quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Aforismos, sentenças e escólios

Ontem descobri um autor colombiano que me parece particularmente interessante, apesar de tudo. Nicolás Gómez Dávila (1913-1994). O apesar de tudo refere-se ao facto dele não ser propriamente um adepto da democracia e baptizar-se a si mesmo como um reaccionário. Digo isto não porque ache que fosse melhor que ele se classificasse como revolucionário ou liberal, mas porque estas classificações são, mal se começa a esgaravatar nelas, equívocas e funcionam como um véu para ocultar o que é mais interessante. Ele escreveu apenas pequenos textos e aforismos, isto é, pequenas sentenças. Por norma, são verrumantes e luminosas, mesmo se se discorda delas. Por exemplo, relativamente aos homens da modernidade afirma: O moderno não tem vida interior: apenas conflitos internos. Sobre o gosto e aquela ideia, muito em voga, que o gosto é uma coisa relativa, diz: A relatividade do gosto é desculpa que adoptam as épocas que têm mau-gosto. Tem, o colombiano, também grande perspicácia psicológica: Nem sempre distinguimos o que fere a nossa delicadeza do que irrita a nossa inveja. Um escólio – é assim que o autor chama aos seus aforismos – trouxe-me à recordação toda uma literatura erótica que vai do Marquês de Sade até Henry Miller. Diz Gómez Dávila: O escritor moderno olvida que só a alusão aos gestos do amor capta a sua essência. A textualidade explícita falha sempre o erotismo, mesmo que isso estimule os apetites. A linguagem alusiva no domínio do erótico não é um tributo a uma moralidade que reprime e ou condena a sexualidade. O erótico vive naquele espaço que uma alusão abre. É sempre do domínio do não-dito. A linguagem explícita de Sade ou de Miller é uma revolta contra o interdito. A linguagem alusiva do Eros está para além do permitido e do proibido. Ela abre uma outra dimensão da experiência humana, pois o amor – mesmo o apenas carnal, para usar uma palavra caída em desuso – coloca os seres humanos para além daquilo que é a sua quotidianidade e as regras morais que a regulam. Coloca-os num outro nível do ser. Está a ser penoso chegar ao fim de Agosto, como se pode ver pelos textos dos últimos dias.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

O enigma da beleza

De um livro de Eugénio de Andrade caiu uma factura. Datada de um tempo que parece pertencer a uma era já muito distante, 25 de Junho de 2019. Nesses dias, ninguém imaginaria o que estaria para acontecer, como tudo haveria de mudar, e mal passaram dois anos. Nesse dia, comprei dois livros cujos títulos são um exemplo exímio do uso da aliteração. Um, Os Lugares do Lume; o outro, Os Sulcos da Sede. Cada título é, por si só, um poema intenso e poderoso. É isto que faz os grandes poetas. Os livros pertencem a uma edição das obras de Eugénio de Andrade, da Assírio & Alvim. São, todos eles, belíssimas edições. As capas, com desenhos de Ilda David, possuem uma extraordinária beleza. Adequam-se completamente à poesia de Andrade. A partir do início do século XX, a beleza deixou de interessar a generalidade dos grandes artistas, deixou de ser uma condição necessária para que uma obra seja classificada como obra de arte. Passado o fervor vanguardista e experimentalista, fica uma nostalgia pelo tempo em que a beleza tinha um papel central na arte. Será possível recuperá-la? Como o bem e a própria verdade, a beleza tornou-se enigmática, tão enigmática quanto o sorriso da Gioconda. No mundo pré-moderno, pensava-se que Deus era sumamente belo, bom e verdadeiro. A proclamação da morte de Deus, por Nietzsche, retirou o fundamento onde a beleza, a bondade e a verdade se escoravam. Daí, terem-se tornado enigmáticas. As férias ainda não acabaram e deveria ter cuidado em não deixar derivar estes textos para assuntos marcados por um rosto sério. Mais valia que falasse sobre a factura, aliás fatura simplificada original, completamente adequada a um mundo onde a simplicidade foi substituída pela simplificação.

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Tempo de leviandades

Estes são dias propícios a coisas levianas. Vi os vários filmes de Les Enquêtes du Commissaire Laviolette. Uma novidade para mim. Li uma aventura de Arsène Lupin e, agora, mergulhei não nas águas do oceano, mas num policial cujo protagonista é o detective privado Nero Wolfe, alguém que raramente sai de casa, apesar de trocar todos os anos de carro, tem um cozinheiro particular, pois é um exigente gourmet, e possui uma estufa onde dedica várias horas do dia ao cultivo de orquídeas. Há décadas que não lia nenhuma aventura deste extraordinário detective, que resolve tudo com o poder da mente. Aliás, parte substancial da literatura policial parece um anúncio àqueles livros que prometem, a quem os compre, desenvolver-lhe as capacidades cerebrais, o poder da mente. Eu, confesso sem vergonha, bem precisava desenvolver o poder da minha, ela que anda pelas ruas da amargura e só se entretém, ou quase, com coisas leves. Para me distrair desta leviandade, vou revendo uns filmes do Bergman. Ontem, vi mesmo um que nunca tinha visto, Musik i mörker (Música en la Oscuridad, na versão legendada em espanhol). É uma película de 1948, da fase inicial do realizador sueco. Começa com uma tragédia e acaba em bem, como num conto de fadas. É uma tragédia ao contrário. Quanto às leituras sérias, se é que eu tenho leituras sérias, entretenho-me com um autor do século XVII, Sir Robert Filmer, e o seu PatriarchA Defence Of The Natural Power of Kings Against The Unnatural Liberty Of The People, isto para fornecer o nome completo da obra. Não sei se isto será uma leitura séria. No século XVII, o nome dos livros esticava-se muito para além do razoável. A obra é uma defesa do absolutismo. Segundo o autor, todos os reis seriam descendentes de Adão e, por isso, seriam os legítimos detentores do poder e estariam, claro, acima de todos os outros homens, que talvez só sejam descendentes de Eva. Estou, porém, impedido pelo autor destes textos, de falar de política. Remeto-me à minha condição de narrador. Só me compete a leviandade.

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Economia e romance

Estou sempre a alargar os horizontes, já demasiado vastos, da minha ignorância. Ao ler um artigo no jornal, a minha atenção ficou presa num nome, Alexander Kluge, um realizador e escritor alemão. Não conheço nada dele e se já ouvi alguma vez o seu nome, a memória apagou-o. Descobri que tinham sido editados em Portugal os dois volumes de Crónica dos Sentimentos, por uma editora que desconhecia por completo, a BCF Editores. Curioso e sem nada de urgente para fazer, fui espreitar a filmografia. É enorme. Entre os filmes que me chamaram a atenção, está Nachrichten aus der ideologischen Antike: Marx, Eisenstein, Das Kapital. A Wikipedia, na sua versão brasileira, traduz por Notícias da Antiguidade Ideológica: Marx, Eisenstein, O Capital. O filme – de que não encontrei nenhuma versão legendada para uma língua acessível – tem uma duração de nove horas e trinta minutos. Parece que Kluge retoma um projecto do realizador soviético Sergei Eisenstein de filmar O Capital, de Marx, a partir da estrutura de Ulisses, de James Joyce. Eu não conheço o filme nem o seu autor, mas este projecto parece-me particularmente interessante. Talvez nele se compreenda que O Capital, essa bíblia sagrada que animou parte do século XX, seja uma ficção. A ideia deveria ser replicada. Por exemplo, filmar A Riqueza das Nações, de Adam Smith, a partir da estrutura romanesca de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, ou A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, de John Maynard Keynes, com a estrutura da trilogia Os Sonâmbulos, de Hermann Broch, ou mesmo a obra Acção Humana: Um Tratado de Economia, de Ludwig von Mises, com a estrutura de O Processo, de Franz Kafka. Alexander Kluge teria assim descoberto a essência da Economia, uma ardilosa ficção romanesca que, para acentuar o seu carácter ficcional, gosta de se apresentar como ciência, chegando mesmo a lançar mão da Matemática, para que os leitores, ao lerem esses romances, possam cumprir a exigência de Coleridge e suspender a descrença. Hoje é sexta-feira, a semana foi árdua e não me ocorre mais nada para preencher este espaço em branco.

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Dia de férias

Hoje é o décimo nono dia do mês de Agosto. A manhã de férias ocupei-a a trabalhar, como se fosse um workaholic vade retro Satana – mas há coisas que têm de ser feitas, decisões a tomar, projectos a ultimar e todas essas coisas necessárias à acção dos homens e que demonstram a inferioridade destes perante os outros animais, que fazem o que têm de fazer sem projectos, deliberações, planos e outras coisas em que a razão prática se desdobara na tentativa de salvar os homens da morte. Não salva. Antes, porém, caminhei durante seis quilómetros, fui ver o mar, os barcos, as gaivotas e os pobres veraneantes mais madrugadores que, coitados, lá têm de cumprir o ritual de se encharcarem em areia, sol e água. Gosto imenso de praias, desde que estejam vazias e não haja calor. O almoço será tarde, como acontece sempre nestes tempos de férias. Chamam-me para a mesa. Tenho de ir abrir o vinho.

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Viagens

Talvez já tenha falado aqui em Xavier de Maistre, o irmão mais novo de Joseph de Maistre, um encarniçado inimigo da Revolução Francesa e um brilhante teórico da reacção. Lembrei-me dele porque, estando a ler Danúbio, de Claudio Magris, na verdade um livro de viagem – belíssimo – pelos locais que o rio visita. Também Xavier de Maistre fala de viagens. Duas das suas obras têm os seguintes títulos: Voyage autor de ma chambre (1794) e Expédition nocturne autor de ma chambre (1825), este uma sequela do primeiro. Há nestas obras uma ironia relativamente à literatura de viagens, então em voga. Enquanto a viagem pressupõe o abrir do espaço, rasgá-lo, digamos assim, para que o corpo nele se desloque de um ponto para outro, viajar à volta do quarto é uma forma de oclusão. Substitui-se a linha recta pelo círculo. Resta saber qual das duas formas de viagem, aquela que vai de um sítio para outro ou a que se enrola sobre si mesma, é a porta autêntica para o universal. Creio que os viajantes – mesmo aqueles que não são meros turistas e coleccionadores de recordações, mas que fazem da viagem um modo de aprofundamento da sua relação com o mundo – acabam por ser falsos cosmopolitas, presos que ficam à diversidade paroquial por onde passam. Vão do particular para o particular. Aquele que explora até ao fim o particular, esse quarto onde está encerrado e por onde viaja, acaba por descobrir nele o universal, como se cada lugar, assim explorado até ao fim, revelasse nele o segredo do cosmos. Li que Almeida Garrett terá sido influenciado pela Voyage, de Xavier de Maistre, na escrita de Viagens na Minha Terra. Se assim foi, parece-me que o português não terá compreendido o essencial da obra do escritor francês (na verdade, saboiano). Mais próximo disso esteve Alexandre Herculano, não em qualquer dos seus romances, mas quando se exilou em Vale de Lobos, na Póvoa de Santarém.

terça-feira, 17 de agosto de 2021

Coisas de um provinciano em férias

Depois de uma semana em que a principal actividade foi estar sentado e um dos objectos mais requisitados foi o saca-rolhas, a balança teve a amabilidade de me comunicar que o peso não aumentara sequer um grama. Desta experiência concluí que fazer caminhadas engorda e que as virtudes do exercício físico são meramente fantasiosas. O melhor é não levar estas ideias a sério, não porque elas não sejam sérias, mas porque são, como agora se tornou moda dizer, politicamente incorrectas, uma expressão horrível, diga-se. Durante essa quadra de ócio descobri uns policiais que desconhecia. Tratam-se de Les Enquêtes du commissaire Laviolette, da autoria de Pierre Magnan, passados na Haute Provence, França, dos quais se encontram no Youtube adaptações felizes. Por falar em Provence, recordei-me que um dos tópicos que muito animava os professores de Francês, no tempo em que Portugal não se tinha ainda tornado uma nação anglo-saxónica, era a distinção entre province e Provence. Consta que o Reino de França estava dividido em províncias. Numa lista de 1748, são contabilizadas 125, desde a província Agenois – com capital em Agen, a terra das ameixas, aliás excelentes – até à província do Vivarais – com capital em Viviers. Depois veio a Revolução Francesa e zás. Os departamentos, uma divisão mais racional e menos medieva, substituíram as províncias, embora o espírito de província não tenha acabado. Voltando a Modeste Laviolette, o comissário, há que referir que é um bom passatempo, onde transparece um certo odor – caí no poço da sinestesia – a uma França eterna, que já não existirá, a França dos anos sessenta do século passado.

domingo, 15 de agosto de 2021

O tripálio

Pior que um feriado em Agosto, apenas um feriado num domingo de Agosto. Perda sobre perda. Esta dupla perda deveria ser compensada. Poder-se-ia imaginar que no início de cada ano civil, as autoridades, ao olhar para os feriados e a sua distribuição no calendário, proclamavam um certo número de dias como feriados compensatórios. Com eles substituíam aqueles que calhavam ao fim-de-semana e o de Agosto. É certo que vivemos num país em que há sempre uns governantes de ocasião – coisa que são todos os governantes – que fazem uma fronda contra os feriados e apostam em diminuí-los, como se isso fosse um desígnio civilizacional. Se fossem inteligentes, o que será pedir muito, aumentavam-nos ou, pelo menos, seguiam a minha douta sugestão. Quanto mais feriados, mais tempo livre, maior a felicidade geral. Quanto mais felizes as pessoas, maior a capacidade de suportar o tripálio, isto é, o instrumento romano de tortura composto por três paus, e cujo nome, segundo consta, terá dado origem à palavra trabalho. Numa civilização normal, o trabalho é entendido como uma tortura. Na anormalidade em que vivemos, é incensado como o objectivo supremo da existência. Sempre me pareceu que somos, há muito, dirigidos por sádicos ou, em certos casos, por sadomasoquistas. Hoje, porém, é dia de Assunção de Nossa Senhora, o que não é muito propício para deambulações psicanalíticas. Agora que o trabalho é tortura, lá isso é inegável.

sábado, 14 de agosto de 2021

Lógica matrimonial

Hoje é sábado e está calor. Estas duas proposições deixam-se traduzir pela fórmula lógica p Λ q. Para que esta seja verdadeira, é necessário que tanto p como q o sejam. A conectiva Λ significa então um casamento para a vida, um compromisso que exige a verdade dos consortes. Imaginemos, todavia, a seguinte proposição complexa: Hoje é sábado ou está um frio de gelar os neurónios.  Tradução: p V q. Para que esta proposição seja verdadeira, basta apenas que uma das variáveis (p, q) o seja, embora se ambas o forem não haverá problema. Traduzindo, estamos perante um casamento onde não existe reciprocidade. Um dos consortes está comprometido com a verdade, mas o outro nem por isso, umas vezes sim, outras não, sempre pode recorrer a umas mentiras para justificar o atraso com que chega a casa. Todavia, isso não põe em causa o matrimónio. Como se vê a lógica é das coisas mais úteis para compreender a vida humana. Com ela podemos construir toda uma explicação sobre o matrimónio e as relações amorosas. Fundamentalmente, podemos exprimir, num texto preguiçoso escrito num sábado de calor, que o estado de demência já esteve mais longe, embora a demência do mundo esteja ainda mais próxima. Basta olhar para a comunicação social. Antes deambulações atarantadas sobre lógica proposicional. Talvez, mas apenas talvez, um dia destes deambule por outras lógicas. É uma questão de agravamento do estado mental.

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Calor e leituras

Estou encantado, tanto quanto é possível com este calor, com Arsène Lupin. Há muito, muito que não o lia. Uma revisitação ao melhor dos tempos de adolescência, uma época lastimável que todos temos de atravessar, uns com mais obstáculos e infelicidade, outros com menos. Só espero não me pôr a reler a Enid Blyton, pois seria o anúncio de uma regressão à infância, ao Pinóquio, não ao texto do florentino Carlo Collodi, mas às adaptações em banda desenhada que se vendiam numa certa mercearia desaparecida há muito. Talvez uma dia fale sobre essa inusitada loja. Divido, porém, a atenção a Arsène Lupin com a leitura de Danúbio, de Claudio Magris. Talvez se possa dizer que é uma viagem sentimental ao longo desse rio que tanto tem marcado a História da Europa central, da Mitteleuropa. Contudo, mais que uma viagem sentimental, estamos perante uma viagem intelectual. Acabei de ler o ponto 12, da primeira parte. A guia de Sigmaringen. Uma viagem à política e à literatura europeia. O marechal colaboracionista Pétain, desconhecido da guia do Castelo de Smgmaringen, onde se refugiou, e, através de um outro colaboracionista, Céline, reflexões sobre Kafka, Pessoa, Hamsun, Neruda, Svevo, Hemingway, etc. Estas reflexões são, todavia, pequenas iluminações que pontuam o caminho. Danúbio não é un roman-fleuve, um romance-rio, mas o romance de um rio, onde este é a personagem central de uma história que, apesar de vivermos na parte mais ocidental da Europa, ainda nos toca. Está calor.

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Camaleões, monstros e plágios

Também eles possuem o dom do disfarce. Entregam-se ao mimetismo, como se fossem camaleões, e fazem-se acreditar como dias imensos, marcados pelo vagar, anúncios da eternidade ociosa, isto é, livre das consequências das dentadas na maçã e da expulsão do paraíso. Nunca percebi como se pôde trocar o Jardim do Éden por uma maçã, se fosse por uma laranja, pêssego ou uma toranja (que não havia na altura), ainda compreenderia, mas uma maçã… A realidade, seja como for, é bem mais prosaica. Não há, nos dias de férias, a poesia da mimese do eterno, mas a prosa monótona da passagem implacável das horas, minutos e segundos, tal como acontece no resto do ano. Ontem juntei os três netos. A dada altura, fiz umas cócegas ao mais pequeno e disse-lhe eu sou o monstro das bolachas. Logo uma das netas olhou para mim e repôs as coisas no seu devido lugar: o monstro das bolachas é meu. Como quem diz, se o avô quiser ser monstro para esse que invente outro nome, que a monstruosidade das bolachas será eternamente para mim. Inventar uma nova monstruosidade é a minha tarefa para hoje, aproveitando o disfarce de um dia de férias. Não é fácil a tarefa, pois o monstro das bolachas foi um descarado plágio. Terei de ir consultar uma lista de monstros benévolos usados na infância. Para plagiar, claro.

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Deambulações literárias

Há em Campo de Ourique, no Jardim da Parada, uma livraria de que muito gosto, a Ler. Pequena, mas com um bom catálogo, com o ambiente das velhas livrarias lisboetas. Ontem, ao passar por Lisboa, fui lá e resolvi o meu problema de leituras de férias. Tinha-me queixado da falta de uns Maigret. Não resolvi essa falta, mas descobri que a Relógio d’Água está a editar o Arsène Lupin, esse Gentleman Ladrão, a cujas aventuras dediquei num outro século muitas tardes de Verão. Comprei dois, A Agulha Oca e A Condessa de Cagliostro, e tomei a resolução de adquirir os que forem sendo publicados. Talvez nem os releia todos, mas é uma espécie de revisitação a um tempo em que aprendi a gostar da leitura. Foi com uma certa literatura menor, digamos assim, que fui conduzido, quase sem dar por isso, à literatura maior. Dos livros de cowboys (então, superlativamente malvistos), das aventuras da Enid Blyton, passei para os policiais e, de um momento para outro, vi-me a ler Camus, Kafka, Sófocles, Sartre. Claro que também lia os portugueses. Agora, porém, estou mais interessado em Lupin. Só espero que uma qualquer editora se lembre de republicar o Fantômas, outro herói – na verdade, um herói negativo – da adolescência. Bem, esta dedicação à literatura de entretenimento só é verdade em parte. Também comprei ontem Manhã e Noite, do norueguês John Fosse, Rua Katalin, da húngara Magda Szabó, ambos publicados pela Cavalo de Ferro, e, voltando à Relógio d’Água, O Rei João, de William Shakespeare. Este faz parte do «Projecto Shakespeare», em que a Relógio d’Água e o grupo de investigação Shakespeare e o Cânone Inglês, do Centre for English, Translation and Anglo-Portuguese Studies (Faculdade de Letras da Universidade do Porto) conspiram para uma publicação integral da tradução da obra dramática de Shakespeare. Dir-se-á que há, neste texto, excessiva publicidade. Talvez, mas todas as referências são merecidas. Há que não deixar morrer aqueles que se esforçam pelo que há de melhor.

domingo, 8 de agosto de 2021

Más escolhas

O tempo de férias não é pouco trabalhoso. Não fazer nada exige muito esforço, pois não é sem sacrifício que se domesticam e civilizam os impulsos que nos levam a trabalhar. Exagero, claro. É preciso não esquecer que possuo uma certa propensão para a hipérbole. No entanto, há alguma verdade no exagero. Trouxe comigo um conjunto de livros sérios para ler, para além das pequenas bibliotecas que arrasto nos dois eReaders (um Kindle e um Kobo) e no iPad. Dei comigo, porém, a desgostar-me com as leituras. Coisas demasiado sisudas para tempo de veraneio. O melhor, pensei, seria ler uns policiais, enquanto o tempo passa por mim. O problema é que não trouxe nenhum. Encontrar uma solução exigiu, então, esforço neuronal, a mim que pertenço a um tempo em que a televisão começava às sete da tarde e, para sanidade da população, acabava à meia-noite com o hino nacional, a bandeira a ondular, a que se seguia a mira técnica da RTP, que antecedia o momento em que tudo se desligava e ficava apenas um mar borbulhento cor de cinza acompanhado por um ruído irritante. Ah, havia apenas um canal, que chegava e sobrava. Eu sou desse tempo e é assim que penso, com os dados desse tempo. Por isso foi preciso esforço para encontrar a solução. Não havendo livros, sempre se pode recorrer ao Youtube e ver uns policiais. Comecei com três episódios do Sherlock Holmes. Não é a mesma coisa, eu sei, até porque a interpretação feita na série é um pouco estridente, mesmo para um opiómano. Em vez de ler, posto-me diante do monitor e deixo o patético detective resolver casos que nem ao diabo lembrariam, e ao diabo lembram muitas coisas, como bem se sabe. Seja como for, o que me apetece mesmo é ler um Maigret. Gostava de saber por que razão trouxe as Reflexões sobre a Revolução Francesa, do Edmund Burke, em vez de Maigret e a Morte do Perna-de-Pau ou de Maigret e o Corpo Sem Cabeça. Aliás, Simenon é um grande escritor. Más escolhas, portanto.

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Bolhas e bolas

Nada em excesso! Este mandamento resumia a ética dos gregos antigos. É de uma sabedoria conspícua, mas isso não é o suficiente para que um mortal o cumpra. Não fora ter-me entregado aos excessos das caminhadas e hoje não teria uma bolha num dos pés. Olho-a e compreendo que muitos são os limites que cercam os pobres seres humanos. Caminhadas suspensas, pomadas, pensos e um cuidado com o que calço, não vá a bolha crescer tanto como certas bolhas imobiliárias que, ao rebentar, têm o condão de lançar a matérias viscosa que as anima sobre uma multidão que, aparvalhada, olha para o céu, para descobrir de onde vem a matéria purulenta que chove sobre cautos e incautos. Há pouco recebi uma fotografia do meu neto. Instalado na areia, entregava-se à volúpia da bola de Berlim. Oiço de imediato, também queremos. Terei de pegar nas netas e ir a um lugar onde as há. Sem creme, sem óleo, ou quase. Eu não sei se também quero. Com a visita à balança no horizonte, sem poder caminhar para gastar calorias, duvido que seja uma boa ideia ceder à gula. Logo verei, até onde vai o meu poder de resistir à tentação. Nada em excesso, lembrei-me, agora.

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Dinossauros

Dinossauros. Não me estou a referir aos presidentes de câmara que não podendo eternizar-se no seu município tentam continuar a carreira num outro onde os eleitores lhes achem graça. Aqui não se fala de política. Tratam-se mesmo de dinossauros. Bem, também não é completamente verdade. São réplicas desses terríveis monstros. Para ajudar as minhas netas a passar o dia, fomos visitar o Dinoparque, na Lourinhã. Não fiquei comovido, embora o parque esteja bem organizado. Aquelas figuras terríveis fazem recordar a ideia de que a vida possa ser absurda, um contínuo matar para não morrer, num fluxo de violência de que não se vislumbra nem sentido nem fim. Elas gostaram, uma tirou fotografias a quase todas as réplicas, a outra olhou-as, sobranceira, como se já não tivesse idade para aquele tipo de fantasia. O melhor foi ir almoçar a um bar de praia, olhar para o oceano, conversar sobre isto e sobre aquilo, mas não sobre dinossauros, como se estes já não existissem, nem sequer na memória dos visitantes do parque.

terça-feira, 3 de agosto de 2021

Verão

Estes dias de Verão não passam de uma fantasia. Com uma liberdade aparente, foge-se dos grandes calores e encontra-se refúgio perto do mar, onde as temperaturas nunca se entregam a devaneios hiperbólicos. Aqui, onde há um ditado que diz primeiro de Agosto, primeiro de Inverno. Os dias passam sem inquietação, a não ser a inquietação de que tudo termine e a realidade, essa grande meretriz, volte e crave as suas garras na carne repousada pela estiagem. Ainda não pus um pé na praia e tenho esperança de a evitar tanto quanto possível. É um lugar para o qual não tenho paciência. Não consigo perceber como há quem passe horas e horas ao sol, mas como há muitas outras coisas que não compreendo, tenho de integrar essa incompreensão na incompreensão geral que me foi destinada. Seja como for, gosto de contemplar o mar, desde que o olhar passe por cima dos veraneantes. Trouxe comigo uma pilha de livros. O mais certo é não ler nenhum, pois cada vez mais cultivo a preguiça, o não fazer nada e, se for possível, não pensar em nada. De resto, faço longas caminhadas, onde acumulo pontos cardio, embora não saiba para servem tais pontos. A aplicação que os mede diz que acumular 150 pontos durante uma semana ajuda a prolongar a vida. Parece-me uma afirmação fantasiosa e que jamais poderá ser testada, o que evita ser falsificada. Logo, não científica, segundo Sir Karl Popper. De resto, a pandemia tornou-se um novo modo de aprender o alfabeto grego, o chamado ελληνικό αλφάβητο. Temos uma variante alfa, uma beta, uma gamma e uma delta. Isto, apesar de didáctico, é desesperante. Para chegar ao fim, ao ómega, ainda faltam vinte letras. O mundo está longe da perfeição.

sábado, 31 de julho de 2021

Uma megera

Sábado. Último dia de Julho. Um mau começo. Um conciliábulo com a balança redundou numa inútil humilhação. Depois de uma semana cheia de exercício, caminhadas a ultrapassar a dezena de quilómetros e a megera ainda teve a desfaçatez de me dizer que o peso – o meu, note-se, não o dela – aumentara. Parece pouco, mas duzentos gramas para cima no lugar dos dois mil que esperava para baixo é muito. Na verdade, entre a expectativa e a realidade vão dois mil e duzentos gramas. A realidade nunca me pareceu ser alguém de confiança. O melhor é não desanimar, a vida é feita destas contrariedades. Há várias explicações para o caso. Algumas delas bastante racionais e convincentes. Por exemplo, pode ser um facto que a balança me tenha tomado de ponta e aproveite estes momentos semanais para se desforrar de alguma insídia que eu lhe tenha armado. Outra probabilidade, não menos razoável, é ser o exercício físico a causa do aumento de peso. Quanto mais se caminha, mais se engorda. Uma terceira possibilidade, tão sensata quanto as anteriores, é a chamada hipótese astrológica. Uma conjugação astral adversa coincidiu com o momento em que coloquei os pés em cima da balança e foi o que se viu. É o que se chama acabar mal o mês e preparar-me para entrar em Agosto com o pé esquerdo, ainda por cima mais pesado. Sempre posso dizer que está inchado, que preciso de beber mais líquidos. Uma voz retine dentro de mim. Mais líquidos, sim, mas não daqueles que tens bebido. Escuto perplexo o acinte da voz e decido que tenho de me levantar e ir escolher os vinhos para o almoço tardio deste sábado.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Moscas

O tempo quente tem vários, e não pequenos, inconvenientes. Um deles é o acordar das moscas. Por certo que tudo o que existe terá o seu lugar e o seu papel. Facilmente se pode aceitar que as moscas tenham um lugar. Por norma, esse lugar coincide com aquele em que estou. Depois, dá-se o estranho caso de quanto mais elas se sentem atraídas por mim, mais eu as detesto. Com exclusão das melgas, não conheço outro ser que por mim mais se sinta atraído do que a mosca. Pergunto-me, nos dias quentes de Verão, que papel foi reservado na criação a esses miseráveis insectos. Por mais que procure, não lhes encontro nenhum, a não ser irritarem-me. Elas cumprem com afinco a função que o Criador lhes deu. Com o progredir do Verão uma pessoa fica sem assunto. Resta-lhe falar em moscas. Um dia destes, farei uma entrada sobre melgas, as quais ainda me irritam mais e mais profundamente que as moscas. A minha cultura é pobre, caso não o fosse conheceria a poesia que louvaria as moscas. Não conheço. O meu desconhecimento, porém, não é prova de que não exista.

domingo, 25 de julho de 2021

Do sofrível

Ontem acabei o texto com a palavra sofrível. A primeira vez que me lembro dela foi num certo colégio por onde andei a seguir à quarta classe. Fazia parte de uma estranha escala de classificação. Situava-se acima do medíocre e abaixo do suficiente. Imagino que o sistema classificativo do colégio estivesse já desadequado, mas talvez seja apenas eu que sou muito mais velho do que gosto de admitir. Não consigo imaginar as razões que terão levado alguém a transformar um adjectivo que diz que algo se pode suportar ou sofrer num nome que refere um certo desempenho escolar. Seja como for, os professores daquele tempo tinham uma escala mais ampla para classificar as provas e, quando estavam cansados desta, juntavam-lhe mais e menos. Os alunos, então, tinham suficiente menos que não se confundiria com sofrível mais, como o bom menos não era em nada idêntico ao suficiente mais. Tive uma professora de Físico-Química que se entretinha a distribuir medíocres e maus com vários menos e mais à frente, numa escala cujos arcanos só ela conheceria. Desconfio que, naqueles dias, a profissão de professor era muito entediante e havia que passar o tempo a inventar estes jogos classificativos. O lamentável de tudo isto é que a palavra quase caiu em desuso. Ninguém diz mas que filme sofrível ou aquele é um poeta sofrível, embora eu possa dizer que a minha inspiração está sofrível ou talvez mesmo medíocre, com um mais à frente.

sábado, 24 de julho de 2021

Do terrível

Todo o anjo é terrível. Assim começa a segunda Elegia de Duíno, de Rainer Maria Rilke. Tantas vezes dei comigo a pensar sobre essa estranha sentença, não sobre a sua verdade, mas a perguntar-me se ela não é uma pista para decifrar o enigma daquilo que nos aterra, o mistério do terror. Sempre que algo de terrível assombra os homens talvez seja a obra de um anjo ou de uma legião deles, mesmo se nós nos convencemos que o excesso de iniquidade ou de prazer seja o fruto do arbítrio humano. Pensar sobre os anjos não será o mais indicado para uma tarde soalheira de um sábado de Julho, com o mar tão perto. Encerro os pensamentos na gaveta do armário onde guardo as toalhas de praia e os calções de banho, e espero que também esses pensamentos adormeçam e deixem de me assediar aos sábados à tarde. Ponho de lado o poeta e deixo-me cativar pelas longas conversas com que os pássaros, mesmo ao pé da janela, ajustam os negócios da sua vida. Tenho de me aprontar, parece que alguém se esqueceu de comprar gengibre. Sem ele, o jantar estará ameaçado, ou talvez ninguém desse por isso, pois um anjo terrível se haveria de dispor a embotar o gosto dos comensais e, como um certo génio maligno que atormentou o pobre René, haveria de fazer parecer óptimo aquilo que apenas era sofrível.