo o Houaiss, chove por escrito desde 1262. No meu telemóvel
pipocam mensagens. Sim, eu posso dar a informação. Pipoca, primeiro registo em
1781. Hoje é quinta-feira, dia 14 de Maio. O mês aproxima-se do meio, mas não
entendo sequer o que quero dizer com isso. Desconfio que existe na sociedade
uma ofensiva contra o calendário. Algum grupo radical está apostado em
devolver-nos à pura duração, a esse momento paradisíaco em que ainda não tínhamos
esquartejado o tempo para o contar. Talvez amanhã consiga escrever um texto
menos idiota. Há que não desesperar.
quarta-feira, 13 de maio de 2020
O mundo das árvores
Há uma passagem do romance do italiano Giorgio Bassani, O Jardim dos Finzi-Contini, em que Micol
se diverte à custa da suposta ignorância do narrador perante o mundo das
árvores. Ela parece raptada pela nobreza desses seres mudos, ele diverte-se
ostentando um não saber contumaz. Também eu sofro dessa ignorância e isso não é
uma suposição. Não é que não goste de árvores. Gosto muito, mas falha-me a
denominação, melhor falta-me saber adequar os nomes às espécies, pois a botânica
é das coisas mais rasteiras que há em mim, que não sou desprovido de
incontáveis saberes rasos. Há nomes magníficos nesse reino misterioso. Cedros,
faias, olmos, lódãos, ulmeiros, bétulas, plátanos, salgueiros, todas estas
árvores têm nomes que pedem que os escrevamos, tão magníficos eles são. Fantasio
a possibilidade de criar toda uma literatura com esses nomes, explorar as
características de cada árvore, dando-lhe uma alma racional e desejos
humanos, criando-lhe genealogias, dotando-a de tradições e de traições. Isso
porém seria fazê-la cair, expulsá-la do Éden onde habita e misturá-la ao
mundo sombrio dos homens. Abstenho-me de pensar em tal coisa e dirijo-me à
janela. Imagino-me que sou eu que passo na avenida, atravesso a passadeira e empurro
a porta do bar. Debalde, ele continua fechado. Então volto para trás, perco-me
na curva. Daí a pouco oiço a porta da rua a abrir e alguém a entrar. Sou eu. Reúno-me
comigo mesmo, sento-me na secretária e olho o pequeno bosque da escola aqui ao
lado. Os pinheiros estão mais copados e os cedros desenham cones secretos por
amor à geometria. Hoje é quarta-feira, dia 13 de Maio. O mundo contínua envolto
em estatística e até eu me entrego, por desfastio, a exercícios estatísticos.
Vi na televisão umas imagens do santuário da Cova de Iria. Estava vazio, mas
não oferecia a desolação que outros lugares de encontro das multidões oferecem
quando ninguém os habita.
terça-feira, 12 de maio de 2020
Em estado catatónico
Tenho uma relação difícil com a burocracia. Possuirei alguns
genes avariados, ou mais avariados do que a norma, que me colocam em estado
catatónico mal tenha que tratar de guias, certificados, certidões e o mais que
uma imaginação delirante passa a vida a conceber. Dou de barato o pagar e o
repagar, mas a fina trama onde se tece toda a relação com o leviatã
ultrapassa-me, excede a pobre inteligência que me foi concedida e activa em mim
alguma hormona que me põe à beira de um colapso. É verdade que mesmo aqui se
manifesta a minha propensão para hipérbole, e isso é ainda mais idiossincrático
do que a desavença com a tirania da administração. Suspeito, mas é apenas uma
suspeita, a existência na minha alma de uma herança anarquista. Algum avô
longínquo, no segredo da sua juventude, terá sonhado terras sem poderes ordenadores.
Por causa de tudo isto fui à rua, uma viagem sem sentido e quando cheguei ao
destino o destino só se abriria para mim caso tivesse feito marcação. Sempre achei
que não somos nós que marcamos a hora, mas talvez tenha existido alguma
metamorfose ontológica e o destino se tenha tornado complacente dando a
oportunidade de negociar a hora em que se dispõe a atender-nos. Ainda não me
habituei à nova realidade e talvez viva num tempo que já acabou. Bem me esforço
por bater à porta da nova era, mas as minhas pancadas são demasiado leves para
que sejam escutados no reino nascente, onde as festas são de tal maneira luxuriantes
que não há porteiro que escute quem quer entrar. Como se vê, a pendência
burocrática não me dá ensejo a dizer seja o que for com nexo. O sol que encontrei
na rua era desagradável, quente e doentio, havia nele catarro e um ar amarelado
que não me dispôs melhor do que estava. A cidade cheia de carros, os
castanheiros da marginal exuberavam na floração e não vi ninguém conhecido.
Espero em desespero um email que me há-de salvar, indicar-me-á o caminho onde
me esperarão umas guias que me hão-de conduzir à caixa multibanco ou, se tiver
juízo, ao conforto do homebanking. E
eu que queria falar da palavra cavanhaque e de um certo general francês, enrodilhei-me
em mais uma triste história. Hoje é terça-feira, dia 12 de Maio. Ganhei o
hábito de fazer de calendário e não há quem me faça perder o vício. Num
apartamento vizinho alguém se apaixonou pelo aspirador e arrasta-o dengoso casa
fora. Infinitas são as parafilias, mas recuso-me a fundamentar tal afirmação.
segunda-feira, 11 de maio de 2020
Contra o sono, marchar, marchar
Depois de almoço sofri um ataque indescritível de sono. A
cabeça pendia, as pálpebras fechavam-se e em todo o corpo um torpor exigia que me
acastelhanasse e, sem escrúpulos nem remorsos, dormisse uma boa sesta. Tartamudeei
aquele velho slogan que fez a nossa
independência, de Espanha nem bom vento nem bom casamento, e acrescentei nem
bom vento nem bom aconselhamento. Resisti como se resistisse a um inimigo tenebroso,
convoquei as forças benévolas, lembrei o primeiro de Dezembro e os quarenta
conjurados e não me deixei arrastar para o mundo sombrio do sono, onde sempre
se pode ser surpreendido por sonhos que a sensatez nos deveria interditar. Meu
Deus, agora deu-me para a aliteração, ainda por cima em s. Se fosse em r poderia
escrever o rato roeu a rolha da garrafa do rei de Roma. Duas vezes somos
meninos, sussurra-me uma voz que me habita sem pagar renda. Aberta a janela, o
ar reanimou-me, as aliterações passaram. Um vento irrequieto brinca com a
folhagem das árvores, o sol joga às escondidas entre as nuvens e os carros,
como animais vindos de um universo paralelo, correm ofegantes, circundam
rotundas e aceleram entre baforadas de fumo e buzinas enrouquecidas pelo pólen
das árvores. Os dias úteis da semana começam levados pela incerteza, constato,
enquanto, mais uma vez, o alarme de um carro estacionado ali em baixo dispara, enche
o ar com os seus urros ateados pelo medo de ser levado por sabe-se lá quem. Também
estes animais metálicos desenvolveram um amor canino pelos seus donos. Hoje é
segunda-feira, dia 11 de Maio. Nesta data nasceram o imperador Justiniano I e
Salvador Dali. Para contrabalançar morreu Afonso Costa. As acácias estão compostas,
embora lhes falte o aprumo dos ciprestes e a altivez dos cedros.
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