sábado, 20 de março de 2021

Das coisas abstrusas

Um sábado em que toda a manhã foi dedicada a coisas abstrusas que fazem parte da realidade em que, por vezes, sou obrigado a existir. Não é que goste particularmente da palavra abstruso. Não é esteticamente agradável. No entanto, sempre senti uma certa afinidade com ela. Como se pode ver num dicionário, vem de abstrūsu, particípio passado do verbo latino abstrudĕre, que significa ocultar. Abstruso não significa, todavia, oculto, mas obscuro, impenetrável, desordenado. Dito de modo mais directo, dediquei-me ao caos, esse estado de coisas que se suspeita estar mesmo à porta do cosmos. Mal uma pessoa se descuida, e tudo se torna abstruso, um caos. As palavras contam histórias. Por vezes, nos meus devaneios, imagino que, sob a capa da sua utilidade comunicativa, elas escondem verdadeiros romances, que literatura alguma haverá de igualar. Com ser de palavras que sou, sempre me pareceu de uma estultícia inominável o dito uma imagem vale mil palavras. Quem se dedica a dizer essas coisas não sabe que sob o som de uma palavra se escondem não mil, mas milhões de imagens, que, com um simples sopro vocálico, são atiradas ao vento, semeadas pela Terra e por aí ficam a germinar, enquanto uma imagem morre no momento da sua eclosão. São quase sete da noite, o crepúsculo invadiu a cidade, as crianças, que ainda não pensam em palavras, gritam no parque e eu continuo preso a coisas abstrusas.

sexta-feira, 19 de março de 2021

Mistérios do mundo

Qual é o exacto momento, o exacto minuto ou segundo, em que uma pessoa ascende à categoria de velha ou de adulta? Qual é número preciso de grãos de areia que constituem um monte de areia, para que a subtracção de um deles faça com que um monte deixe de ser aquilo que é? Estas coisas têm preocupado os homens desde há muito e, ainda hoje, há pessoas que lhe consagram a vida. Percebo-as muito bem, pois também me dedico a coisas sem sentido. Caso não tivéssemos as palavras monte e velho, esses magnos problemas que dobram a cerviz da humanidade não se colocariam. Aliás, parte dos problemas que nos afligem não existiria se fôssemos privados de linguagem. Por exemplo, eu não existiria. Um narrador é um mero ser de linguagem, uma entidade feita de palavras que se combinam mais ou menos ao deus-dará. O parque infantil já foi reaberto. Famílias trazem os filhos para que estes possam gritar enquanto escorregam e se baloiçam. Um dia, serão eles que levarão os filhos a um parque infantil, para que eles gritem, enquanto escorregam e se baloicem. Também eu já fui levado ao parque infantil, para gritar enquanto escorregava e me baloiçava. Qual é o exacto instante em que alguém deixa de ser criança com idade para ser levado a um parque infantil? Um dia antes ainda podia ir? O mundo está cheio de mistérios.

quinta-feira, 18 de março de 2021

Conversas de nada

Quando dei que hoje ainda não tinha preenchido esta espécie de diário, já passavam das oito da noite. Nunca tive tentações diarísticas. Na verdade, não se passa nada comigo que mereça ser registado, mas um acaso levou-me a alimentar este blogue. Registo aqui não o que me sucede, mas o que me passa pela cabeça. Há uns que nascem para Ulisses e Aquiles, outros para santos ou políticos, outros para escritores ou pintores. Eu não nasci para nada, e é de nada que eu falo. Como se manifesta para mim, perguntará o eventual leitor, o nada. O nada não se manifesta, mas aquilo que me passa pela cabeça é um sintoma desse nada. São coisas desconexas, como este texto, ou as declarações que faço dizendo que vou fumar um cigarro. Irei? Se a realidade fosse a luz, o nada seria a noite, mas talvez a realidade não seja apenas a luz e, assim, a noite não será nada, mas alguma coisa. Quando estou cansado, as sinapses começam a ocorrer em ritmo perturbado, como se houvesse um desvario neuronal. Isto, caso me tenham sido concedidos neurónios, coisa que, para ser sincero, duvido bastante. Se me deram, foram uns neurónios velhos e defeituosos. Bem chega de falar de nada. A noite vista da janela do escritório está magnífica, apesar das luzes e do enorme anúncio a uma cadeia multinacional de hambúrgueres que se veio instalar diante da minha janela, ainda que a algumas centenas de metros.

quarta-feira, 17 de março de 2021

Das coisas vagas

Diante de mim tenho um livro com o estranho título de Vagueness. Os que se preocupam com o assunto em Portugal traduzem o conceito por vagueza. É uma palavra horrível. Além do seu desprimor estético, ela é uma palavra vaga, vaguíssima. Diria mesmo que não há coisa mais vaga do que a palavra vagueza. Um dos sintomas da minha humanidade é ter embirrações com palavras. Olho para uma palavra e, sem saber bem porquê, começo a embirrar com ela. Por exemplo, a palavrava empreendedorismo gera em mim ataques de urticária. Não é o que se passa com vagueza. Nesta irrita-me a sonoridade, o facto de rimar com magreza. Seja como for, eu sou uma pessoa cordata e não tenho por hábito embirrar com pessoas. O que também não será uma virtude, pois, como ontem me disse a minha filha, se alguém se mandasse de um sexto andar e caísse ao meu lado, eu não daria por isso ou, caso desse, não me meteria na vida da pessoa. É agora que deve entrar a expressão popular andou um pai a criar uma filha para ouvir coisas destas. Os pais nunca imaginam o que vai na cabeça dos filhos. Não tarda, terei de entrar dentro da realidade. Espera-me uma maratona de coisas que não me interessam para nada, que ainda são mais vagas do que a própria vagueza, a que terei de assistir por videoconferência, uma maldição inventada por inspiração do maligno. Antes queria dedicar esse tempo a estudar o que diz o livro cujo título tem o estranho nome de Vagueness. Assim fosse.

terça-feira, 16 de março de 2021

O grito do Ipiranga

Oiço o sexto livro de Madrigais de Carlo Gesualdo, Príncipe de Venosa. Melhor, os madrigais do sexto livro. O compositor destas extraordinárias obras era, literalmente, um assassino. A distância entre o sublime e o macabro é muito mais curta do que pensamos. Nem se pode dizer que tenha sido movido pela paixão amorosa, mas apenas pela fria fogueira da honra. Pode ser que, penso-o caridosamente, naqueles dias, a honra ainda aquecesse os corações. Consta que toda a vida de D. Carlo esteve em conflito com a sua música, mas isso será um modo superficial de ver o assunto. A sua música sublime terá nascido como apaziguamento da desarmonia que o habitava. O dia, como o de ontem, tem estado estival. Uma luz exuberante, agora a declinar. Devia ir caminhar, desentorpecer as pernas, respirar o ar puro dos campos, caso ainda exista ar puro nos campos. O que desejava, na verdade, era andar perto do mar, agora que não há turistas, nem veraneantes, apenas as pessoas de ocasião. A realidade, sempre pronta para me contrariar, não me o permite, e eu aceito as coisas como elas são, com resignação, sem tentações de dar o grito do Ipiranga. Nada, porém, me ajuda nessa libertação. Não sou um D. Pedro e o rio que passa aqui não se chama Ipiranga, fosse eu outro e o rio, o certo, haveria de se ouvir a mil quilómetros o urro que daria. Assim, limito-me ao grito mudo do quadro do Munch. O expressionismo ficar-me-á melhor que o romantismo independentista e liberal do D. Pedro. A conversa hoje está muito voltada para príncipes e reis, e eu que sou republicano. Talvez seja um republicano não praticante.

segunda-feira, 15 de março de 2021

A realidade desconfina-se

Depois de almoço, fui ver o correio e aproveitei para dar uma volta pela rua. Havia já sinais de desconfinamento. Da escola primária vinha o alarido de crianças a correr e a gritar. Um ou outro estabelecimento ensaiava a venda ao postigo, mas o verdadeiro desconfinamento que encontrei, e esse preocupou-me, foi o do calor. A temperatura inclinava-se não já para a Primavera, mas para um Estio precoce. Eu sei que a maioria vive na ânsia estival e entrega-se a longas fantasias com esse tempo que, a mim, parece, muitas vezes, uma anunciação do inferno. Também é um facto que sou, enquanto narrador destas tristes narrativas, dado à hipérbole. Talvez o Verão não anuncie o inferno, mas apenas um purgatório um pouco exacerbado. Há aqui dois problemas que não vou tentar deslindar. Nem a psicologia perante o clima nem a teologia das comparações são assuntos que mereçam a minha meditação. No bosque na escola ao lado, uma escola ainda vazia, as árvores não mexem. O vento que se anunciava vindo do Norte suspendeu a sua correria em direcção ao Sul. Olho para a rua e a realidade parece-me falsificada, um cenário incompetente de um cenógrafo realista.

domingo, 14 de março de 2021

A vertigem do tempo

Março atingirá amanhã o meio do mês. A natureza do tempo sempre confundiu os homens. Tentaram domesticá-lo através do calendário, mas ele sempre se mostrou avesso à vida doméstica. O tempo é um animal selvagem, uma flor silvestre. Melhor, o tempo é uma vertigem, na qual se mergulha e onde nunca se encontra equilíbrio. Um dicionário afirma, talvez sem pudor, que o tempo é sucessão de momentos em que se desenrolam acontecimentos. Penso de imediato que se nada acontecesse não haveria momentos a sucederem-se uns aos outros, logo não haveria tempo. Contudo, julgo que os acontecimentos se propuseram acontecer apenas para que o tempo exista e nos trazer à existência para logo nos varrer para o passado. Este é, na verdade, o caixote do lixo para onde são enviados os detritos das coisas que ocorrem. Ficam lá até que os homens do lixo os ponham no camião e os queimem numa incineradora de resíduos perigosos. Devia ter pensamentos mais risonhos, hoje que é domingo e as famílias saem à rua para apanhar sol e deixar as crianças espairecer, para que os adultos espaireçam também eles. A Páscoa aproxima-se e será feita de afastamentos, proibições de circular e avisos sobre os perigos que espreitam por aí. Fez-se na rua um grande silêncio, nada acontece e o tempo suspendeu a sua marcha. Os momentos foram abolidos, mas retornarão como um vírus. No friso das orquídeas, todas estão em flor, num concerto de cores que cresce para dentro dos olhos e desencadeia na consciência estranhas e silvestres melodias.

sábado, 13 de março de 2021

Viver em vários tempos

Pela primeira vez desde que começou o confinamento fui comprar laranjas ao campo. Um comércio arcaico e contemporâneo. Arcaico porque se funda numa relação directa entre produtor e consumidor, sem esse gigantesco exercício a que se dá o nome de intermediação. Contemporâneo porque é feito ao ar livre, o que conjugado com o uso de máscaras, estará de acordo com as normas de segurança contra os vírus perigosos que a contemporaneidade trouxe. Nunca deixa de me maravilhar o facto de num mesmo instante se poder existir em várias épocas. Talvez cada um de nós viva constantemente em diversas eras, apesar de não ter consciência disso. Talvez sejamos construídos por fatias de tempo, que se vão mesclando dando a ilusão de serem um único e mesmo tempo. Depois de comprar laranjas, fui ver o meu neto. Brincámos um pouco, mas as distâncias ainda são grandes. Quase metade da vida dele foi passada em pandemia. Agora, deixo cair a noite sobre os ombros e escuto os rumores da cidade e a música de Morton Feldman. As peças para piano são construídas por hiatos ostensivamente perspícuos entre as notas, então estas parecem emergir do nada e afundar-se nesse mesmo nada de uma forma tão nítida que torna patente o quão finita é a realidade. Como é hábito, falo do que não sei, mas se as pessoas falassem apenas do que sabem, a espécie humana seria muda.

sexta-feira, 12 de março de 2021

Pequenos nadas

A vida está cheia de jogos florais. Foi o que me ocorreu há pouco quando passei os olhos pela imprensa. O facto de serem florais não dá a esses jogos um aroma aprazível. Muitas vezes, o cheiro é nauseabundo e sob o florilégio encontramos cadáveres em decomposição. Não devia escrever estas coisas, logo hoje que é sexta-feira e o fim-de-semana se apresta para entrar com a sua túnica de enganos. Na rua, brilha um sol pouco convicto, mas isso deve-se aos tempos que nos foram dados viver. Acabaram-se as grandes narrativas, as que geravam férreas crenças e inabaláveis convicções, abundando pequenas narrativas sem nexo, a que as pessoas emprestam, por instantes, o seu crédito, para logo as esquecerem e comprarem outras que exibirão nas próximas horas. Quem quer saber da Quaresma e dos rituais preparatórios da Páscoa? Tudo isso pertence a um passado que, visto da estância balnear do presente, não passa de uma sombra. Coisas importantes mesmo são a abertura do cabeleireiro ou do restaurante. Nisto não há nenhuma censura da escala de valores que guiam as gentes. Pelo contrário, também eu aspiro a poder ir a um restaurante. A vida é feita de pequenos nadas.

quinta-feira, 11 de março de 2021

Meditações inúteis

Dou comigo, por vezes, a perguntar-me como chegam, os compositores, à música que compõem. Ouvi-la-ão dentro de si? Resultará de conexões abstractas de tipo matemático? Nunca li nada sobre o assunto e talvez existam múltiplos processos de composição. Uns mais concretos, outros mais abstractos. Haverá uma ideia a priori daquilo que vai ser composto, ou a composição vai emergindo, as partes posteriores fundadas nas anteriores, num jogo de tentativas e erros? O que vale para a música valerá para qualquer outra arte? O pintor verá na mente aquilo que pintará, ou o quadro vai emergindo de um nevoeiro inicial? O dia está nítido, apesar de sombrio. Ora aquilo que agora é plenamente visível proveio de uma zona de trevas, a que damos o nome de noite. Dessa zona de escuridão, a realidade que agora observo foi-se libertando pouco a pouco, até se tornar visível, clara e nítida. Não devia ter comido chocolate, ocorre-me. Não comi muito, mas o suficiente para sentir que foi demais. Será a feitura do chocolate uma arte como a música ou a poesia? O artesanato foi separado drasticamente da arte, mas talvez seja possível pensar num chocolate ou numa refeição como uma performance e fazer entrar no domínio da arte aquilo que se dirige ao sentido do gosto. O melhor é deixar de lados estas meditações, as quais fazem parte da minha colecção de pensamentos inúteis e sem nexo. Esperam-me para um evento online. O que é justo, pois sou já um ser virtual.

quarta-feira, 10 de março de 2021

Causalidade nula

Às oito horas desta manhã completámos o primeiro terço do mês de Março. Depois de escrever a frase olho para ela e descubro dois enigmas, qual deles o maior. Por que motivo a terei escrito? Aquela informação serve para quê? Não faço ideia por que razão a escrevi e muito menos sei para serve a informação nela contida. A maior parte das coisas que faço são desta natureza. Não sei o seu motivo e desconheço a sua finalidade. Dito de uma forma aristotélica – para dar impressão de erudito – desconheço a causa eficiente e a causa final. Desconheço-me e desconheço os objectivos que deveria perseguir. Enquanto escrevo estas sensaborias, vou escutando um CD de Heiner Goebbels, Ou Bien le Débarquement Désastreux. Quem ouve esse tipo de música, dirá o leitor, o mais natural é sofrer de falta de causalidade. Nem causa eficiente, nem causa final, mas também terá perdido a causa material e a formal. Já passou à condição de puro nada. O que é um narrador? Um ser de papel? Ora, o que é um ser de papel? Um puro nada, uma nulidade ontológica. Acho que vou fumar um cigarro para ver se ma passa este delíquio. Há palavras extraordinárias como delíquio – quase uma onomatopeia – ou cerúleo. São palavras que contêm uma certa imperfeição prosódica, mas isso apenas lhe realça a beleza que as habita.

terça-feira, 9 de março de 2021

Como era tranquilo o mundo

A Primavera irrompeu por dentro do Inverno. As pessoas, cansadas do confinamento, precipitam-se nas ruas, passeiam devagar sob a luz solar, como se quisessem aspirar cada onda luminosa que chega a este pobre planeta. A minha neta mais velha, que está a passar cá a semana, interrompeu-me a meditação. Se lhe podia imprimir um trabalho que vai apresentar amanhã na aula online. Seis páginas sobre o Titanossauro da Patagónia, um lagarto gigantesco e, pareceu-me, feioso, dado a uma dieta de vegetais. Como era tranquilo o mundo quando as pessoas pensavam que as espécies eram fixas, que tinham sido criadas naquela azáfama divina dos seis dias, e que tudo estava explicado. Agora, as pessoas podem ter pesadelos com animais disformes que, vindos do início dos tempos, aterram dentro dos sonhos, para os poluir com o terror daquilo que é estranho. A terça-feira entardece por dentro das árvores, que logo projectam pelo chão longas sombras, como se chamassem a noite. Ela virá, trazida pelo vento, e eu anoitecerei mais um pouco. Num livro vejo escrito uma vida não examinada não merece ser vivida. Talvez Sócrates tivesse proferido a frase no seu julgamento, talvez tenha sido um dinossauro que, naqueles dias intérminos onde nada acontecia, se tenha lembrado dela ou mesmo um dragão dado ao ócio. Tudo é possível neste mundo.

segunda-feira, 8 de março de 2021

Um sentido difuso

Há dias em que tudo tem um sentido difuso articulado por uma lógica também ela difusa. O espírito vagueia nem sabe por onde, mas qualquer tentativa de focagem, qualquer esforço em direcção à nitidez é repelido pelo corpo. Na verdade, nunca se sabe lidar com esse animal que nos coube em sorte. Pensamos que está domesticado e logo ele se entrega a desejos silvestres. Julgamo-lo vivaz e ele caminha sonâmbulo. Não admira que os homens se sintam estranhos perante essa carne em que têm de viver. Umas vezes, endeusam-na. Outras, diabolizam-na. A sabedoria, penso, seria não dar por ela. A semana começou e um cortejo de coisas inúteis, mas inadiáveis, perfila-se diante de mim. Deveria protelá-las até as esquecer, mas elas não se deixam cair no oblívio. Oiço música para piano de Debussy, mas não me sinto menos difuso. Olho pela janela, a escola ao lado permanece abandonada. Numa rotunda ao longe, os carros giram sem parar. Ainda mais longe, os fungos cobrem de cinzento e preto as paredes brancas do hospital. Em tudo, porém, há uma sensação de difuso, de falta de contorno, como se a realidade não passasse de um esboço. Talvez não passe. Talvez não.

domingo, 7 de março de 2021

Olhar de esguelha

Tive de sair para ir a uma farmácia. Esta frase é muito diferente da que diz: tive de sair para ir à farmácia. Nesta última, a farmácia é a que se vai sempre ou quase, aquela que um longo hábito a tornou a farmácia por antonomásia. Uma farmácia é a que resulta de uma procura motivada pelo encerramento dominical da outra, da autêntica. As farmácias são dos estabelecimentos que ainda resistem à infidelidade contumaz que as grandes superfícies trouxeram. Em tempos, os clientes estabeleciam relações de proximidade com os estabelecimentos do pequeno comércio. Conheciam os proprietários e os empregados. Por vezes, eram clientes, porque os pais já o tinham sido. Agora, ninguém é fiel ao hipermercado ou à empresa que vende electrodomésticos. Paga-se menos pelos produtos, mas as relações sociais ficaram mais pobres, mais abstractas e mais deslassadas. Perde-se o espírito de comunidade e os indivíduos tornam-se átomos guiados apenas pelos seus interesses. Nem sei o que me deu para esta deriva sociológica. O domingo está um dia indeciso, como muitas vezes acontece em Março. Vai variando entre um sol já quente e um céu nublado. Os dias estão bem maiores e nas ruas começa a espalhar-se o aroma da Primavera. Vi pouca gente, mas como fiz a viagem de carro e relativamente cedo, pode ser que a minha impressão esteja enviesada. Aliás, enviesamento é o que não falta nas minhas opiniões. Ando sempre a olhar de esguelha.

sábado, 6 de março de 2021

Lentidão neuronal

Em vez de me meter no carro, fui a pé fazer uma visita familiar. Com o balanço decidi andar um pouco pela cidade. Nunca imaginei que existissem tantos laboratórios de análises clínicas, oculistas, clínicas dentárias, clínicas médicas. Também as farmácias que, durante muitas décadas, foram apenas quatro, quase duplicaram, para não falar no surgimento das parafarmácias. Parece que a população tem diminuído, mas a oferta de cuidados de saúde não pára de aumentar. Isto significará que há muito mais gente doente. Eu sei que este raciocínio é capcioso, mas depois de uma caminhada de seis quilómetros, apanhando algum sol, tudo se torna permitido. A luz solar é necessária para a produção de vitamina D, embora pertença a um grupo cujos organismos produzem por si a vitamina em causa. Espero não apanhar uma overdose. Passei a manhã em videoconferência. Quatro horas online não se recomenda a ninguém, ainda mais com uma idade provecta como a minha. O resultado é ter ficado vazio, sem assunto, não por falta e interesse do evento, mas porque, aproximando-se a Primavera, os meus neurónios tornam-se ainda mais lentos a fazer sinapses, chegando mesmo a suspender toda a actividade, como é o caso. Do que não se pode falar, o melhor é ficar em silêncio, como dizia alguém, a quem não faltava astúcia.

sexta-feira, 5 de março de 2021

Se a noite cai rapidamente

Por vezes, as pessoas entram pela casa da velhice e enlouquecem. Não porque fiquem loucas, mas porque a realidade começa a desfigurar-se, a perder o contorno. Então, os patamares mais recentes caem e as pessoas retrocedem dentro da memória. Vão cada vez mais depressa em direcção à infância. Enquanto correm, a sua vida vai desabando pelo precipício do esquecimento. O que era familiar torna-se estranho. É como se se caminhasse para a morte recuando no tempo, apagando os vestígios da vida, os grandes acontecimentos que as marcaram deixam de existir. Apagam os próprios filhos, a começar pelos mais novos. Isto disse-me há pouco ao telemóvel o padre Lodo. Diz que tem medo de ficar assim, pois foi assim que a sua mãe perdeu a noção do tempo e começou a viagem para o passado. Ele era o mais velho e foi aquele que mais persistiu na memória da mãe, mas chegou um dia em que ela lhe perguntou quem era ele. Não tinha chamado nenhum padre. O que me vale, continuou, é que, se perder a noção do tempo, não tenho filhos para esquecer. Depois, mudando de assunto disse-me estar farto desta pandemia, do temor instalado, de não poder juntar-se com os amigos. Talvez a virtude da paciência me esteja a faltar, acrescentou. A noite já desceu com o seu silêncio envolto na seda fria da escuridão. Medito nas palavras do meu amigo e compreendo-lhe o temor, apesar de não lhe faltar sanidade mental e física. Hoje é sexta-feira, o fim-de-semana ainda não chegou e já parece acabado. Um dos pássaros meus vizinhos cantou. Talvez seja esse o único imperativo que nos ordena a natureza, cantar, mesmo se a noite cai rapidamente.

quinta-feira, 4 de março de 2021

Um problema de máscaras

Está um dia sonolento. Boceja, resmunga e esfrega os olhos. O que significará aqui a palavra dia? Será o período em que a Terra recebe claridade solar ou aquele durante o qual o nosso planeta – talvez sejamos mais dele, do que ele nosso – dá uma volta completa sobre o seu eixo? Num caso, o dia exclui a noite. Noutro, inclui-a. Nunca se pensa nestas coisas, mas toda a gente, sem pensar nelas, sabe distinguir dia de dia. Se quisermos complicar, ainda podemos notar que dia significa era e também o estado atmosférico. É uma espécie de heteronomia ao contrário. Enquanto Fernando Pessoa se desdobrou em múltiplos nomes, aqui várias realidades tomam o mesmo nome. Isto significa que existem várias estratégias de disfarce. Numa, a mesma coisa toma várias máscaras. Noutra, várias coisas adoptam a mesma máscara. Um caso flagrante de homonímia. Como se pode ver, qualquer conversa vai dar ao problema da pandemia. Sem saber como, já estou a falar de máscaras, como se estivesse na Grécia antiga e discutisse sobre teatro. Tenho de confessar uma coisa. Não é o dia que está sonolento. Sou eu. Atacado pelo sono, não consigo parar de escrever disparates, coisas que não interessam a ninguém. Há tantas coisas interessantes para escrever, e logo a mim haveriam de caber estas. Cada um tem o que merece, oiço dizer. Sempre me pareceu que a meritocracia era uma conspiração contra mim, pobre narrador de narrativas destituídas de senso e sentido. Vou dormir uma sesta.

quarta-feira, 3 de março de 2021

Mundos cruzados

O mais espantoso deste mundo é ser composto por vários mundos que se cruzam formando um tecido policromático. Tive de ir a uma outra cidade fazer uma tomografia axial computadorizada. Para chegar ao destino utilizei os serviços de GPS do telemóvel. Talvez por se estar na Quaresma ordenaram-me para ir em jejum, um daqueles jejuns que se faziam noutras épocas. Depois de formalidades sanitárias – apontaram-me para a testa um revólver que mede temperaturas e passei as mãos por álcool gel – e burocráticas, depois de alguma espera em que fui lendo, no meu eReader, um romance, lá vou para uma sala cuja porta tem o sinal de perigo de radioactividade. Sem contador Geiger, enfrento a ameaça. Deito-me numa marquesa e obedeço a duas estimáveis raparigas, que, apanhando-me deitado, ligam-me a uns eléctrodos e picam-me os dedos e as veias de um braço. É para introduzir o contraste, dizem. Lá me deixo contrastar. Olho a máquina cilíndrica e penso que vou ser criopreservado, mas é falso. Vão apenas bombardear-me com radiação atómica. Devia ter trazido o contador Geiger, é o que penso enquanto entro e saio do túnel. Está acabado, dizem. Pergunto-me se o acabado sou eu ou o exame. Desligam-me. Pode ir embora, dizem sorridentes, pois imagino-lhes o sorriso sob a máscara. Agradeço. Depois de todo este tempo no mais admirável dos mundos novos, vou para o carro e desembrulho uma sandes trazida de casa, certo que não haveria aonde comer e beber café, como se fizesse um daqueles piqueniques de que falava o Cesário Verde. Pena que não houvesse qualquer burguesa a descer do burrico, que sem posturas tolas colhesse um ramalhete rubro de papoulas. Os tempos cruzam-se, é verdade, mas perde-se sempre qualquer coisa pelo caminho. Neste caso, a aguarela.

terça-feira, 2 de março de 2021

Vai por aqui um arraial

Pela praceta vai um arraial. Não, não se trata de uma festa ao gosto popular por ocasião de alguma romaria, nem um acampamento de tropas inimigas que venha pôr cerco ao castelo. É apenas um grupo de crianças trazidas pelas mães para gastarem as energias físicas e exercitarem a sonoridade da voz em hipérboles estridentes. Bem as percebo, às mães. Terem filhos pequenos todo o dia em casa está muito para além da capacidade de os gerar. Entre o prazer da concepção, se o houve, e as dores do parto, a vida está suspensa. O pior é o crescimento das crias, as metamorfoses do corpo e as mudanças de humor, tudo em territórios exíguos, mesmo que os apartamentos tenham excelente dimensão. Os corpos pequenos precisam de grandes espaços, onde possam crescer e bolsar pelas cordas vogais o espanto pela existência. Ouve-se, agora, a voz cava de um pai. Parece que veio trazer um princípio de ordem. A algaraviada continua, enquanto a tarde se desfaz em neblina e, a coberto das nuvens, se prepara para se deixar cair nos braços da noite. Calma, calma, diz a voz de baixo do pai ordenador. Um rapaz grita que é bola ao ar. Talvez seja. Quando a vida se interrompe também se há-de mandar a bola ao ar, para que ela retome o seu andamento, até que um apito assinale um fora-de-jogo ou o fim da partida.

segunda-feira, 1 de março de 2021

O dever de anotar

É difícil uma pessoa adaptar-se às novas circunstâncias. Julga que vive como há vinte ou trinta anos, mas a realidade é tão crua que não se faz rogada em desmentir a presunção. Ao marcar um exame médico, deram-me uma série de indicações para cumprir no dia anterior. Nem as escrevi, convicto de que me lembraria delas. Agora que o dia se aproxima dei por mim sem saber o que fazer e a ter de ligar para a clínica, com papel e caneta para escrever aquilo que devia ter escrito. As faculdades, pensei, vão se apagando uma a uma. A natureza não é destituída de sabedoria. Olhei pela janela, o telhado branco do pavilhão desportivo da escola ao lado reverbera, batido pelo primeiro sol de Março. Senti uma súbita vontade de ir ver o mar, de me sentar numa esplanada e assistir ao infinito jogo das ondas, à passagem dos barcos, ao voo das gaivotas. A praia que me repele no Verão chama-me no Inverno. Ali posso escutar o murmúrio de tudo o que é, deixar-me prender ao ir e vir das águas para tocar naquilo que se esconde para lá da cortina preta das coisas visíveis. Anoto que a partir de agora tenho o dever de tudo anotar. Talvez estes textos sejam anotações daquilo que tenho o dever de anotar.