quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Um castigo

Será que me é permitido retomar o post de ontem? Esta pergunta parece sem sentido, mas estes textos são, foram acontecendo, independentes uns dos outros. Não há continuidade neles. Acontecem ao sabor do vento. Alguém poderia dizer-me, e eu concordaria, são textos de um cata-vento. Nada a obstar. Por outro lado, nada me impede de dar continuidade ao texto de ontem. Será um acto de rebeldia contra o hábito. Ontem, reproduzi o começo de três obras literárias, o que me permitiu escrever sobre a liberdade de ir e vir. Hoje, para compensar as coisas, reproduzirei o fim dessas obras. Comecemos com a Fuga Sem Fim, de Joseph Roth: Não tinha profissão, não tinha amor, não lhe apetecia fazer nada, não tinha esperança nem ambições, e nem sequer egoísmo. // No mundo nunca houve pessoa tão supérflua. No final de A Trégua, Mario Benedetti escreve:  O escritório acabou. A partir de amanhã e até ao dia da minha morte, o tempo estará às minhas ordens. Depois de tanta espera, é isto o ócio. O que farei com ele? Por fim, Sem Destino, de Imre Kertész:  Pois também lá, entre as chaminés, nos intervalos do sofrimento, algo se assemelhava à felicidade. Toda a gente me pergunta só pelas vicissitudes, pelos «horrores»: todavia, no que me diz respeito, é talvez essa experiência mais memorável. Sim, é disso, da felicidade dos campos de concentração, que eu lhes falarei na próxima vez, quando me perguntarem. // Se é que vão perguntar. E se eu próprio não me tiver esquecido. Com estes fins, ainda aprenderemos alguma coisa sobre essa liberdade de ir e vir? Aprendemos duas coisas, qual delas a mais terrível. Aprendemos, com os finais de Roth e de Benedetti, que não sabemos o que fazer com essa liberdade, como ela, na verdade, nos é estranha. A segunda coisa que se aprende, com o final do romance de Kertész, é que essa liberdade está longe de ser necessária para a felicidade. A liberdade é uma dádiva divina que o homem está longe de ser capaz de aceitar. Será isto o pecado original. Deus ofereceu ao homem a liberdade, mas este rejeitou-a em nome de uma suposta felicidade. Foi castigado, como todos sabemos.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Ir e vir

Todas histórias, quero dizer narrativas como romances, contos ou novelas, têm um começo. Também terão um fim, mas não é esse que me interessa. Pelo menos, por agora. Vejamos as primeiras linhas das obras que, por desvario, comprei hoje. A Fuga Sem Fim, de Joseph Roth, diz: Franz Tunda, primeiro-tenente, do exército austríaco, foi feito prisioneiro de guerra pelos russos em agosto de 1916.A Trégua, de Mario Benedetti, abre-se com: Só me faltam seis meses e vinte e oito dias para me poder reformar. Por fim, Sem Destino, de Imre Kertész, tem o seguinte começo: Hoje, não fui à escola. Isto é, fui, mas só para pedir ao director de turma que me deixasse voltar para casa. Terão estes inícios literários alguma coisa comum? Na verdade, inscrevem-se num horizonte que os une. Num caso, alguém perda a liberdade ao tornar-se prisioneiro de guerra. Num outro, a personagem liberta-se da sala de aula. No terceiro caso, o segundo narrado, outra personagem ainda está presa ao trabalho, mas conta os dias em que a reforma o libertará. Em todos eles o que está em jogo é a liberdade. Não se trata aqui nem da liberdade metafísica, a que se dá o nome de livre-arbítrio, nem da liberdade política de poder intervir nos destinos da comunidade, mas de uma liberdade a que chamaria liberdade de ir e vir. Esta talvez seja a forma de liberdade mais importante para cada um e a mais ameaçadora para o grupo social e as instituições que dão corpo a esse grupo. Aquele que tem a liberdade de ir e vir torna-se imprevisível. Pode estar e não estar. Chega, subitamente; parte, se lhe apetece. Quando se pensa sobre o romance moderno, pensamos sobre o quê? Talvez o essencial desse romance se concentre nessa liberdade de ir e vir, isto é, na luta contra aquilo que a anula, como a prisão, o trabalho ou a escola, ou no combate pela libertação, pelo direito de se ser vagabundo sem que nada interfira nesse ir e vir.

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Desando, mas não descorro

A tarde não me correu de feição. O mais exacto seria dizer: a tarde descorreu-me. O pior é que o verbo descorrer não existe e o  processador de texto que uso para escrever estas coisas assinala erro. Isto, todavia, é mais uma manifestação das injustiças que atravessam o mundo e que se manifestam na língua. Podemos dizer, sem que a censura ortográfica assinale erro, uma frase como andamos e corremos feitos loucos. Mas se queremos escrever desandamos e descorremos como velhos cansados e sem forças, logo cai sobre a palavra o traço vermelho. Permite-se que o verbo andar receba o prefixo des-, mas não nos é possível descorrer. Se houvesse racionalidade, e a justiça não fosse palavra vazia, poderíamos descorrer sempre que nos apetecesse. Não podemos. A língua é o horizonte das nossas possibilidades, e aquilo que não se pode dizer, não se pode fazer.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Dia péssimo

Um dia péssimo para sair por aí para enfrentar gigantes e matar dragões. Também um herói tem os seus limites e os meus manifestam-se nestes dias cinzentos, de chuva persistente, dias desagradáveis e sem tino. Por isso, não acrescentei qualquer feito à minha gesta. Limitei-me às rotinas diárias necessárias para pagar as contas ou a dormitar em frente do computador, pois heróis como Quixote, Cid ou Rolando só não dormitaram em frente de computadores porque, nos seus dias, não os havia. Coisa de que se ressentem muito, segundo dizem quando falam comigo. Asseveram-me mesmo que não é justo que eu possa construir a minha história recorrendo às tecnologias de informação, enquanto eles tiveram de esperar que alguém escrevesse as deles, truncando a realidade dos acontecimentos, diminuindo-lhes a bravura e ofuscando-lhes a glória. Sugeri-lhes que pedissem uma segunda oportunidade. Não houve estupefacção no seu olhar, mas apenas ironia. Pensas, disseram-me em coro, que não o fizemos já. Olhei-os, expectante. Silêncio, até que eu, incapaz já de suportar a ausência de diálogo, lhes perguntei: qual a resposta? Não há segunda oportunidade, ouvi.

domingo, 19 de janeiro de 2025

Adormecer o coração

Um domingo tão triste que o céu parece chorar. Pela amostra, torna-se evidente que não há coisa mais fácil de escrever do que frases kitsch. Contudo, há dias em que mesmo um narrador sisudo se entrega nas mãos da superficialidade, banhado por um sentimentalismo fétido, pronto para agradar ao gosto mais comum. É evidente que, caso queira adormecer o coração, pode argumentar que tudo é uma questão de gosto. Uns gostam de uma coisa, outros de outra, mas que, no fundo, tudo se equivale. Esta equivalência universal é ao mesmo tempo falsa e verdadeira. Falsa porque aquilo que é mais difícil e mais exigente é mais valioso, independentemente do preço de mercado. Verdadeira porque são coisas humanas, e todas as coisas humanas se equivalem na morte. Morta a humanidade – e um dia ela desaparecerá – as suas diferenças serão tão importantes para o universo como são para nós as diferenças entre dois grãos de areia numa praia. Há um momento na vida em que acalentamos esperanças inauditas sobre a humanidade. Um dia, pensa-se, todos quererão o mais difícil e o mais exigente. Como se é ingénuo ao pensar que pode haver uma democratização do que é, por essência, aristocrático. Depois, descobre-se que a única verdade definitiva reside na igualização de tudo no oceano aplanador da morte. Dos indivíduos ou da espécie. Com uma tarde assim, é possível que D. Sebastião chegue amanhã de manhã.

sábado, 18 de janeiro de 2025

Considerações sem história

Um sábado provinciano e sem história, o que não deixa de ser uma óptima notícia, pois sempre que a história se intromete, podemos esperar o pior. A grande megera nunca se contenta com o mero passar do tempo. Exige sempre pesados tributos e grandes holocaustos, mesmo quando se trata da pequena história de sítios sem importância ou da história privada, que não é uma história, mas uma colecção de memórias que o tempo há-de diluir na água turva dos anos. Sem história, fui, depois de almoço, comprar laranjas a uma aldeia, onde as vendem à beira da estrada. Os carros param, as pessoas saem deles, dirigem-se às bancas. Ali estabelece-se um diálogo frutuoso, pois os que saíram dos carros a eles voltam carregados de fruta. Do ponto de vista económico, talvez seja um mau negócio, para quem se desloca propositadamente, pois ao preço da laranja, não muito diferente do das superfícies comerciais, há que juntar o preço da gasolina. Ganha-se no sabor e no prazer de animar uma economia local, que não será muito diferente do que era há cinquenta anos. Na verdade, ir comprar laranjas é uma luta contra a história, uma guerra contra o tempo, uma montaria para caçar o passado. Este, porém, astuto e vivaço, nunca se deixa apanhar, empurrando-nos sempre para a frente, como se o presente estivesse num declive escorregadio e nunca se cansasse de se deslocar. Contudo, é nestes afazeres do quotidiano que como um autêntico ser para a morte, como disse Heidegger, me alieno na quotidianidade, talvez com esperança de que, por um passe de mágica, a história seja abolida e a minha finitude seja transmutada em eternidade. Coisa em que não acredito, mas que considero, como considero tantas outras coisas que não merecem consideração. Aliás, não passo de um considerador viciado em coisas que não merecem consideração.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Virtude viril

Para que não me esqueça de que tenho corpo, este decidiu constipar-se e prepara-se para uma das suas representações anuais predilectas: uma faringite, já que é impossível ter uma amigdalite, pois os órgãos necessários para tal foram-me extraídos não tinha ainda dez anos. Consta que era moda na época. Para evitar o desenlace da constipação, fui visitar a médica que me vai acompanhando nestas coisas. Fui premiado com um antibiótico para ser tomado durante três dias, além de uns medicamento coadjuvantes. Começo, deste modo, o fim-de-semana, incomodado, mas apenas isso. Tivesse febre e o caso seria outro, pois, nunca percebi porquê, mal o termómetro se lembra de passar a fronteira dos 37 graus e se aproxima perigosamente dos 37,5, sinto-me doente até à raiz do meu eu. Isto deveria ser uma vergonha. Talvez o seja, pois raramente deixo que a febre venha sobre mim. Há que evitar fazer figuras tristes perante terceiros. Já ouvi dizer a vários entendidos – isto é, a várias entendidas – que isso é coisa de homens. Uma mulher, diz esse coro trágico de sabedoras, pode ter 40 graus e resiste, um homem chegado ao tenebroso marco dos referidos 37,5 e está às portas da morte. Não sei qual a verdade destas constatações, embora desconfie que mais do que em evidências empíricas, se fundam nas velhas cantigas medievais de escárnio e maldizer. Seja como for, estou pronto para lutar e combater o dragão da febre, antes que ele dê razões para fornecer um assentimento empírico a essa mitologia zombadora da redundante virtude viril (as duas palavras têm a mesma raiz – vir, homem em latim – o que significa que apenas os homens podem ser virtuosos) dos homens.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Cultivar lugares-comuns

Nota-se bem que os dias estão maiores. A melhor coisa é começar com um lugar-comum, na ausência de uma ideia rutilante e inovadora. Os lugares-comuns, ao contrário do que se pensa, são coisas interessantes e estão longe de serem aquilo de que são acusados. Têm, diz-se, um odor sulfuroso a falta de originalidade, superficialidade e conformismo. Ora, um lugar-comum é um sítio onde entramos em comunidade. Dizer lugares-comuns é incentivar a comunhão, evitando a excentricidade de querer parecer original. As próprias originalidades só o são num contexto comum, num oceano repleto de lugares-comuns. Mesmo a sua superficialidade é aparente, pois uma superfície pode ser apenas a face visível daquilo que é profundo. Se tivesse talento para tal, faria do lugar-comum uma arte. E aqui devíamos considerar a distinção entre arte autêntica e arte degenerada. A arte degenerada é aquela que apresenta, através dos retorcidos da originalidade, aquilo que é o mais banal dos lugares-comuns. A arte autêntica é a que mostra como um lugar-comum o que é absolutamente original. Para esta arte falta-me o talento, que talvez me sobre para a outra. Independentemente destas considerações, a verdade é que os dias estão maiores e vão continuar a crescer até que, após um instante de pausa, comecem a diminuir. E nisto está a tragédia humana – ou a comédia. Mergulhados num mundo cíclico, uma promessa de eterno retorno, somos seres lineares, onde o fim não coincide com o princípio. Isto também é um lugar-comum, pois é fado que partilhamos com todos.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Ignorância ignorante

Começo com uma citação: Na falta de saber, escrevo. Isto não foi pensado por mim, mas aplica-se-me completamente. É a ignorância – uma ignorância que, ao contrário da de Sócrates ou da de Nicolau de Cusa, não é douta – que me motiva para ir escrevendo estes textos. Caso tivesse alguma sabedoria, teria vergonha deles e agiria em conformidade: não os escreveria. Como se sabe, a ignorância ignorante é atrevida. Transcrevi o pensamento de um outro, embora esse outro não se saiba bem quem é. O texto onde a frase está escrita é atribuído a Bernardo Soares, talvez também possa ser imputado a Vicente Guedes. O autor, porém, é Fernando Pessoa, mas suspeito que ele tinha vergonha dos seus textos e os atribuía a personagens que inventava ou que lhe eram reveladas em sonhos. A frase citada pertence a um fragmento que se inicia em tom polémico: A metafísica pareceu-me sempre uma forma prolongada da loucura latente. A polémica não nascerá da associação entre metafísica e loucura. Reside noutro lado. Será que a metafísica é uma forma de loucura latente ou, na verdade, uma forma de loucura manifesta? Essa loucura seria latente se os metafísicos fossem mudos e não escrevessem, mas logo que falam e dão à estampa as suas obras, não é possível objectar à natureza manifesta da loucura que é a essência da metafísica. Tudo isto tem um triste corolário. Além de loucos, os metafísicos, ao escreverem, são ignorantes. Como a minha metafísica está ao nível daquela que é dita como única por Álvaro de Campos, a de comer chocolates, só partilho com os metafísicos a ignorância, deixando a loucura só para eles. Eu, ao comer chocolates e escrever frivolidades, sou são, inteiramente sadio e saudável, de espírito.

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Viagens no século XVII

Quase toda a gente ouviu falar de Isaac Newton, o pai da física moderna, essa disciplina que nasce de um casamento – talvez ainda hoje considerado espúrio – entre a física – na época, filosofia natural – e a matemática. O registo do casamento pode ser encontrado num documento de 1687 com o título Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica, isto é, Princípios Matemáticos da Filosofia Natural. A verdade, porém, é que estas duas áreas já tinham sido observadas em ardente concubinato por Galileu Galilei, santo patrono dos cientistas, que morreu em 1642, precisamente o ano em que nasceu Newton. Ora, este teve interesses muito mais amplos do que a física, assunto que apenas ocupa cerca de 20% dos seus escritos. Cerca de 30% são ocupados com a alquimia e os restantes 50% com a teologia. O grande interesse de Newton parece ser, tendo em conta o volume produtivo, a teologia e não a física. O século XVII foi uma época estranha para nós que chegamos ao mundo três séculos depois. Um outro caso interessante está ligado à medicina – ou talvez à física. Trata-se da transfusão de sangue. Um tal Arthur Coga, cavalheiro desvairado, homem muito excêntrico e extravagante, formado em teologia pela Universidade de Oxford, permitiu que fosse usado numa demonstração pública, na Royal Society, de transfusão de sangue. A teoria, tal como conta Lisa Jardine, era que a transfusão curaria o desvairado cavalheiro da sua insanidade. O doador de sangue foi uma jovem ovelha, o que levou Coga a afirmar que estava a receber o sangue do cordeiro, isto é, o sangue de Cristo. A experiência foi realizada pelos doutores Lower e King, e foi um autêntico sucesso. E o sucesso maior, diga-se, os estimáveis e ousados anatomistas não o perceberam. Que a transfusão não tenha sido fatal para o extravagante Coga foi uma grande sorte. Num relatório, o dr. King esclarece que correu tudo muito bem, um sucesso, verificado por mais de quarenta pessoas. O paciente até bebeu um ou dois copos de vinho das Canárias e fumou uma cachimbada. Foi para casa, estando muito sóbrio e tranquilo, mais do que antes. Vistos com os nossos olhos, tanto os interesses de Newton por áreas tão díspares ou as experiências aventurosas no âmbito das transfusões de sangue são coisas da mesma índole do desvairado Arthur Coga, extravagâncias. Quando daqui a três séculos, os homens de então, caso os haja, olharem para os nossos feitos, que extravagâncias descobrirão eles? Todas as épocas têm dentro de si incontáveis excentricidades, mas só muito mais tarde chegarão aqueles que o descobrem, talvez para terem motivo de riso. O destino dos homens é serem ridículos aos olhos de alguém que virá muito depois e que os olhará com olhos que não vêem aquilo que os seus viram.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Falta de tempo

Imagino que seja um problema de falta de tempo. Tenho sobre o tampo da secretária três romances, todos norte-americanos, com largas centenas de páginas. O mais pequeno caminha para as setecentas, o intermédio quase chega às novecentas e o maior avizinha-se das mil. Corria no meu tempo de estudante a história – talvez não apócrifa – de que um antigo professor daquela casa, pessoa que nunca conheci, na defesa da tese de doutoramento se desculpou perante o júri do volume da tese, citando Pascal ou Voltaire, talvez Mark Twain: Não tinha tido tempo para a fazer mais pequena. Foi o que pensei ao manipular estas obras. Devem ser autores muito ocupados. Não tiveram tempo para escrever romances mais pequenos. É verdade que algumas obras-primas do século XX são enormes romances, alguns inacabados, por falta de tempo. Quando se tem tempo, põe-se um travão à expansão do universo romanesco e, se o tempo crescer, deve-se mesmo obrigar a que entre em retracção. Percebe-se que muitos romances dos nossos dias tenham dimensões colossais. Não serão poucos os autores que pensarão: o tempo não dá para nada.

domingo, 12 de janeiro de 2025

A precisar de repouso

Muito me cansam os fins-de-semana passados fora para descanso. Chego a casa exausto, a precisar de repouso. A minha inclinação é evitar estas actividades de retempero da energia, mas há que fazer cedências e ter a esperança de que, desta vez, se descanse mesmo num fim-de-semana de descanso. O problema reside na perspectiva com que se anuncia o acontecimento. Se tivesse sido anunciado como um fim-de-semana de actividade intensa, estaria neste momento a escrever que, afinal, não foi assim uma actividade tão violenta. Pelo contrário, até se relaxou um pouco. Talvez se pudesse mesmo dizer que se voltou a casa revigorado. O problema são as expectativas: são elas que desenham o horizonte e acabam por influenciar o juízo avaliativo que se faz. Depois de um fim-de-semana destes, falece-me a imaginação, a energia é diminuta e a vontade de fazer seja o que for é nula, incluindo a de escrever. Vou descansar do descanso.

sábado, 11 de janeiro de 2025

Ciprestes

Está um belo entardecer, com um sol animado e uma temperatura amena. Os campos que se avistam do sítio onde me encontro estão verdejantes, e uma melancolia suave envolve toda a realidade, onde pontuam velhos ciprestes, que não desistem de apontar para o alto. Olho-os e penso que são árvores de outra época, na qual as coisas elevadas eram dignas de culto. As coisas belas são difíceis, pensava Platão, mas a nossa época prefere a facilidade. Está cheia de facilitadores, de gente que facilita aquilo que é fácil. Ao desprezar a beleza – os artistas, nas suas muitas revoluções, pretenderam matar a beleza, despojar a arte da sua presença – e o difícil, o fácil torna-se difícil, e o acesso fácil agora difícil precisa de ser facilitado. Talvez por isso os ciprestes sejam árvores pouco amadas. Haverá quem diga que esse pouco amor está ligado à sua presença nos cemitérios, à sua associação com a morte. Servirá como desculpa, mas a força retórica com que o cipreste fala aos humanos, uma força muito mais incisiva do que qualquer outra árvore, cujos ramos se lateralizam, torna-se excessiva para uma audiência incapaz de perceber que nem tudo no mundo se equivale, que a ignorância não é a mesma coisa do que a sabedoria ou a douta ignorância, que a verdade e a falsidade têm significados diferentes, ou que a beleza e a fealdade não são uma mera questão de gosto subjectivo. Vou dar um passeio e contemplar os ciprestes.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Um dia gasoso

Os dias continuam no estado gasoso. Evaporam-se, como descobri aqui no outro dia. A meio da manhã saí da cidade onde me acolho e fui almoçar com as minhas netas a Campo de Ourique, num pequeno restaurante no Jardim da Parada. Antes de ser restaurante, era um café, onde ia uma vez por outra. Elas estavam cansadas. Uma semana de aulas deixam os alunos exaustos ou, talvez, estejam já consumidos antes de as aulas começarem. Um almoço sem conversas escolares, para animar os espíritos e deixar o spleen adolescente a pairar ao longe. Depois, as horas passaram, a noite, como um exército determinado, fez ressoar as suas botas cardadas e tomou de assalto a fortaleza do dia, um dia triste, com uma atmosfera húmida, carregado de cinza. Passei por uma livraria e comprei a tradução portuguesa, saída em Agosto do ano passado, do Parménides, de Platão. Além do diálogo, o livro tem ainda as Cartas. Ora, é o começo da carta oitava que tem potencial para deixar o leitor perplexo: Farei o possível por vos elucidar acerca dos vossos próprios sentimentos, a fim de que se vos torne deste modo possível levar uma vida perfeita e feliz. Imagino que seja necessário possuir uma enorme presunção para pretender elucidar alguém dos seus próprios sentimentos. E não bastando isso, supor que tal elucidação possibilitará ao elucidado levar uma vida não apenas perfeita, mas também feliz. Se Platão tinha esta pretensão de psicoterapeuta, não admira que, com o desenrolar dos séculos, os elucidadores de sentimentos e agentes da perfeição e felicidade alheias se tenham tornado legião. Pena é que Platão não tenha seguido a sabedoria do seu mestre Sócrates e declarado que sobre os sentimentos dos outros – e mesmo dos próprios – só sabe que nada sabe. Teria sido um grande contributo para a humanidade.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

O dia de hoje

Uma quinta-feira cheia de tarefas, ainda por cima começada, ainda não eram oito e meia, com a visita dos funcionários de uma empresa que montou, há umas semanas, uma nova caldeira aqui em casa. É uma caldeira cheia de sensores e, por isso, muito sensível. A sensibilidade é tão apurada que decidiu dar erro e não trabalhar, o que me fez passar em branco o duche matinal de ontem e me deixou uma sensação de impureza durante todo o dia. A vinda dos técnicos foi uma boa notícia, a que se adicionou o restabelecimento do dispositivo na sua função. Quando se foram embora, coisa que não foi fácil, respirei aliviado e dirigi-me para o duche matinal, embora a manhã já fosse a meio. Depois, como um mortal entre mortais, tive de providenciar a maneira de pagar as contas e fiz-me à vida, pois múltiplas empresas me esperavam. Fi-las com a sensação de pureza que um bom duche proporciona, como se tivesse acabado de ser baptizado no Rio Jordão. Chegado a casa, saí de imediato para me consolar no café aqui ao lado, pertença agora de um casal de brasileiros, em que ela tem um enorme talento para fazer bolos, múltiplos bolos, combinações requintadas de sabores, todos de uma grande leveza e sem excesso, mas também sem defeito, de açúcar, tudo na justa medida aristotélica, nesse meio-termo virtuoso que torna as coisas valiosas. Raramente, mas muito raramente, me entrego a este despropósito à tarde, mas o dia de hoje obrigou-me a um exercício de consolação. Teria aventuras para contar, as quais engrandeceriam a minha gesta, mais heróica que a do Cid e mais alucinada que a do Quixote, mas guardo isso para quando escrever as minhas memórias, caso não as perca pelo caminho. Por hoje, registo apenas o dragão em forma de bolo que espetei com um garfo e devorei com os dentes com que fui dotado e aqueles que fui adquirindo.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Metamorfoses

No pouco que vejo de televisão, consegui encontrar dois equívocos fonéticos cujas consequências só se explicam a partir das metamorfoses descritas por Ovídio. A coisa conta-se em poucas palavras. Num caso, um homem é transformado numa cidade; no segundo, outro homem, com uma casa ilustre, é transformado em marca de atum, senão mesmo em atum. Páris, aquele que ofereceu o pomo da discórdia, raptou Helena, enfureceu os gregos e desencadeou a guerra de Tróia, foi tomado por Paris, a velha capital francesa, que, no tempo de Alexandre, o outro nome de Páris, ainda não existia. Talvez a troca fonética, neste caso, faça ainda parte do castigo imposto por uma das deusas preteridas pelo dito Páris, talvez Atena, talvez Hera, quando decidiu entregar a maçã dourada a Afrodite, o que significava que a escolhera como a mais bela das três. Um homem avisado não se meteria nessas alhadas e, caso fosse coagido, adiaria o julgamento até que o caso prescrevesse. A outra situação de dissonância fonética está ligada a uma festa fúnebre, a trasladação dos restos mortais de Eça de Queirós para o Panteão Nacional. Alguém, ao elencar as  obras do escritor, lembrou-se de referir a Ilustre Casa de Ramirez. Nem a casa, nem o Ramires fizeram mal algum merecedor da metamorfose. O caso explica-se pelo apetite da locutora. Enquanto lia a lista, deu-lhe a fome e pensou numa sandes de atum. Do atum passou, por metonímia, para Ramirez, marca que ela usa no lar, e uma casa ilustre torna-se parte de um plano para montar um negócio de sandes. A locução nas televisões tornou-se, quando se trata da língua portuguesa, num dos lugares mais criativos. E ainda há quem fale na televisão como um dispositivo de alienação.

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Uma tarde gasosa

A tarde evaporou-se; nem sei como, nem porquê. O uso da ideia de evaporação pode parecer bizarro, mas é congruente com os tempos que vivemos. Segundo um conhecido sociólogo polaco, Zygmunt Bauman, vivemos na modernidade líquida. Se ele tem razão, faz sentido pensar que as tardes, bem como as manhãs e as noites, sejam também líquidas, pois pertencem a um mundo líquido. Como é que  uma substância em estado líquido se transforma em vapor? Em termos genéricos, isso acontece por absorção de energia térmica. Foi o que aconteceu à minha tarde de hoje. Ela, devido às transformações ocorridas na modernidade, como ensinou Bauman, passou do estado sólido para o líquido, ainda antes de nascer. E assim continuaria se fosse uma tarde normal. Seria um rio a deslizar com a suavidade para a foz, onde entraria, pelo delta do crepúsculo, no oceano da noite. Contudo, de uma maneira inexplicável, começou a absorver energia térmica, até que passou para o estado gasoso. Nessa altura, sentei-me aqui e disse: a tarde evaporou-se. Fosse eu sociólogo, radicalizaria a visão do mundo moderna recebida de Bauman. Vivemos na modernidade gasosa. Esta transformação na configuração do sistema-mundo foi prenunciada – se não mesmo anunciada – em Portugal, na indústria e comércio de refrigerantes. Quando era criança e adolescente, não havia coca-cola, bebida proibida de entrar no país, mas havia laranjadas e gasosas, que tinham mais gás que uma botija de 13 kg. Foram estas que anunciaram a nova fase da modernidade que acabei de cunhar. Há um momento de pré-anúncio, mas de que não me lembro. Trata-se do pirolito, uma bebida gaseificada, cuja garrafa tinha um engenhoso método de fechamento. Uma bola de vidro, pressionada pelo gás da bebida – imagino que uma mistela – fechava a garrafa. Contudo, nunca entrei em contacto com pirolitos. Também as gasosas não eram coisa com que me desse. Se queremos perceber como tardes, noites e manhãs se evaporam, há que estudar a indústria refrigerante e o antigo mercado de pirolitos e gasosas. Uma arqueologia do estado gasoso do mundo.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Viagem sem fim

Terão já chegado ao estábulo? Estou a falar dos Reis Magos. Hoje é Dia de Reis. Ora, há duas interpretações possíveis do dia. Uma seria a comemorativa. Comemora-se um evento que se imagina ter acontecido. Uma outra diz que é o dia em que os Reis Magos visitam mais uma vez o Menino nascido a 25 do mês passado. Não seria um dia de evocação, mas de realização. A primeira interpretação, a interpretação literal, reduz as narrativas religiosas a acontecimentos históricos. Isso coloca um terrível problema de atestação, a qual é impossível. A outra, a interpretação simbólica, é um caminho, não para uma rememoração, mas para descoberta daquilo que se oculta nos símbolos. A visitação dos Magos não é um facto, mas um símbolo, e qualquer símbolo é um jogo onde os opostos coexistem. O caminho será meditar nos opostos que o símbolo da visitação contém, e não são poucos. Cada um poderá começar por aquele que lhe seja mais manifesto. Depois encontrará outros, numa viagem que pode não ter fim.

domingo, 5 de janeiro de 2025

Da permanência

Presumo – mas presunção e água benta, cada um toma a que quer – que S. Pedro, o CEO da grande multinacional que gere o clima neste planeta, tenha tido necessidade de mostrar quem manda e de pôr a concorrência no devido lugar. Tomem lá um domingo de Inverno. Recebemo-lo de bom grado, pensando que assim as coisas estão no seu devido lugar. Quando acordei de manhã – já não era muito, muito de manhã, o que contraria os meus hábitos – ventava com violência, numa aliteração que fazia pensar em vendavais. Há pouco, as ruas foram fustigadas por aguaceiros fortes, que se interrompiam, anunciando uma era de paz, mas logo voltavam, como se as ruas ainda não estivessem suficientemente limpas. As almas, mesmo as mais enlameadas, estavam recatadas, evitando encontros com a água purificadora caída dos céus. O resultado de tudo isto é uma afirmação da permanência contra a mudança: S. Pedro permanece CEO da empresa climática, e eu permaneci em casa, sem vontade de ir à rua. Já basta, amanhã, ter de ir fazer uma visita ao mundo exterior que me espera.

sábado, 4 de janeiro de 2025

Tempo de farsa

Em 1881, Nietzsche publicou um livro com o título Morgenröte (Aurora, em tradução portuguesa). Considera, a certa altura, que, nesses dias, o poder dos costumes foi surpreendentemente enfraquecido. Mais à frente, esclarece o que pretende dizer: onde não há tradição a comandar, não há moralidade; e, quanto menos a vida é regida pela tradição, menor é o alcance da moralidade. A moralidade e os respectivos princípios não seriam outra coisa do que um longo hábito. A tradição seria a colecção desses hábitos que domam as existências individuais para as submeter ao grupo. E isso, por influência da ciência moderna, está posto em causa. Neste momento, um pouco por todo o Ocidente – pois isto é um negócio ocidental –, deparamo-nos com um espectáculo curioso e, na verdade, risível. As pessoas gemem pelos costumes, votam em defesa dos costumes mortos, dos bons velhos costumes, elegem os trapaceiros que lhes prometem trazer de volta a moralidade dissolvida pela morte dos antigos costumes. Ao mesmo tempo, não estão dispostas a dispensar os benefícios da ciência e, ainda menos, os da indústria. Ora, aquilo que mata as tradições, os velhos costumes, os hábitos instalados, é a ciência e a indústria, o casamento entre o conhecimento e a economia de mercado. Todas as revoluções industriais destruíram hábitos enraizados. Como essas revoluções se sucedem cada vez mais rapidamente, os hábitos destruídos estão cada vez menos enraizados. O sentimento de perda será cada vez menor, mas isso torna a vida mais inquietante, pois o próprio passado perde força. A reacção contra a primeira revolução industrial foi muito mais violenta do que contra a revolução trazida pela informática. Isso significa que o passado era um consolo ainda potente para acalmar os espíritos perdidos, expulsos do paraíso pré-industrial. O romantismo não foi outra coisa senão uma revolta e uma modalidade de consolação. A revolução em curso, a da Inteligência Artificial, não vai gerar nenhum romantismo, mas apenas farsas sem fim, onde se grita pelos velhos costumes enquanto se abraça aquilo que os destrói. Este é o nosso tempo: o da farsa.