Tenho certa inclinação para comprar livros que ninguém, em perfeito juízo, se lembraria de comprar ou ler, mesmo que emprestados. Chegaram-me vários adquiridos num alfarrabista. Num romance, das Edições Ática, publicado em 1962, de uma autora que não terá deixado rasto na literatura nacional, há um registo manuscrito de posse do livro. Começa com o nome próprio, talvez um diminutivo, do proprietário ou da proprietária, ilegível, e depois os apelidos, um nome de família ligada à cidade de Leiria. Sim, fui investigar no Google. Na linha seguinte, diz apenas ano de 1966. Na terceira, surge Foi me oferecido pela. Na última, um nome de mulher, aliás, dois nomes, sem apelidos. O que interessa isto, perguntar-se-á. Nada, mas fiquei indeciso a que sexo atribuir a antiga propriedade da obra. É uma letra larga e, ao mesmo tempo, pontiaguda. Não há letra que não assente num único ponto, como se a intenção fosse cravá-las a todas nas linhas imaginárias. Fiquei com a impressão de que se trataria de uma pessoa com uma disposição cortante, talvez uma daquelas mulheres a que se associa a designação de víbora. Talvez esteja enganado, e o livro tenha sido oferecido à mais bondosa das pessoas. Nunca fui dado à grafologia. O romance nem começa particularmente mal: Há seres destinados a passarem como sombras pela vida, sem ocuparem lugar definido nem adquirirem vulto ou fisionomia que os distinga. Lido isto, logo senti uma estranha solidariedade com esses seres que passam pela existência sem que se tornem figuras. O pior, acudiu-me ao espírito, são aqueles que não apenas se tornam figuras, como chegam ao friso onde se amontoam os grandes figurões, cujo vulto e fisionomia todos conhecem, embora não haja quem não preferisse nunca lhes ter escutado o nome. A quarta-feira flui com lentidão, daqui a pouco terei direito a mais uma corveia, mas isso é o que acontece a quem não chega a ter vulto ou fisionomia que o distinga. O romance tem uma bela capa desenhada por Paulo-Guilherme e deve pesar mais de um quilograma. Nem tudo será mau ou pouco.
quarta-feira, 16 de dezembro de 2020
terça-feira, 15 de dezembro de 2020
Dobrar o cabo
Era meio-dia quando Dezembro dobrou o cabo e começou a inclinar-se para o fim que o espera. Chegado aí, virá Janeiro e um novo ano acolherá a embarcação onde nós, nautas sem destino, nos acotovelamos entre ilusões de regresso ao passado e esperanças que nunca deixam de fervilhar nas vísceras humanas. Pendem de uma tília da avenida algumas folhas amarelas. São tão poucas que quase me sinto tentado em contá-las, mas logo a atenção é requerida para outros acontecimentos, carros que se arrastam com vagares de gente desocupada, pessoas apressadas escondidas em máscaras, pequenos nadas com que ocupo o tempo. As orquídeas foram destronadas do seu friso pelos adereços de Natal, hibernam noutro lugar à espera que os Reis Magos cheguem a Belém, deixem os presentes e voltem para o Oriente, onde todos os anos os esperam. Então, voltará o friso das orquídeas, algumas já floridas e o tempo continuará a correr indiferente a dores e prazeres humanos, como sempre aconteceu e, presumo, sempre acontecerá.
segunda-feira, 14 de dezembro de 2020
Sem agenda
Chove. Vejo as gotas de água dançar e, depois de uma hesitação, precipitarem-se para terra. Ao poisar, fazem pequenos lagos ou ribeiros incipientes. Pessoas passam abrigadas em guarda-chuvas, alguns com anúncios coloridos, outros mais sisudos. Há quem corra e entre num carro ou num café. Falta uma semana para que o Inverno chegue, mas ele já cá está há algum tempo. Faço uma lista de compras e outra de afazeres. Nem sei para que as faço, pois não tenho qualquer intenção de olhar para elas. Nunca tive uma agenda. Isto não é completamente verdade, mas as que tive nunca me serviram para nada. Até hoje não me fizeram falta. Vou a onde tenho de ir, faço o que tenho a fazer. Desconfio, porém, que não tarda e ser-me-ão de grande auxílio. Este ano, pela primeira-vez, esqueci o aniversário da minha sobrinha-neta. Passada uma semana, lembrei-me e achei o esquecimento um mau sinal. Apesar da chuva e das nuvens escuras, há momentos de reverberação, como acontece com certas lâmpadas que emitem um clarão intenso antes de se fundirem. Não tarda, e o dia funde-se. Nos sites noticiosos continua a contabilidade dos mortos. Os números são desagradáveis, mas ninguém quer saber. Os jornais começam a fazer a revista do ano, como se este fosse um ano que merecesse revista. Às segundas-feiras falta-me sempre assunto. Nos outros dias, também. Se dormisse uma sesta, ainda que tardia, tudo melhorava, mas não sou capaz.
domingo, 13 de dezembro de 2020
Ócio dominical
Quando há pouco olhei para a rua, o dia estava turvo, uma mancha de cinza húmida flutuava na atmosfera e caía lentamente no chão. Agora, porém, apesar do céu revestido por nuvens cinzentas, tudo se tornou definido como acontece quando se limpa os óculos sujos e embaciados. As cores tornaram-se mais vibrantes, os amarelos e castanhos das folhas mortas, os verdes daquelas que persistem por dentro da invernia, até os tons baços de muros e paredes ganharam uma nova vibração, um som mais musical. Das caves esconsas dos prédios saem automóveis para enfrentar as exigências de domingo, enquanto, sentado no escritório, bebo café e como uma fatia de bolo-rainha. E ao escrever isto, logo me maravilho com o progresso da igualdade entre géneros. Se não fosse excessivamente brejeiro e dado a más interpretações, diria que antigamente só o bolo do rei podia ser comido, agora também o da rainha se alcandorou ao êxtase da deglutição, mas para evitar mal-entendidos e interpretações falsas e ociosas afirmo que não escrevi o que acabaram de ler. Isto podia mesmo ocultar o mais importante. Assim como o arquitecto divino da costela do homem extraiu a mulher, também um pasteleiro humano de uma amêndoa torrada perdida no bolo-rei gerou o bolo-rainha. E em ambos os casos o segundo produto excedeu em larga medida a qualidade do primeiro. O que prova que Deus escolheu a melhor costela do homem, e o pasteleiro teve a sensatez de evitar criar o novo produto a partir da lamentável fava. Apesar da triste superficialidade do meu escrito, as cores continuam vibrantes, assim como a música que delas se desprende e inunda o universo até às esferas celestes. Como é belo o ócio dominical.
sábado, 12 de dezembro de 2020
A angústia progride
Atravessei há pouco parte da antiga vila, a zona a que por vezes, e talvez sem ironia, chamam histórica. Fico sempre sem saber se estou num filme distópico, uma pós-catástrofe, ou se num daqueles em que a desolação de certas zonas da América é trazida à luz por algum realizador arguto. Numa esplanada, havia pessoas sentadas, hirtas, umas de máscara e outras sem ela, mas todas olhavam para um sítio indefinido que parecia ter deixado de existir há muito. Prédios caídos, paredes por pintar, um comércio feito de ausências, uma tristeza sem fim, como se o futuro tivesse sido arrancado àqueles lugares e agora apenas existissem rugas e ruínas, memórias desfeitas, gente que se perdeu no caminho e ficou parada num tempo que não existe. Ocorreu-me que também eu não destoaria daquele cenário e acelerei o carro, afastei-me o mais depressa que a lei me permitiu. Depois, a tarde começou a enegrecer, a traçar as linhas que a haveriam de levar ao crepúsculo. Quando estacionei e saí, senti-me impelido a dar um pequeno passeio a pé, para me lavar por dentro, para dissolver o óleo rançoso que se acumulara. Agora a noite anuncia-se nos altifalantes de Dezembro, numa voz delida, numa pronúncia cansada. Enquanto escrevo, olho as acácias. Algumas folhas incertas resistem ao avanço da invernia, uma ambulância pára na urgência do hospital, assim a imagino a partir dos clarões azulados que rasgam a escuridão.
sexta-feira, 11 de dezembro de 2020
Da virtude do fingimento
Ó noite benfazeja, mãe do repouso, madrasta da preocupação! Começar um texto assim, tão exclamativo, tão cheio de pathos, não lembra ao corcunda do demónio. A mim também não me lembrou, mas não encontrei um outro e mais decente começo. O dia, mais pequeno que o de ontem, esteve sorumbático. Chuvoso, flébil, plangente, lacrimoso. Infeliz (ainda não me cansei de adjectivar), envolto numa capa de sombra e cinza. Podia contar uma série de peripécias, mas são humanas, demasiado humanas, deixemo-las desfazerem-se com o passar das horas. Uma das coisas mais curiosas que me coube em sorte é a de me pôr a discutir assuntos que não me interessam para nada. Por vezes, consigo fingir por eles uma paixão que me falta em absoluto. Fingir paixões seria motivo de longa análise em sessões de terapia, caso fosse inclinado para ela e tivesse dinheiro suficiente para as múltiplas sessões semanais que me haveriam de recomendar para que o meu infeliz caso pudesse ser tratado. Já me imagino no divã a fazer associação livre e a contar sonhos que não tenho. Seja como for, não há qualidade social mais elevada do que o fingimento. É um exercício para não perturbar os outros, para evitar que transcorra da nossa mente perversa opiniões malévolas, enviesadas, e assim contribuir para a paz social. Uma das coisas que tenho reparado é que a sexta-feira é um dia propício para escrever as maiores idiotices da semana, mas é o que me ocorre.
quinta-feira, 10 de dezembro de 2020
Crítica de arte
Acabo de receber uma mensagem do antivírus do telemóvel. Não se trata de me informar de um ataque das forças maléficas, mas de um exercício de crítica de arte. É verdade, o meu antivírus tem uma função que faz crítica artística. Não raras vezes, invade-me o monitor e informa-me que certas fotografias são de má qualidade. Se não quero eliminá-las, pergunta. Desculpa-se, mas não passa de dissimulação, que é material que ocupa espaço e, como se sabe, nestas coisas o espaço é valioso. Na realidade, apenas pretende sublinhar que não nasci para fotógrafo e seria mais razoável desactivar a câmara. Ele não o diz, mas bem o percebo. O mundo virtual ganhou demasiado autonomia, penso, enquanto olho o negro da noite a sugar a cidade. Dezembro completou a primeira dezena de dias e também todas as suas promessas têm pouca realidade. Tenho algumas coisas para fazer, mas o corpo está inclinado para o sossego e adiá-las parece-me um bom conselho. Fecho os olhos, apoio a cabeça na mão e deixo o tempo fluir. Haverá de me fazer falta, mas se fosse lamentar tudo o que me fará falta, bem podia não fazer outra coisa na vida. Oiço uma pequena composição de Arvo Pärt com o nome de O Grito do Veado e medito que muitas são as maneiras como o universo lança gritos ao alto e que a Terra é lugar de uma grande gritaria. Não faltarão razões. Os dias estão estranhos é o quero dizer e agora calo-me.
quarta-feira, 9 de dezembro de 2020
Invernia
Uma pequena invernia caiu sobre esta quarta-feira. O frio desce sobre a cidade trazido pelo vento, pela chuva, pelo cansaço com que o Outono se arrasta para o sarcófago onde se depositam, ano após ano, as estações mortas. A realidade, depois de uns dias de ausência, veio bater-me à porta. Não com a mão estendida de quem pede esmola, mas com o dedo em riste de quem dá ordens severas. Cumpro-as para fingir que sou bem-comportado. Não há nada melhor do que um belo fingimento. Não por que haja alternativas ao fingimento, mas porque ele pode ser horrível. Há que salvaguardar as aparências. Um célebre teólogo alemão, cujo nome italiano omito, tem um texto chamado As Idades da Vida. Abri-o e folhei-o até chegar ao que seria a minha idade. Deveria estar na era do homem serenado, mas desconfio que, devido a uma inclinação para o serôdio, chegarei lá tarde, talvez demasiado tarde. Ainda há dias me propunha escrever o livro do sossego e agora nego-me a serenidade. Com dias como o de hoje tudo pode acontecer. Vou fazer o que tenho a fazer e esperar que ele passe.
terça-feira, 8 de dezembro de 2020
Da imaculada concepção
Um velho Mercedes preto ostenta-se com demora pela Sá Carneiro. As tílias, se o são, lutam em desespero contra o vento, pretendendo, sem êxito digno de crónica, segurar as folhas que restam aos ramos quase despidos. No céu a cinza das nuvens abre-se, uma ou outra vez, e deixa passar alguns raios de sol sem brilho, presos a um pudor de antiga virgem toldada de inocências. Oiço vozes na rua, gente que troca palavras para assustar o silêncio, tanto o temem, ou talvez seja eu que tenhas audições imaginárias. Nunca escreveria o que Peter Handke escreve no seu longo Poema à Duração: No sossego desses lagos / sei o que faço / e, sabendo o que faço, / fico a saber quem sou. Perfilho uma outra ideia. Quanto mais sei o que faço, menos sei quem sou. No sossego dos lagos, pediria a graça de esquecer o que faço e que sobre mim descesse um enorme silêncio. Falta-te fé na praxis, disse-me um dia o meu amigo Rogélio. Não o desmenti. Sisto IV, em 1477, decretou o dia de hoje como o da Festa da Imaculada Conceição, e Pio IX, em 1854, definiu a Imaculada Conceição como dogma dos católicos. Não imaginou ele que, um dia, ninguém sequer entendesse o que era um dogma, quanto mais uma concepção imaculada, embora todos fiquem gratos – continuo dado à hipérbole – pela dispensa dos negócios do mundo. Recebo, primeiro, um vídeo e, depois, uma foto. No primeiro, vejo o meu neto a pintar com aguarelas sobre uma folha de papel pautado. Na segunda, deparo-me com uma daquelas pinturas que só as crianças de dois anos sabem fazer, porque é imaculada a sua concepção. A da pintura e não a das crianças. Presumo.
segunda-feira, 7 de dezembro de 2020
Não ter mão no caminho
São múltiplas as traduções que se propõem para Jeremias, 10, 23, mas a de que mais gosto é a que diz e não está na mão do homem o seu caminho. A tradução de Frederico Lourenço, feita a partir do grego, aproxima-se e diz não é do ser humano o caminho dele. O versículo continua para dizer que não cabe ao homem estabelecer o seu próprio itinerário. Esta velha sabedoria acumulada pela experiência da decepção contraria radicalmente os desígnios do homem moderno, ciente de que não apenas faz caminhos como está convencido de que em sua mão reside o poder de os trilhar. Com toda esta conversa inútil e de aparência beata, quero apenas dizer que me sinto excluído da modernidade. Não sou construtor de caminhos, nem de estradas, nem de rotas marítimas ou aéreas, e não tenho sequer os meus próprios passos na mão ou mesmo no pé. Neste fim-de-semana que se prolonga, hoje é o segundo dia em que os meus pobres planos se revelaram enganadores, se furtaram ao meu desejo e à minha direcção. O que me vale, digo-o sem ironia, é que não conheço ninguém que não seja moderno e não tenha a sua vida nas próprias mãos. Por certo, haverá por aí outras aves perdidas, sombras que, como eu, se enganaram no tempo para nascer e em vez de terem aterrado na Idade Média vieram parar aos dias de hoje. Talvez não fosse nada disto o que queria escrever, mas as frases começam a sair e não há quem lhes ponha mão. Hoje o dia está dado a intermitências. Ora chove, ora faz sol. Tenho de me despachar, pois aquilo que eu não tinha programado chama por mim, como a mais urgente das coisas que há no mundo.
domingo, 6 de dezembro de 2020
O grande livro do sossego
Ontem, após as diligências da manhã, tive a ousadia de pensar numa tarde tranquila, onde me pudesse entregar aos meus devaneios, sem que o mundo e a realidade – raramente são a mesma coisa – me viessem bater à porta. Só uma mente capturada pela mais profunda estultícia, como acontece com aquela que recebi para me guiar na vida, se arroga a estes planos sobre o futuro, mesmo o a mais curto prazo. Este não quis saber dos meus pobres planos e entregou-me ao frenesim de um conjunto de actividades a que tive de me submeter e submeter outros, para desassossego do meu espírito. Contrariamente a certo poeta que, sob o véu da heteronímia, escreveu um livro do desassossego, o meu objectivo é escrever, caso a gramática e o léxico me ajudem, o livro do sossego, o grande livro do sossego. Há uma nobreza sem fim na quietude de espírito, digo-me ao olhar agora para a rua. Está um domingo esplêndido, feito de cinza e humidade. Nele o vento não bole e todos os ruídos da mecânica do mundo parecem suspensos. Depois surgem sob os olhos frases magníficas como a que Ernst Jünger escreveu no seu belo romance Sobre as Falésias de Mármore, referindo-se ao padre Lampros: Ele, que vivia como um sonhador por detrás dos muros de um convento, talvez fosse de todos nós o único a conhecer a plenitude da realidade. Isto explica todo o meu conflito com essa realidade. Como também não me foi dado o dom de sonhar, não tenho meios para conhecer o real. A manhã dominical progride, os crentes apressam-se para a Missa do meio-dia em S. Pedro e eu olho para a rua e vejo o Outono a desfigurar-se lentamente no grande palco do mundo. É uma pena.
sábado, 5 de dezembro de 2020
Uma obra da natureza
Os dias continuam volúveis. Anunciam-se cheios de sol, mas logo se deixam seduzir pelo canto flébil das nuvens, cobrindo-se de uma luz anémica. A meio da manhã, ainda o dia estava exuberante, tive de sair para dar umas voltas urgentes e resolver alguns assuntos. A cidade, vista de dentro do carro, parece bem mais anémica do que o dia, havendo nela uma tristeza e melancolia que anunciam os dias do abandono, a rasura estrita da memória. O castelo, porém, com a estátua do rei que deu o foral, permanece vibrante, enviando a sua luz feita de séculos sobre as inquietações de quem por aqui vive. Na avenida marginal, vi alguns patos, mas não parei para ir espreitar o rio, para lhe saber o caudal e a disposição com que corre para os braços de um outro, bem maior e mais poderoso. Em todo o lado se vêem hierarquias, pensei, talvez sejam uma obra da natureza, apesar da palavra designar literalmente a autoridade do sagrado. Se me desse a especulações teológicas, não seria desagradável meditar na sacralidade da natureza ou na natureza do sagrado, mas esse dom não calhou no lote que me foi destinado. De súbito, um raio de sol fendeu o paredão de nuvens e caiu sobre uma oliveira da escola ao lado. A árvore cintila, dançando entre a cinza e a prata, enquanto o vento lhe faz tremer os ramos. Ao longe, um veículo pesado de mercadorias cruza-se com uma ambulância que arremessa para os ares fulgurações de azul, indicando a pressa que tem para chegar ao destino. Sentado, vejo tudo isso e penso que já faltarão pouco dias para o Outono se despedir. Então, constato que todos os meus pensamentos são puros e inúteis, e isso alegra-me.
sexta-feira, 4 de dezembro de 2020
Verrumar a razão
As tardes de sexta-feira ganharam uma inclinação para a rapidez. Mal se desvia os olhos e a noite já tomou conta da cidade, esmagando-a entre a humidade da terra calcária e a capa de cobre do veludo da noite. Seria aconselhável evitar estes tropos, mas é possível que numa outra vida tenha gasto o tempo no cultivo da retórica. Nunca se sabe o que nos pode acontecer, diz-se, mas ainda menos se sabe o que nos pode ter acontecido. Nisto não há nenhuma adesão à possibilidade da reencarnação, mas ajuda a escrever o texto. Devia levantar-me da secretária e ir fechar as janelas da sala lá do fundo, mas ainda não ganhei coragem para enfrentar, por segundos, as iluminações de Natal da Sá Carneiro. Mergulho na ideia de um fim-de-semana prolongado, graças à estranha combinação entre uma pandemia viral e a imaculada concepção da Virgem. Isto prova que mesmo o mais afastado se pode tornar próximo. Se estes estranhos encontros têm o condão de alegrar o espírito, a colecção de dogmas que presidem à religião que esta pátria em tempos praticou é uma aguçada ferramenta para verrumar uma pobre razão habilitada apenas ao que não tem mistério nem contradição. Se alguém me acusar de ter escrito o que escrevi, desde já o desminto.
quinta-feira, 3 de dezembro de 2020
Metamorfoses do dia
Estes dias de Outono lembram os belos dias ensolarados de Inverno. O sol, apesar de cintilante e vigoroso, traz à memória temperaturas baixas, o desejo de vestir roupas quentes e andar pelas ruas para desfrutar a luz. Isto escrevi-o ao meio-dia, mas, para provar que tudo está submetido ao império da metamorfose, o rosto do dia alterou-se radicalmente e ainda não são quatro da tarde. O sol está tão anémico que nem uma colher de óleo de fígado de bacalhau seria capaz de o revigorar. Atravessei a cidade várias vezes e não vi nada de notável. A culpa não é da cidade, mas dos meus olhos que se habituaram de tal maneira que até o mais excepcional, caso exista por aqui, passa incógnito no meio do que se tornou comum. Leio que um milhão de portugueses já deve ter tido contacto com o vírus. Através de email, enviaram-lhe um postal de Boas Festas, falaram por telemóvel? Pena que o vírus não seja dado à meditação melancólica e solitária, ao refúgio num eremitério. Nada pior do que vírus exuberantes, amantes da comunicação, sempre prontos a participar em festas e romarias. Uma carrinha comercial pára debaixo da acácia desfolhada, sai dela uma mulher vestida de verde seco e máscara branca, arrasta dois sacos de compras para a entrada de um prédio e desaparece. A carrinha faz então uma manobra, retoma a via e também desaparece na curva. E nestes acontecimentos está toda a sabedoria do mundo. Coisas e pessoas aparecem e desaparecem, e mesmo que deixem rasto, ele logo se há-de apagar.
quarta-feira, 2 de dezembro de 2020
Presentes de Natal
É a hora em que se coloca o problema dos presentes de Natal, e um enorme tédio faz-me abrir a boca e bocejar. Depois destes anos de experiência, cheguei à conclusão de que a ideia de Baltazar, Belchior e Gaspar foi nefasta e estragou o espírito do acontecimento. Ficou tudo encadeado, literalmente preso por cadeias, com o ouro, o incenso e a mirra, que logo a alucinação se espalhou, com toda a gente a pensar que é o Menino Jesus e que os outros são Reis Magos. Trata-se do Natal e não do Carnaval. Ninguém percebe isso? Neste, as pessoas podem disfarçar-se à vontade, inclusive de Menino Jesus e de Reis Magos. Certamente, ninguém levaria a mal. Eu sei que a indústria e o comércio do Natal precisam de viver, mas o exercício, além de inútil, é cansativo, mesmo com o recurso ao comércio online. A escola aqui ao lado, depois de uns dias de interregno, voltou a funcionar, há alunos nos campos de jogos e ninguém ali parece preocupado com as compras de Natal. A grande notícia do dia é que a senhora directora-geral da saúde foi apanhada pelo vírus, embora eu esteja convencido que mais importante do que isso foi a Batalha de Austerlitz, que ocorreu há 215 anos. Uma coisa é certa, o vencedor da batalha não será contaminado pelo novo coronavírus. Nem pelo velho, assinale-se. Ficou imune.
terça-feira, 1 de dezembro de 2020
No último mês do ano
Como quem não quer a coisa, o ano entrou no seu último mês. Hoje é feriado. Comemora-se a hora em que se decidiu acabar com o domínio de um rei castelhano. O acontecimento já não comove ninguém. Dei uma vista de olhos pelas primeiras páginas dos jornais. Apenas o i aproveita a ocasião para ouvir o melancólico pretendente ao trono de Portugal, que lá se encontra retratado com um boné na cabeça, para nos lembrar que será um homem da lavoura, um daqueles portugueses saudavelmente ligados à terra. Ontem, o meu neto veio, com os pais, cá a casa, já a noite tinha caído. Quando entra na sala decorada para o Natal, com a árvore e os presépios, pára a meio, abre a boca e olha espantado e encantado para o que o rodeava, não sabendo para onde se dirigir, nem o que fazer, atónito que estava. Vai ter pela primeira vez consciência de que o Natal é um tempo diferente. Talvez fosse a essa atitude que os filósofos gregos atribuíam o nascimento da filosofia. Refiro-me ao abrir a boca e arregalar os olhos, como se a vida e o mundo contivessem uma oferta de prazer que transbordaria qualquer medida. Na praceta aqui em baixo, pais e filhos desfrutam o sol do feriado. Em nenhum lado, porém, pressinto a vontade de pegar num qualquer Miguel de Vasconcelos e defenestrá-lo. Isso tranquiliza-me. É um sintoma de que nos tornámos um pouco mais civilizados. O que se passou, quando o corpo do agente castelhano caiu na rua, não foi coisa bonita de se ver. É o que dizem. Nesse dia eu não estava em Lisboa.
segunda-feira, 30 de novembro de 2020
Ciclos de festividades
Estamos no tempo do Advento. É um tempo essencial da liturgia católica, mas que já ninguém, isto é uma hipérbole, foi-me sublinhado, faz a mínima ideia do que seja. Uma cultura pode secularizar-se, pode até tornar-se descrente e viver de costas voltadas para o núcleo de crenças que a formou, mas se perde aquilo que um dia lhe ritmou a vida, os ciclos de festividades entretecidos na vida quotidiana, então está muito doente. Vive para a escravatura. Tudo isto disse-me, na conversa de ontem, o padre Lodo. Só pensei nisso hoje, agora que a hora de almoço já passou e tenho de enfrentar uma tarde em que a realidade reivindica as suas prerrogativas, isto é, a minha participação na escravatura. Também eu perdi o ritmo que deveria pautar a minha existência. Hoje, por exemplo, passei a manhã em visitas a lojas para encher a vida de coisas cuja utilidade nos foi assinalada por um génio maligno, um diabrete ocioso e perdulário, que, sem parar, cogita a maneira de nos perder. Seja como for, muito eu gosto destas expressões que não dizem nada, o Natal com os seus presépios, árvores e restante parafernália já está montado cá por casa. Temo, porém, que sirva para pouco, caso as crianças não ponham cá os pés, confinadas na capital. O bosque da escola ao lado está exuberante nos verdes e cinzas que o compõem, enquanto um sol desmaiado semeia vestígios de luz nas paredes dos prédios. Pombos voam entre telhados e eu penso no pouco sentido de tudo o que existe, mas é apenas um pensamento provocado pela dificuldade de digestão do almoço. Talvez pudesse ter sido mais frugal, ocorre-me.
domingo, 29 de novembro de 2020
O desaguar dos domingos
Visto da cadeira do meu escritório, o domingo desliza placidamente em direcção à foz. De imediato se levantou uma discussão sobre o tipo de fozes – é um plural horrível, que nem a semelhança com vozes poupa ao escárnio – cabem aos dias da semana para desaguarem uns nos outros. Cheguei a acordo. Tudo depende. Os domingos, por exemplo, podem desaguar em delta na segunda-feira, mas que o de hoje se há-de abrir num estuário de águas negras, embora límpidas. Há pouco, falei com o padre Lodovico. Continua abatido com o confinamento, a falta dos jantares de sábado à noite. Perguntou-me o que ando a ler. Disse-lhe o Sillanpää. O finlandês, questionou como se afirmasse. Disse-lhe que sim. Não conheço, sublinhou e pediu-me para lhe ler uma passagem ao acaso. Não foi ao acaso, mas li em todas as condições sociais o tempo já vivido aparece à memória ansiosa com um solene esplendor. Interessante, há muito que noto isso, comentou. Nas confissões, continuou, não é raro observar as maiores idiotices feitas no passado envoltas nesse solene esplendor. Sempre me intrigou, acrescentou, essa luz com que o presente envolve até o mais indesejável que se foi obrigado a viver. Tenho de pensar mais nisso, concluiu. Numa das acácias da praceta restam ainda algumas folhas que tremem ao vento. Num dos ramos, um anjo medita sobre o mistério da encarnação. No céu, nuvens brancas e negras disputam a primazia. Uma rapariga sem máscara e calçada com ténis brancos atravessa a rua, e eu recolho-me, como se vivesse num ermitério. Sítio para onde deveria ter entrado há muito, caso não fossem as tentações do mundo. Escrevo isto, e alguma coisa dentro de mim desata a rir. Sempre encontrei graça nesta ideia de considerar o riso um nó que tivesse de ser desatado.
sábado, 28 de novembro de 2020
Universos paralelos
Antigamente nem me ocorreria fazê-lo, mas de há uns tempos para cá, vou a uma aldeia aqui perto, já em plena serra, comprar laranjas. Um enclave minúsculo tem um microclima que proporciona uns frutos excelentes. À beira da estrada os pequenos produtores locais vendem as suas laranjas e outras coisas que cultivam nas hortas. Hoje fui lá mais uma vez. Chovia e enquanto fazia o caminho para cá e para lá, pensava que todos vivemos em vários universos, que, sendo paralelos, possuem portais que permitem transições confortáveis entre eles. A noite caiu há muito, o dia foi invernoso e rendeu-me pouco. De lá de dentro vem um comentário, as orquídeas este ano estão malucas. Não digo nada, mas sei o que se passa. Estão prontas para antecipar a floração. Não são como eu, sempre pronto a retardar seja o que for. Não são apenas as orquídeas, contudo, que estão malucas. Também o mundo sofreu uma súbita aceleração na tontice e anda um pouco fora dos eixos. Não faltam por aí moços pimpões prontos a proclamar que hão-de pôr tudo na ordem. Depois de escrever esta frase, dou-me conta de que nunca uso a palavra pimpão e não faço ideia por que razão ela me ocorreu. Talvez os moços sejam mesmo apimponados. No telemóvel, recebo um vídeo do meu neto entregue a um jogo de colocar umas bolas de cor em buracos. Isso basta para que a noite me seja benévola.
sexta-feira, 27 de novembro de 2020
O peso da identidade
Também eu não conhecia Frans Eemil Sillanpää, um finlandês que ganhou o Nobel da literatura em 1939. Como muitas vezes acontece, um acaso levou-me a ele e consegui comprar os dois romances que a Editorial Inquérito, há muitas décadas, traduziu pela mão de José Marinho. Tratam-se de Silja e Santa Miséria. Estou a ler este último. A personagem central, um homem um pouco lento de raciocínio, vai recebendo nomes diferentes ao longo da vida. Fiquei a invejá-lo, também eu poderia receber diversos nomes conforme os anos se fossem acumulando. Tinha várias vantagens. Diversificaria, coisa que está muito em voga no espírito do tempo. Depois, evitaria o cansaço da identidade. Ter uma identidade é um peso que chega a ser insuportável, ir tendo várias é como se não tivesse nenhuma, o que seria uma grande liberdade. A noite cerrou-se já. Acompanho com zelo o minguar dos dias, enquanto o Outono progride. Hoje dei uma volta, depois de almoço, pela praceta e ruas adjacentes. As folhas molhadas amontoam-se debaixo das acácias, os ramos parecem antenas ocupadas em captar algum sinal de vida alienígena e as pessoas são agora incógnitas sob as máscaras que as protegem dos vírus e do mau olhado. Entrei em fim-de-semana. Nesta expressão ressoa sempre uma qualquer ameaça de apocalipse, mas pode acontecer que o problema resida em mim, uma mente, além de lenta, demasiado impressionável por certas palavras. É o que faz o peso de ter uma identidade.