quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Uma vida plácida

Depois de uns dias na capital, retornei manhã cedo ao lar. Ao chegar, constatei que a cidade não apenas não mudara de sítio como continuava com a mesma cara. A constatação tranquilizou-me. A partir de certa idade, as mudanças tornam-se todas elas suspeitas. Não vale a penas virem atirar-me à cara que não possuo alma de revolucionário. É um facto. Quando era novo, muito novo, pensava que era revolucionário e que haveria de mudar o mundo. No entanto, havia sinais que, estivesse eu atento a eles, me indicavam que a minha índole era outra. Por exemplo, se frequentava um café, gostava de me sentar sempre na mesma mesa. Se ela estava ocupada, sentia em mim uma certa contrariedade. Se me deslocava habitualmente a um certo sítio, escolhia sempre o mesmo percurso em vez de me pôr a inovar. Com isto está provado que além de não ser um revolucionário, também não sou um inovador, coisa que agora está muito na moda. Não há cão nem gato que não o queira ser, embora a falta de talento da maioria desses candidatos a inovadores seja uma segurança para quem como eu é adepto de uma vida plácida. A noite já pousou sobre a cidade e abrigou-a com o negro das suas asas. O pior é a falta de chuva. Não tarda, a península que nos coube em sorte torna-se um deserto. É o que dá o ímpeto revolucionário e o espírito inovador. Fosse o clima conservador e ainda hoje teríamos quatro estações, agora nem sabemos ao certo quantas são.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Dia sabático

Hoje decidi oferecer-me um dia sabático. Não fazer rigorosamente nada. Fui almoçar fora e passear numa tapada para apanhar sol ou, quando este estava muito quente, para me proteger na sombra de velhas árvores. Descobri que muitas outras pessoas se tinham oferecido a si mesmas um dia sabático. Hoje não tive videoconferências, nem reuniões intérminas, nem admiráveis discussões sobre o sexo dos anjos ou o melhor modo de salvar o mundo ou as pessoas, ou sei lá eu o quê. Um dos males deste planeta é estar pejado de gente que se representa como super-herói. Por norma, estas pessoas, sempre prontas a descortinar causas de salvação, são daquelas que fazem o mal e a caramunha. Como se vê, contínuo, mesmo em dia sabático, a cultivar expressões ao gosto popular. Foge-me o pé para a chinela, quero eu dizer. Tanta aparência de erudição, mas a verdadeira cultura de base é aquela composta por máximas, provérbios e ditos do mais trivial senso comum. Aproveito para esclarecer que senso comum e bom senso não são a mesma coisa. Apesar de certo e importante pensador, um dos pais da modernidade, afirmar que o bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo, pois não há quem julgue que precise de mais do que aquele que possui, apesar disso, dizia, o bom senso é uma coisa bastante incomum. O comum é as pessoas terem pouco sentido das coisas. Têm um olhar enviesado sobre a realidade. Eu também o tenho, mas é um enviesamento hiperbólico. Olho de lado e vejo tudo aumentado, embora quando olhe para mim de esguelha não consiga ver na minha pessoa um super-herói. Poderia ser um super-homem, mas tenho medo da kryptonite e de que ande por aí algum Lex Luthor à minha caça. Vou agora ver deslizar o dia, olhando para as águas de Tejo a fundirem-se no mar, à espera que as minhas netas cheguem. Enquanto o rio flui, vou ler mais umas páginas da Ogawa. Isto é permitido em dia sabático.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Pedir chuva

A seca agrava-se, leio. Não se pode ter tudo, não se pode ter sol na eira e chuva no nabal. Neste caso, ou se tem um Janeiro primaveril ou se tem água nas barragens. Se houvesse um regulador da natureza, tudo era mais fácil. De dia, havia sol; de noite, chovia e as barragens enchiam-se de água. Como ninguém me pediu conselho, agora as coisas estão como estão. Avanço vagarosamente na leitura do romance de Yoko Ogawa, A Polícia da Memória. Tudo se passa numa ilha sem nome e a obra parece inscrever-se na categoria das distopias. Nessa ilha, as coisas desaparecem e com esse desaparecimento vão-se também as memórias delas. O papel da polícia da memória é assegurar que não persistam memórias daquilo que desapareceu. Ao não-ser não deve corresponder seja o que for. No início do século XVI, Thomas Morus escreveu Utopia, de certo modo inspirado na República platónica. Apesar da ironia do nome, a obra representa uma visão benevolente de uma sociedade humana, uma espécie de ideal orientador inscrito na génese da modernidade. Se olharmos para o século XX, o que encontramos são distopias, uma visão negra das possibilidades humanas. Serão uma confissão literária da falência do projecto da modernidade. Nem sei o que me deu para me dedicar a este tipo de conjecturas. Deveria ir apanhar sol e aproveitar estes dias em que a chuva se entrega a uma greve sem fim à vista. Também, um mundo onde fizesse sempre sol e nunca chovesse poderia acolher uma distopia literária. À minha frente estende-se uma belíssima tapada. Árvores centenárias, animais, pessoas passeando. O pior é a falta de chuva. Outrora, ouvia-se muito a expressão estás mesmo a pedir chuva. Parece que sim.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Perversões de Janeiro

Janeiro acaba hoje, lá para a meia-noite. Um mês pervertido, de maus hábitos, a fazer passar-se por aquilo que não é. O que tinha ficado combinado, quando foi feita a distribuição dos meses pelas estações, era Janeiro ser um mês de Inverno, com chuvas copiosas, águas a correr peãs cidades e pelos campos, talvez inundações, sabe-se lá mais o quê. Nada disso. Janeiro agora é Primavera, árvores a florir, passarinhos a cantar, um sol vigoroso. À noite está frio, claro, mas os dias são uma antecipação do que está para vir. Hoje é um dia particularmente pesado. Voltaram as videoconferências, uma espécie de exercício penitencial adequado a quem tem muitos e graves pecados, embora existam videoconferências para todos os gostos. Umas são rápidas, sem considerações sobre o importante tema do sexo dos anjos. Outras, porém, são exercícios ferozes de angelologia, onde o assunto principal é o do sexo dos mensageiros divinos. Há quem esteja fascinado por esse sexo etéreo e sobre ele derrame as mais profundas especulações. Não tenho a certeza, mas será a casos destes que se aplica aquele comentário acintoso que proclama: Freud explica. Na verdade, Freud não explica nada há muito, muito tempo, mas é pena. Ontem deu-se o desfecho da campanha eleitoral. Encerradas as urnas, pode-se dizer que a campanha – uma alegre campanha – não focou muitos dos assuntos mais excruciantes que afectam este cantinho à beira-mar plantado. Por exemplo, o desconcerto das estações, elas que deveriam suceder-se em ritmo concertante, ou a razão por que há tanta gente disposta a gastar a vida dos outros a discutir o sexo dos anjos. Os nossos políticos de todos os quadrantes eximiram-se ao dever de discutir coisas destas que atrapalham a vida de toda a gente. Uma pena e uma oportunidade perdida.

domingo, 30 de janeiro de 2022

Uma questão de almas

Hoje é domingo e, devido a um hábito contumaz, o almoço será tardio. A meio da manhã recebi uma chamada do padre Lodo. Já fui votar. Desde que adquiri nacionalidade portuguesa, não falhei uma eleição, acrescentou. Sou devoto da democracia, apesar de jesuíta. Ao dizer isto começou a rir-se. Temos má fama, continuou, mas somos uma companhia moderna. Aqui, foi a minha vez de me rir. Modernos, então não são um pilar da contra-reforma? O que lá vai, lá vai, respondeu ele. Depois, começou a evocar a sua Itália, a família. Um dia destes vou fazer uma visita. Querem vir comigo, perguntou, como quem faz um convite. As minhas netas estão um pouco aceleradas. Desde que têm um cão, tratam-no como se fosse um irmão. O bicho olha para mim desconfiado, não devo ter ar de pertencer ao clube dos adoradores de animais. A verdade é que não me passaria pela cabeça fazer de avô de um cachorro. Devo ser um especista do pior, mas, apesar de defender que os seres humanos têm deveres rigorosos para com os animais e até para com as árvores, não julgo que se lhes deva dar direito de voto. Sobre este assunto partilho a visão do padre Lodo, que apesar de ter o seu gato de estimação, não admite a ideia de uma continuidade entre espécies. Costuma dizer que admira Darwin, mas que um homem é um homem e um gato é um gato. E os gatos não têm alma, para logo acrescentar: não têm alma imortal. Por analogia, também acho que o cachorro das minhas netas não terá uma alma imortal. Aproxima-se a hora de almoço.

sábado, 29 de janeiro de 2022

Dia de reflexão

Até eu, um mero narrador, estou em dia de reflexão. Em vários sítios tenho encontrado um feroz argumentário contra este dia anteposto aos actos eleitorais, no qual as pessoas se recolhem e se colocam diante do espelho para este as reflectir. Como é público, eu não me meto em política e não tenho opiniões políticas. Estou proibido pelo autor. Contudo, não posso estar mais em desacordo com todos aqueles que vituperam a existência deste magnífico tempo, no qual, depois de ouvirem e de estudarem as múltiplas opções que a pátria tem para cumprir aquilo que é determinado por Bruxelas, as pessoas se entregam a um tenaz exercício da sua razão crítica para determinar, se for esse o caso, a quadrícula do boletim de voto onde irão colocar um X. E este acto – o de colocar um X – deveria produzir uma grande indignação, pois discrimina os homens, os machos da espécie. Estes deveriam ter direito a colocar no boletim de voto um Y. Pouco corajosos, temendo que o Y corresponda a um voto nulo, lá cedem na sua masculinidade e, nesse momento crucial em que escolhem o destino da pátria, feminilizam-se e em vez do verrumante Y pespegam no papel o doce e harmónico X. Não faço ideia se a Comissão Nacional de Eleições permite que se expresse este tipo de problemas, mas há que correr riscos. Hoje está um dia de Primavera por aqui. Fui à rua e senti as pessoas acabrunhadas. Deve ser o peso da reflexão, ainda não sabem em que quadrícula hão-de fazer o X, pensei. Antes de encerrar este assunto, gostaria de sublinhar a perspicácia do legislador que, nos anos 70 do século passado, decidiu um dia de grande serenidade, digamos de bonança política, antes daquele em que as urnas se abrem e se fecham. Faz-me lembrar aqueles momentos de súbita calmaria no mar que antecedem as terríveis tempestades.  O legislador era, de facto, perspicaz, mas também dado ao exagero e ao drama. Tinha uma visão teatral da política, não percebendo que vivemos no mundo moderno, numa época onde a burocracia ocupou o lugar do encantamento mítico. Tudo depende da contabilidade e não das vontades ínvias dos deuses. Agora, vou continuar a reflectir, mesmo que um narrador, um mero ser de papel, não tenha direito de voto. Outra injustiça, não bastava já o banimento dos Y, também os narradores – sejam X ou Y – foram banidos.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Fim de reclusão

Passada a semana de reclusão, lá me vi atirado para a rua, obrigado a perambular por aqui e por ali, perdido entre outros transeuntes, também eles a deambular sem destino. Constatei, não sem alguma tristeza, que nada tinha mudado. Sete dias não são tempo suficiente para haver mudanças, dir-se-á e eu concordo. Contudo se sete dias não são tempo suficiente para haver mudanças, também oito não o serão, mas se oito não são… O leitor já está a ver a onde leva esta história. A isto dá-se o nome de paradoxo de sorites. Ainda falta qualquer coisa, mas deixemo-nos de paradoxos. Tenho uma série de coisas desagradáveis para ler, bem como outras não mais agradáveis para escrever. Para comemorar o dia da libertação, acabei por passar por uma livraria e, para enriquecer a minha pobre biblioteca, trouxe de lá os romances A Polícia da Memória, da japonesa Yoko Ogawa, e Tomás Nevinson, do espanhol Javier Marías. Segunda a crítica, este será o seu melhor romance. O pior é que são 650 páginas, um tijolo. Chega de procrastinar.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Sem-abrigo cinematográfico

Hoje passei o dia a trabalhar, apesar de continuar em isolamento covidiano. Amanhã, é dia de soltura. Durante estes sete dias, o vírus foi benévolo. Não por causa da minha super-imunidade, mas das três doses da vacina. Sem elas, não sei o que aconteceria. Foi ainda benévolo de outra maneira. Retirou-me a vontade de ler, o que me permitiu ter tempo para ver cinema. Não entro numa sala de cinema desde que a pandemia começou. Aliás, já tinha diminuído as idas. Por norma, só ia ao cinema quando estava em Lisboa. Ali frequentava as salas da Medeia Filmes, no Monumental, no Saldanha Residence e no King. Eram as que passavam o cinema de que gosto e onde não havia gente a comer pipocas. A certa altura, fecharam as salas do Saldanha Residence. Depois, fechou o King. Por fim, fecharam as salas do Monumental. Senti-me um sem-abrigo cinematográfico. Quando fui estudar para Lisboa, a sensação era o Quarteto, que, na altura, tinha uma selecção de filmes para um público com um certo olhar, digamos assim. O tempo passou e tudo aquilo se degradou. Já não sei em que sala foi, mas uma noite fui a uma estreia de um filme de João Botelho, salvo erro. Chegada a hora de começar o filme, nada se moveu. Os minutos começaram a passar sem dó nem piedade, os presentes perguntavam-se pelas razões do atraso, mas não havia quem confessasse, até que passado bem mais de meia hora entra na sala o Presidente da República e mulher. Estava explicado, mas havia uma incongruência. Como seria possível um militar não cumprir o horário? Fosse aquilo uma guerra e Portugal tinha perdido por falta de comparência. Do filme, já não me lembro. Tenho a vaga sensação que uma das actrizes era a Maria de Medeiros, em início de carreira, mas já não juro.

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Sem traço

Continuo em isolamento, mas aproxima-se o dia da libertação. É preciso que o vírus continue a cooperar como tem feito até aqui. Tanto quanto sei, os vírus são criaturas voláteis, caprichosas, possui idiossincrasias que nem sempre se deixam interpretar. Até hoje, apenas me permitiu ver cinema. A leitura cansava-me. Trabalhar, ainda me deixava em pior estado. Hoje, porém, estive toda a manhã a cumprir os imperativos que a necessidade me impõe. Daqui a pouco volto para a azáfama. Olho para as ruas, mas acho-as irreais, um sol de cor indefinida, uma mistura de palha e melancolia. Uma máquina troa, os adolescentes gritam à espera do começo da aula no Centro de Línguas. Reparo que as acácias da praceta foram podadas. Rebentarão mais vigorosas. No correio chegou-me um livro de Augusto Abelaira, comprado num alfarrabista. Abro-o, percorro-o e sinto uma certa desilusão. Não tem nenhum traço do antigo proprietário. Uma dedicatória, um bilhete esquecido entre as páginas, uma reflexão, nada. Arrumo o livro, dou uma volta pela casa, olho para o friso das orquídeas e espreito o castelo ao longe. O tempo passa sem se importar com as orquídeas, os castelos, os vírus e os isolados. Mentalmente, registo o que tenho para fazer ainda hoje. Espreguiço-me e bocejo. Vida de isolado. Ao menos, podia ter ido para a Trapa ou para a Cartuxa, para esses lugares de grande silêncio. Medito no assunto e decido que vou ver um filme. Depois, terei tempo para acabar as tarefas de hoje.

domingo, 23 de janeiro de 2022

Sem energia, o termómetro

Nem sei se este é o terceiro ou o quarto dia de reclusão forçada. Será que a quinta-feira conta como reclusão? Quando descobri que o vírus tinha marcado encontro comigo já era noite e não fazia qualquer intenção de sair de casa. Acho que não vou contar esse dia. A relação com o vírus tem sido amistosa, apesar do PCR ter confirmado a situação. Não sei se é um dos sintomas ou apenas um dano colateral, mas ontem vi três filmes do Eric Rohmer, A Coleccionadora, O Joelho de Clara e Amor às Três da Tarde. Dizia para mim, estou com pouca energia, o melhor é ver um filme. Hoje, domingo de sol pouco exuberante, espero não me perder pelos fantasmas morais e eróticos do realizador. Sempre posso ver um filme, mas o melhor é não exagerar. Olho para a minha secretária e parece que sou um hipocondríaco. Não sou. Tenho, em cima dela, um termómetro, um oxímetro e um medidor da tensão arterial. Estar rodeado por tanta tecnologia digital mostra bem como sou um homem moderno, embora, confesso, dispensasse de bom grado o termómetro digital e voltasse para os braços do velho termómetro de mercúrio. Este termómetro irrita-me. Primeiro que o coloque em situação de medir a temperatura demora o seu bocado. Depois, posto debaixo do braço, devo retirá-lo quando ele der sinal, mas o pobre tem uma vozinha tão débil que muitas vezes nem consigo ouvi-lo. Por fim, acho que sofre de anemia. Devolve-me temperaturas na ordem dos 36, 35,5 ou mesmo dos 35 graus. Falta-lhe energia, para lidar com a realidade. Também a mim.

sábado, 22 de janeiro de 2022

Antigénio e PCR

Está sol. Vejo-o através dos vidros da janela. Sou um isolado a tempo inteiro. Há alturas em que ando de máscara em casa, desinfecto as mãos antes de tocar em coisas que podem ser tocadas por outros. Ainda não recebi o resultado do teste PCR. Pode vir hoje ou, disseram-me, mesmo no domingo. E se der negativo? Não conheço nenhum caso em que um teste de antigénio feito em casa dê positivo e que o PCR o desminta, e eu não fiz um teste caseiro, fiz dois. O mais curioso de tudo isto é que escrevo antigénio e PCR com a maior das naturalidades, como se fossem coisas por mim conhecidas ainda antes de nascer, com o eram as Ideias ou Formas, segundo Platão. Ora, não faço a mínima ideia do que seja o antigénio ou PCR. Há muitas décadas, havia, numa certa escola que frequentei, um professor conhecido pelos os alunos como o Biótico. Os próprios alunos autodesignavam-se como antibióticos. Talvez o antigénio seja uma pilhéria de alguém contra os génios. Estas coisas nunca se sabem. Já o PCR faz-me lembrar a sigla de um partido político, o que se coaduna com a época de eleições em que estamos mergulhados. Vais votar em quem? No PCR, e tu? Seja como for, entre antigénios e PCR, tenho de estar confinado. As principais ocupações, até agora, são tomar paracetamol e beber água. Embora não esteja prescrito, o vinho não está proscrito, penso eu. Outra ocupação é escrever patetices, mas isso não vem de agora, nem tem por causa os testes positivos à COVID. É anterior. Tem-me animado não ter perdido o paladar. Sendo assim, posso meditar que tinto vou abrir para o almoço, que há-de chegar tarde, por circunstâncias exteriores ao actual estado de coisas. Mais logo, espero ver um novo filme de Eric Rohmer. Ontem vi dois, O Signo do Leão e Pauline na Praia. Não há nada como isolamentos e confinamento para alargar a cultura cinematográfica.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Positivo

Há pouco, com receita do SNS, fui a um laboratório para que me escarafunchassem o nariz. Tudo isto porque tive a ideia de deixar aqui em casa que me metessem uma zaragatoa pelas narinas e num passe de mágica tinha, perante os olhos, aquela coisa, por onde desliza um líquido imundo, com dois traços a vermelho. Positivo, exclamei. O melhor é repetir o teste, alvitraram. Respondi que não, que acreditava na veracidade do teste, mas lá anuí. Tornou a dar positivo. Em solidariedade comigo, a minha neta mais nova também testou positivo hoje de manhã. Uma coisa não tem a ver com a outra, pois já não nos vemos há umas semanas e ela está a mais de 100 km de distância. Até aqui, na família próxima tinham existido dois casos. Agora, já vão em quatro e talvez existam mais. Por causa das coisas, pedi que me comprassem um oxímetro. Pensei que fosse um investimento, pois parece que não livramos desta história nos próximos tempos. A sexta-feira tem estado luminosa, fazendo lembrar um belo dia de Primavera, mas não passa de um arremedo de sexta-feira. Tirando a saída para realizar o teste PCR, estou preso em casa, a tomar paracetamol. Enquanto a coisa for assim, não está mal. Aproveitei a manhã para ver A Minha Noite em Casa de Maud, de Eric Rohmer. Se tudo correr bem, tenho uns dias para dedicar ao cinema de Rohmer, para rever coisas já vistas ou para ver outras nunca vistas. Vamos lá ver se o vírus coopera.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Bibliopatologia

Na caixa de email, uma livraria online respeitável oferecia-me vários cursos, entre eles o de biblioterapia. Descobri que existem já biblioterapeutas que se propõem curar os maus hábitos dos portugueses relativos à leitura. Eu percebo que todos temos de ganhar a vida de um modo ou de outro, e trabalhar para criar hábitos de leitura noutros é profissão tão respeitável como qualquer outra. Aborrece-me a ideia subjacente de patologia. Não ler deixa de ser a ausência de uma certa virtude moral e passa a ser uma doença que é preciso tratar. Este tipo de abordagens tem por consequência eliminar a responsabilidade de cada um perante si e os outros e, concomitantemente, a liberdade. O acto de ler ou não ler deixa de ser uma escolha livre e passa para o domínio da saúde e da doença. Eu gostava muito de ler um livro, mas sofro da doença da não leitura, paciência. A liberdade passa então para outro domínio. Frequentar ou não uma biblioterapeuta. Serei virtuoso se, perante a falta de apetite pela leitura, me predispuser ao tratamento, e vicioso se recusar tratar-me. O problema que se coloca, porém, é se a recusa em se tratar não será também uma doença a exigir uma terapia específica. Como se pode observar, estou com uma enorme falta de assunto. Nada de notável para narrar. Minto. As orquídeas começam a dar sinais de vida. Algumas têm já vários botões. Ainda não temos um mês de Inverno e já por aqui se anuncia a Primavera. Talvez as orquídeas sofram de uma patologia temporal. Haverá terapeutas para esse mal?

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Caso perdido

Encontro sempre as mais mirabolantes justificações – ou desculpas – para gastar dinheiro em livros. No domingo, encomendei uma obra na FNAC online e hoje fui levantá-la à fnacquezinha que temos nesta pequena cidade. Trata-se da Fenomenologia do Espírito, de Hegel, na tradução do professor Barata-Moura. Tenho a intenção de pegar no livro e entregar-me aos devaneios idealistas do senhor Georg Wilhelm Friedrich, ir da certeza sensível até ao saber absoluto? Nem por isso. Então, diz-me a consciência, por que raio compraste esse tijolo que exige mais três centímetros de prateleira? Porque tenho um coração inclinado ao patriotismo, respondi. A consciência, não se ficou e retorquiu, citando o celebrado dr. Samuel Johnson, o patriotismo é o último refúgio do canalha. Foi nisso que te tornaste? Por Deus, exclamei e passei à explicação. Temos um mercado de bens culturais escasso, muito escasso. Ora, sempre que é traduzida uma grande obra da literatura universal ou da filosofia – embora esta não seja outra coisa senão literatura – eu disponho-me a comprá-la, mesmo que não me disponha a lê-la. Isto por solidariedade com o tradutor e o editor. A consciência olhou-me de lado e perguntou-me se eu queria arruinar-me. Aqui eu sorri e perguntei, de forma enfática, arruinar-me? Em primeiro lugar, são escassas as grandes obras universais. Depois, ainda são mais escassas – e lentas – as suas traduções. Há tempo para recuperar de qualquer extravagância. O patriotismo está aqui, acrescento, no contributo para alargar o mercado de bens a que os portugueses não são particularmente sensíveis. A consciência encolheu os ombros e olhou-me como se eu fosse um caso perdido. Sou-o, claro, mas não mais que qualquer outra pessoa, real ou virtual.

domingo, 16 de janeiro de 2022

Cura de águas

Leio que há quem pense, e propague aquilo que pensa, que beber água em jejum tem um extraordinário efeito curativo. Isto, para além de ser de prevenir as doenças que, caso não sejam evitadas, hão-de exigir uns quanto jarros de água matinais. Se pensa que as maleitas tratadas a água são daquelas que se curam com aspirina ou paracetamol, então está enganado. São doenças terríveis como a taquicardia, os problemas cardíacos, a diabetes, a meningite, o cancro. Não sei o que é mais espantoso, se a facilidade com que algumas pessoas acreditam seja no que for, ou a imaginação delirante que inventa estas curas milagrosas e tem artes para as propagar. Depois de dois séculos de triunfo do Iluminismo, as luzes da razão parece que estão fundidas e não há quem mude as lâmpadas. Se eu fosse estatístico e me entretivesse a recolher dados para com eles estabelecer correlações, tenho quase a certeza – mas ter quase uma certeza, ainda não é ter certeza alguma – de que existe uma correlação entre o crescimento do conhecimento racional e o crescimento da superstição. Não me atrevo, até porque hoje é domingo, a dizer que o desenvolvimento da potência da razão é, ao mesmo tempo, a causa do crescimento das aberrações da superstição. Se fosse um dia da semana, talvez tivesse coragem para o afirmar. Assim, pois hoje é domingo, restrinjo-me a uma mera sugestão. Não se pense que falo destas coisas por falta de assunto. Motivos para falar não me faltam, até porque tive ao almoço a visita do meu neto. Não veio só, claro, mas para um avô os netos vêm em primeiro lugar e brilham de tal maneira que ofuscam todo o resto. Quando ele está comigo entrego-me a actividades úteis, como fazer construções com o Lego ou corridas de automóveis, em vez de me deixar arrastar por estranhos pensamentos que me hão-de perder. A tarde avança a galope, não tarda chega o crepúsculo anunciador das trevas nocturnas. Amanhã, a realidade volta. Uma chatice. Vou beber um copo de água, talvez me cure da doença da realidade.

sábado, 15 de janeiro de 2022

Política-gramática

O sábado sumiu-se. Rio-me da aliteração. Na prosa, dizem, deve-se evitar a aliteração, ao contrário da poesia. A verdade, porém, é que gostamos muito de regras. Umas ordenam, outras proíbem. Bem, dir-me-ão, isso não são regras, mas imperativos. As regras apenas aconselham. Concedamos que assim seja. Isto significa, contudo, que trazemos atrás de nós ou dentro da nossa consciência, o que vai dar ao mesmo, um conselho consultivo, cuja finalidade é alvitrar as regras a usar em cada instante. Hoje, devido a um desígnio imperscrutável, fui almoçar à Nazaré, praia a onde muito raramente vou. Julgo que desde a última vez que lá fui passaram vinte anos. No Sítio, antes de poder olhar para o vasto oceano deparei-me com uns carros de onde saíam pessoas com bandeiras. Eram de um partido que o líder de um outro classificou há dias como interjeição. Havia no cortejo qualquer coisa de melancólico, uma tristeza que só encontro nos circos pobres, com os seus artistas fanados e à beira do colapso. Seja como for, talvez seja uma boa introdução à política utilizar a gramática como fonte de classificação. Teríamos os partidos-interjeição, os partidos-adjectivo, os partidos-artigo definido ou indefinido, os partidos-substantivo, os partidos-conjunção, os partidos-advérbio, os partidos-verbo. Neste caso, uns seriam partidos-verbo de encher e outros partidos-verbo de despejar. Toda a política seria uma política-morfológica e, quando se tratasse de alianças e oposições entraríamos na política-sintaxe. Seja como for, não estou autorizado pelo autor a emitir opiniões políticas. Um narrador, ouço-lhe constantemente, não tem opinião política, embora nunca me tenha falado da política-gramática. No restaurante, encontrei um casal conhecido com a família, onde pontuava uma bebé de dois meses. Eles recém-promovidos à categoria de avós pareciam pairar sobre os mortais. Compreendo-os muito bem. Não há na hierarquia familiar estatuto como esse, nem aliteração ou assonância que o ensombre, ao estatuto.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Atacadores

As sextas-feiras chegam e partem a uma velocidade galopante. Parecem cavalos de corrida e nós, seres humanos, não passamos de infelizes jockeys que não sabem se conseguem equilibrar-se no cavalo, quanto mais refreá-lo, fazer com que o animal se contenha num passo vagaroso.  Passei o dia envolto em assuntos que embora não sirvam para grande coisa – na verdade, não servem para nada – me são exigidos pela dura necessidade. A azáfama impediu-me de ter assunto para narrar, pois aquilo que me azafamou é inenarrável. Se quero contar uma ou outra aventura, desta gesta cavaleiresca que é a minha vida, tenho de voltar ao dia de ontem. Consegui, por fim, comprar uns atacadores. Desesperava. Sempre podia recorrer à internet e encomendar um par de cardaços, como se diz no Brasil, à marca dos sapatos, que por acaso é americana. O problema é que não me apetecia dar seis euros por umas coisas para fazer laços, para além dos custos de envio. Não é que tenha inclinação de forreta. Não tenho, mas achei imoral o preço. Investiguei descobri um sapateiro perto de casa. Tem atacadores, perguntei. Tenho vários, o que quer? Lá expliquei. Perguntou-me o comprimento. Disse que os quero substituir medem 89 cm. Não pode ser, não existem com esse tamanho. Tenho de 90. Óptimo. Devo ter medido mal, acrescentei, e perguntei quanto era. Um euro, ouvi. Sabe quanto me pediam na marca? E lá debitei os seis euros. O homem ficou de cara ao lado, como se aquilo fosse uma ofensa. Depois, acrescentou: e se calhar são tão bons quanto estes. Não, são piores, pois os meus ficaram em frangalhos em pouco tempo. Esta conversa que não interessa a ninguém tem, contudo, várias lições sobre a moral, a economia e, também, acerca do valor de ter um sapateiro perto de si. Podia contar outras histórias, mas para hoje chega. Sempre é sexta-feira.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Uma incógnita irresolúvel

Há experiências que não são fáceis. Não sei como acomodar em mim ver definhar, no meio de uma demência galopante e de uma degradação física sem retorno, alguém que foi activo, com poder de iniciativa e capacidade de ordenar a vida à sua volta. A realidade sempre me pareceu uma coisa perversa. Mesmo quando ela se apresenta como benévola e geradora de alegria e esperança, esconde o terrível. Muitas vezes lamentamos a ordem moral do mundo, o triunfo do mal sobre o bem. Não menos lamentável, porém, é a ordem da natureza, na qual a vida está assente no alicerce da dor. Nem uma longa conversa com o padre Lodo me retirou do coração o sentimento de impotência perante a realidade. Não é que o meu amigo, apesar de sacerdote, se proponha a um fácil discurso consolatório. Pelo contrário, há nele qualquer coisa que parece estar para além da religião que decidiu abraçar, um fundo trágico, herdado da antiguidade. As leituras dos trágicos gregos, sobre os quais temos longas conversas, inscreveram nele uma marca indelével. Ou talvez o próprio cristianismo se funde numa tragédia, apesar da promessa da ressurreição da carne. Da aparelhagem escorre uma música do Tingvall Trio com o nome Memory. O problema, porém, é que mesmo uma memória poderosa e dada à minúcia não resiste ao galope da demência, de tal modo que chega a não reconhecer os próprios filhos, pergunta-lhes quem são. Chegam os ecos de uma conversa online entre avó e neta. O assunto? A Matemática, a resolução de exercícios, a determinação do x, mas talvez, por mais que se tente, o x seja eternamente irresolúvel, uma incógnita contumaz que nunca deixará que lhe retirem o véu.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Inconfiáveis

Amanhã preciso de ir a um sítio onde me é exigido um teste negativo à COVID. Por isso, lá fui mais uma vez submeter-me ao império da zaragatoa. Agora, que a noite já desceu e segue firme pelas horas dentro, estou à espera do resultado. Nem percebo por que razão o veredicto não é dado logo, pois os testes antigénio feitos em laboratórios ou farmácias não me parecem diferentes daqueles que fazemos em casa. O que muda é a certificação. Não somos seres confiáveis e, por isso, em vez de estarmos em casa a introduzir a zaragatoa pelas narinas até tocar na raiz do cérebro, temos de nos submeter a terceiros para obter o certificado de bom comportamento. No fundo, somos todos o Pedro da história de Pedro e o Lobo. Não a de Prokofiev, mas a que é atribuída a Esopo (bem, já não me lembro se o pequeno pastor desta história se chamava Pedro). Somos todos uns alegres mentirosos a que ninguém leva a sério. Pelo menos três pessoas que eu conheço decidiram ir ao estrangeiro e deixaram-se contaminar pelo vírus. Descobertas quando queriam retornar à pátria, estão agora retidas até se descontaminarem. Há uma estranha sensação no ar. Conforme cresce o número de contaminações, as pessoas agem como se a pandemia estivesse a acabar, como se ela não fosse mais que um fogo-de-artifício, que acaba sempre em apoteose. Continuo à espera do resultado da zaragatoada. Será que me trocaram as letras do email?

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Uma questão de tamanho

Há pouco lembrei-me de um título de um filme dos irmãos Cohen, que também é título de um dos romances de Cormac McCarthy, Este País Não É para Velhos. Isto a propósito de uma insidiosa forma de exclusão que os livreiros decidiram pôr em marcha, para afastarem da sua clientela pessoas cuja idade já não permite ler com conforto, apesar dos óculos, letras minúsculas com que decidem imprimir os livros, que esperam vender. Por motivos que não vêm ao caso, decidi abrir o livro Palácio de Cristal, de Peter Sloterdijk. Quando me predispunha a ler umas páginas, sinto-me expulso da leitura e quase ouvi o editor murmurar este livro não é para velhos. Se me fosse permitida a política, haveria de organizar um movimento para regular o tamanho das letras que formam palavras com que são construídos os livros. O regulador assegurar-se-ia de que nenhum livro seria impresso sem que as letras tivessem um certo tamanho, pois aqui o tamanho conta. Para evitar exclusões, entenda-se. Esta, porém, não foi a minha grande aventura de hoje. Ao chegar à porta do prédio onde vivo, digito o código de entrada e nada. Olhei para o dispositivo com olhar de quem pede esmola, mas ele manteve-se impávido e comprometido com a sua decisão de não cooperar com os moradores. Vou ao molho de chaves que arrasto comigo e, depois de algumas experiências, descobri que não tinha chave da porta de entrada. Como um cão abandonado, fiquei à porta aguardando que alguém saísse do prédio para eu entrar. Agora, tenho outra aventura. Onde estará a chave que eu deveria ter? O melhor é ligar para o condomínio e pedir que me façam outra. Isto, se não me esquecer. Como se vê, o mundo existe apenas para desfazer os nossos planos, para se rir dos nossos possíveis mais próprios. Esta última frase, além de ridícula, era dispensável, mas ninguém pode deixar de ser quem é.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Uma assinatura

A data é 11/3/56, por cima da data está uma assinatura. Quando a vi desconfiei que tinha comprado um livro que merece ser guardado. A história é simples. Adquiri online o romance Homens Sem Caminho, de Castro Soromenho, uma segunda edição. Há uns tempos comecei a juntar – não sou, na verdade, um coleccionador – romances portugueses que ninguém lê. Vou comprando ao sabor da minha disposição. Os livros em segunda mão trazem, por vezes, ecos dos antigos proprietários. Dedicatórias, apontamentos, notas à margem, comentários. Este tinha apenas uma data e a assinatura do proprietário. Aliás, a assinatura resume-se apenas ao apelido, Vespeira. Ora, este é o nome de um conhecido pintor surrealista, um dos artistas mais importantes do chamado terceiro modernismo português. Fui à procura na Internet de reproduções de quadros dele e confirmei que a assinatura que consta no livro é exactamente igual à que ele punha nos quadros. Não tenho um quadro de Vespeira, mas tenho um livro que foi dele, que o comprou ainda antes de eu nascer. Não se pode ter tudo. Marcelino Vespeira morreu em 2002, há quanto tempo terá sido vendida a sua biblioteca ? Quanto a Castro Soromenho, a este nunca o li. A sua ambiência narrativa é o mundo colonial português. Foi muito traduzido e, no seu tempo, era uma personagem literária respeitadíssima. Hoje, pouca gente terá ouvido falar dele. Portugal mata a memória dos seus escritores a uma velocidade estonteante.

domingo, 9 de janeiro de 2022

A imobilidade

Há domingos que não sei o que fazer com eles. Parecem uma suspensão inútil por dentro da pedra dura da realidade. Tivesse-me sido dada uma ciência infusa sobre a textura dos dias da semana, esta ignorância não teria lugar. Ainda não me aventurei no frio que cobre a cidade. O céu apresenta-se vestido de múltiplos matizes de cinza, desde a quase negra, até à quase branca, mas as nuvens parecem imóveis, só o tempo, com a sua espada de cristal, corre, sem necessidade da energia do vento. Na praceta, três homens, sem máscara, rodeiam uma moto. Há capacetes no chão. Um deles passa a mão pelos cabelos, outro dá passos à volta do veículo. O terceiro esgueira-se pela rampa que dá acesso às garagens de um prédio. A quietação celeste foi perturbada pelo voo de dois pássaros. Na avenida, pessoas vão devagar, cobertas de Inverno. Uma rapariga, quero dizer uma mulher ainda nova, vai atrelada a um pequeno cão. Visto de cima, o animal parece vestir um pulôver sem mangas. Caso a mulher nova – no Brasil, o termo rapariga é mal-afamado – seja brasileira, então o cão há-de estar com um suéter, que é o que por lá chamam ao pulôver. Fico sempre espantado com as coisas inúteis que sei, embora devesse ficar ainda mais, mas não fico, com as coisas úteis que desconheço. Segundo algumas opiniões, a que não me atrevo contestar, todas as coisas que sei pertencem à categoria da inutilidade. Os homens continuam a conferenciar. Alguma coisa terá acontecido ao motociclo. Um dobra-se e examina o motor, outro corre, de novo, pela rampa que dá acesso à garagem. A moto, como as nuvens no céu, continua imóvel, mas o tempo não pára de passar.

sábado, 8 de janeiro de 2022

Susceptibilidades

O dia começou mal. Não bastava ter-me levantado tarde, coisa que está fora dos meus hábitos há muito, tive um desagradável encontro com a balança. A coisa – para não usar uma qualificação mais desagradável – teima em continuar a afrontar-me devolvendo-me pesos insultuosos sempre que a piso. Talvez ela fique ofendida por ser pisada. Quem gosta, nesta vida, de ser pisado? Os dispositivos – e não apenas as balanças – são seres muito susceptíveis. Ontem, por exemplo, o GPS do telemóvel ficou muito irritado e decidiu gozar com os pobres passageiros do carro. Depois de passar uns dias em Coimbra com as minhas netas, no retorno decidimos levá-las a Conimbriga. Era o fim do passeio cultural. Ligada a aplicação, a senhora que fala dentro do aparelho lá foi dando indicações. O problema é que falhei uma curva à esquerda e ela em vez de me mandar voltar para trás, continuou a dar indicações, metendo-nos a todos por aldeias inverosímeis e, não contente com isso, por estreitos caminhos do campo, terra batida, buracos cheios de água, instigando-nos sempre para a frente, ou para a direita, ou para a esquerda. A certa altura comecei a desconfiar que estava a ser literalmente gozado, fiz inversão de marcha e mandei calar a senhora. Na primeira aldeia, perguntei o caminho, como se fazia antigamente, e lá cheguei às ruínas. Não tenho certeza se as netas gostaram mais das ruínas ou da aventura de andarem perdidas pelos campos, sem saber se chegariam a algum lado. Como se vê, e esta era a minha tese, os dispositivos são seres muito sensíveis, impiedosos e vingativos. Agora, estou a ouvir Fado de Coimbra, pois ao descer da Universidade para a baixa da cidade, encontrei uma casa dedicado à canção coimbrã e decidi comprar dois CD. Tenho de os ouvir pelo menos uma vez.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Balanços e rebeliões

Ainda não nos despedimos do tempo das contabilidades. Na comunicação social, surgem todos os dias os balanços, o deve e o haver. Há quem fale de que se deve deixar de contabilizar os infectados, mas contar apenas aqueles que desenvolvem doença grave que conduza à hospitalização. Mesmo que venha a ser assim, a contabilidade continuará a ter lugar no espaço público. Há muito que a estatística se interessa por todos os tipos de fenómenos sociais, agora, porém, ela tornou-se uma atracção pública. Talvez esta exposição dos números tenha contribuído até aqui para que eles não sejam mais altos. Como se pode observar, estou com evidente falta de assunto, apesar do dia ter estado agradável e não me faltarem aventuras para narrar. A questão, porém, é que urdir uma trama narrativa exige estar voltado para esse lado. Ora, até um narrador tem direitos, e um dos direitos mais importantes é recusar-se a narrar, uma espécie de direito à rebelião, como aquele que um filósofo do século XVII, tido por pai do liberalismo, reconheceu aos povos submetidos à tirania. Apesar da paternidade de tão ilustre filho, ele possuía curiosas convicções sobre a tolerância. Por exemplo, advogava que as diversas igrejas, desde que não se metessem em política, deveriam ser toleradas, com excepção da Igreja Católica. Também os ateus não poderiam ser tolerados. Podia narrar as razões que lhe atormentavam o espírito para que o pai da tolerância fosse intolerante, mas não me apetece. A noite está a cair, e há coisas que é melhor não falar à noite. Estive a ver uns exemplares da revista Paris Match do ano que nasci, havia mesmo um do dia em que vim ao mundo. A experiência é devastadora. Se aquele era o meu mundo, então este já não é. Talvez existem diversos mundos possíveis que possam coabitar uns com os outros. Talvez. Seja como for, a revista custava à época 50 francos em França e, neste cantinho esquecido dos deuses, 8$50. 

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Ausência de espírito

Devia ter tirado uma fotografia, mas esqueci-me. Ontem estiveram cá todos os meus netos. O reboliço, porém, ocupou-me a mente e nem me ocorreu o exercício fotográfico. A isto chama-se, julgo, falta de presença de espírito. Quem tem o espírito presente não falha oportunidades, como os grandes jogadores de futebol não falham golos com a baliza aberta. Não é bom sintoma começar a fazer analogias com o mundo obscuro da bola, até porque dele sei pouco ou, para ser mais exacto, nada. Para além de não ser dotado com oportuna presença de espírito, cheguei a uma fase em que mesmo aquilo que me visita o espírito se varre num abrir e fechar de olhos. Imagine-se que se tem a intenção de levar o objecto X para o lugar Y, mas antes há que fechar a janela Z. Fechada a janela, já o X e o Y entraram naquele limbo de onde hão-de sair, se saírem, daí a umas horas. Ontem, tive de fazer cara feia ao meu neto. Parece divertir-se imenso em pegar num objecto – seja o brinquedo W – e atirá-lo ao ar, o que tem sempre a grande possibilidade ou de cair em cima da cabeça de alguém ou de partir qualquer coisa. Ele ficou muito sério e prometeu não continuar a verificar se a gravidade funcionava, embora não creia que tenha ficado convencido de que atirar coisas ao ar não é um belíssimo passatempo ou uma óptima experiência com a qual ele poderia aprender uma pouco de Física. Na idade dele, porém, explicações para pouco servem, mais vale uma cara feia. Como paga, ele mascarou-se de monstro e passou longos minutos a assustar-me. Vendo-me assustado, tirava a máscara e dizia sou eu avô, e recomeçava. Hoje, quando me levantei, estava uma bela manhã, mas a beleza logo começou a declinar. O azul dos céus tornou-se cinzento e as ruas ficaram mais soturnas, como se cheirassem a mofo. O tempo passa.

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Corpo conservador

Ainda não me habituei a escrever o último dois de 2022, os dedos fogem sempre para o um. Isto será uma prova de que o corpo, comandado pelo cérebro, tem uma inclinação conservadora. Fora ele revolucionário, eu escreveria, automaticamente, 2023 ou mesmo 2024. Caso, porém, o corpo fosse reaccionário, os dedos haveriam de escrever 1821 ou 1822. Recusar o ano em que se está é um sintoma de conservadorismo, um caso daquilo a que vulgarmente se chama instinto de conservação. O tempo não nos mata, mas traz com ele aquela que nos há-de ceifar. Poderia ter escolhido uma metafórica mais criativa, mas estou cansado. Tive de sair de casa para pôr o telemóvel de uma das minhas netas a consertar. Aproveitando a saída, dirigi-me à Fnac – aqui, apesar da dimensão risível da cidade, também há uma loja Fnac, assim haveremos de nos julgar menos provincianos – para levantar um livro que tinha encomendado online. Por desfastio, comprei mais três. Vim carregado de poesia e mesmo assim não encontro imagens dignas de registo. Como antes de sair de casa ouvi sempre podias ir levantar-me as calças que foram emendar as bainhas e, é mesmo ao lado, podias trazer um chouriço de carne, lá fui em demanda das calças reembainhadas e do chouriço de carne – atenção, não seja gordo, ouvi ainda – e, também por desfastio, passei pela zona dos vinhos, o que é sempre uma visita aprazível. Entre livros de poesia e garrafas de tinto do Douro, trouxe para casa não sei quantos produtos que, ao sair, nem tinha imaginado comprar. É assim que uma pessoa cede aos imperativos da sociedade de consumo. Fora eu um asceta rigoroso, um monge de estrita obediência, nem poesia nem vinhos, apenas água pura e um livro de orações coçado pelo uso, mas não sou. A minha neta mais nova está a choramingar, embora sem abundância de lágrimas. As sessões de Matemática dela com a avó – com a outra neta a função é mais apaziguada – têm uma coloração bergmaniana, dão sempre em lágrimas e suspiros. É a vida das marionetes, pensei.

sábado, 1 de janeiro de 2022

Estamos em 2022

Estamos todos mais descansados. Afinal, sempre existe o ano de 2022. Chegou por aqui entre fogo-de-artifício, pessoas a brindar e outras submetidas àquela terrível provação das doze passas e não sei quantos desejos. Estava para passar as passas, mas como eram bastante boas, acabei por cumprir o ritual enquanto fazia videochamadas para a família. Na azáfama, esqueci-me dos desejos. Quando meditei nessa falta, concluí que fora o melhor. O mais sensato é não desejar nada. Até, porque, passados uns minutos uma pessoa esquece-se daquilo que desejou e não tem hipóteses de verificar experimentalmente se a conexão entre passas e desejos formulados funciona. Apesar de me ter deitado a hora muito razoável, levantei-me tarde, coisa a que não estou habituado e torna o dia um pouco zanaga. Não imagino por que razão esta palavra me surgiu. Os dias não têm olhos, logo não podem ser zanagas. Talvez nos olhem de lado. É uma hipótese, mas de confirmação tão difícil de testar quanta a da causalidade entre passas e realização de desejos. Estou preocupado comigo. O que me terá dado para fazer estas referências, já são duas, ao método científico. As notícias são animadoras. Uma equipa de cientistas portugueses – mais uma vez a ciência – desenvolveu um nariz electrónico que consegue detectar odores apesar da humidade. Parece que esta é inimiga da captação de aromas. Por falar em aromas, recordei-me que a palavra é usada para designar certos produtos químicos adicionados industrialmente a alimentos para lhes dar determinados sabores. Como se vê, até a indústria mais soturna tem um lado poético. Seja como for, estamos em 2022, na noite do seu primeiro dia. Nem sempre é fácil constatar a realidade.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Um ano sem facécias

Tinha escrito um longo texto. O computador, porém, decidiu que estava cansado e recusou-se a fazer seja o que for. Tive de o desligar e tornar a ligar. Quando retornei, apesar de ter gravado o texto escrito, este desaparecera. Um sinal, por certo, para que eu compreendesse que tudo o que tinha escrito era puro lixo, matéria morta, à qual não deveria voltar, pois, caso contrário, ainda seria transformado em estátua de sal. Achei desagradável partilhar a sorte com a mulher de Lot e abstive-me de retornar aos tormentosos assuntos que me ocupavam e que se perderam nalgum buraco negro do universo virtual. Sendo assim, não tenho assunto para hoje. Nenhum acto heróico a acrescentar a esta gesta. O sol desmaiado chama o fim do dia e o cansaço anuncia que o ano está por horas. Foi um ano mau, 2021? Talvez, mas, como acontece sempre, poderia ter sido pior. Também poderia ter sido melhor. Oiço o pianista de jazz Marc Copland. Há alguns anos assisti, nesta pequena cidade de província, a um concerto dele para apresentação de um álbum. Nunca percebi como foi possível isso ter acontecido, pois foi o único concerto dado em Portugal. Esperemos que o ano vindouro não se entregue, como o actual, a facécias virais, que tenha tino e não ande por aí a molestar os espíritos dos homens. Já bastam estes para se molestarem a si e aos outros. Também é necessário que os anos tenham juízo, e os últimos não têm dado grandes provas de o possuírem. Deveria haver possibilidade de os devolver, sempre que vêm avariados. A defesa dos consumidores precisa de estar mais atenta a estas coisas.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Sol de Inverno

O ano, o triste ano de 2021, parece decidido a despedir-se em beleza. Saí há pouco e a cidade está coberta por um magnífico sol de Inverno. Esta expressão lembrou-me uma canção de Simone de Oliveira com o mesmo nome. Cantou-a, fui verificar, no Festival da Canção de 1965. Naquele tempo, os festivais da canção eram motivo de reuniões familiares, os jornais publicavam grelhas para se ir registando a pontuação. Haveria preferências domésticas. Um acontecimento. Depois vinha o festival da Eurovisão, um novo acontecimento, embora aí as coisas corressem sempre mal. Os jurados dos diversos países esqueciam-se quase todos de pontuar a canção portuguesa, que acabava lá para os últimos lugares. Corriam múltiplas teorias sobre essa conspiração aleivosa contra as cantigas pátrias. Fui ao Youtube e ouvi a Simone cantar Sol de Inverno. Para dizer a verdade, não achei nada mal, pelo contrário. A interpretação da Simone é muito, muito boa. Estou a ficar velho. Ainda há uns anos nem me dignava lembrar desta canção, quanto mais… Li que só teve um ponto na Eurovisão dado pelos monegascos, gente simpática, disponível para a caridade. Não tarda muito e estou a comentar a Desfolhada. O que me vale é que lá para meio da tarde chega o meu neto.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Uma questão de luz

Uma luz belíssima repousa na escola aqui ao lado. As copas das árvores reverberam e até as paredes surgem aos olhos como tendo uma dignidade que, na verdade, não têm. Blocos em cimento fazem um conjunto de onde está ausente a grave dignidade que outrora revesti o edifício de uma instituição de ensino. Havia neste um toque aristocrático, um sinal de que aquele lugar servia para uma elevação do espírito. Os edifícios das escolas modernas são uma confissão de que o saber já não tem qualquer relação com o mundo do espírito, mas é apenas uma questão técnica para gerir as necessidades da vida, apesar da retórica humanística e das homílias cívicas. Estava eu tão lançado nesta diatribe contra a decadência do bom gosto quando sou interrompido por assuntos familiares. É verdade, até um narrador tem assuntos familiares. Resolvidos estes, volto para aqui, mas a luz que me animou no início desapareceu, engolida pelo espectro da noite que se aproxima. Na praceta, ainda há crianças a correr e a gritar, as árvores estão imóveis e o hospital, ao longe, tocado pelo crepúsculo, parece ainda mais lúgubre. Num site noticioso vejo que uma jovem mulher, condenada a uma longa pena por homicídio, se suicidou. O mais tenebroso, contudo, são os comentários. Há qualquer coisa de infecta no coração destas pessoas. Talvez sejam vítimas de um vírus para o qual não há vacina que lhe limite os danos. A iluminação pública acendeu-se.

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Disembroil

Ao escrever Dezembro o corrector do Word assinala com um traço vermelho e oferece para substituição a palavra Disembroil. Não faço a mínima ideia de que língua perdida veio a sugestão. Faço uma pesquisa, mas a ignorância continua. Talvez o meu processador de texto tenha chegado a uma autonomia tal que conseguiu inventar uma língua, com a qual pretende corrigir tudo o que eu escrevo. Imagino que a cacofonia não seria maior do que aquela que resulta do meu uso do português. Há que esperar as facécias mais inesperadas. Levantei-me cedo para tratar de algumas coisas vindas da terra escura da realidade. Bem poderia estar em descanso preparando-me para a transição de ano, coisa que, apesar de trivial, exige uma longa preparação espiritual e, sejamos sérios, física. Ora, lidar com os imperativos da realidade não ajuda nem corpo nem espírito, pois a dita realidade conspira continuamente contra quem a ela veio. Dá-lhe dores, despesas, desavenças e desamores, dá-lhe mais umas quantas coisas começadas por dê, mas que não me ocorrem por agora. Neste momento, dá-me uma quebra de energia, talvez porque chegou a hora de almoçar e eu arrasto-me neste texto à procura de alguma coisa para dizer, mas não me acode mais nada do que Disembroil.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

A era da zaragatoa

Nestes quase dois anos, os que dura a pandemia, já vivemos diversas eras. A era do confinamento, a era da máscara e, agora, a era da zaragatoa. Esta esteve sempre presente nas eras anteriores, mas tornou-se, por estes dias, o elemento central. As pessoas fazem filas para serem zaragatoadas. Também eu, há pouco, me coloquei numa dessas filas. Ela foi caminhando devagar e, por fim, tive direito a que me escarafunchassem o nariz com uma pequena zagaia. Ainda não sei o resultado, mas já nem faço prognósticos, pois estes nem mesmo no fim do jogo dão certo. Preciso de fazer uma visita a uma pessoa internada num daqueles sítios que exigem um teste. Caso tenha nota negativa, vou tentar fazer uma dupla visita. Há muito que se sabe que a matemática é fundamental para a vida civilizada, mas nunca se pensou que até uma simples análise tenha de ser calculada para se poder tirar o máximo proveito dela, caso ela permita tirar algum proveito e não obrigue a quarentenas, telefonemas para o serviço nacional de saúde e o temor do que poderá vir a acontecer, pois nestas coisas, o melhor é não ter qualquer certeza. Em compensação, o dia tem estado magnífico. É no Inverno que amo o Sol e os dias ensolarados trazem ao coração – e também à velha razão – uma alegria inesperada. Esperar os resultados da zaragatoa faz parte daqueles fenómenos que Peter Handke caracterizou, no título de um livro, como a angústia do guarda-redes antes do penalty. Uma pessoa pensa sempre naqueles com quem tem estado, se não vai ser causa da doença deles. Tudo isto é cansativo, mas há que aprender a viver de zaragatoa em zaragatoa.

domingo, 26 de dezembro de 2021

Uma reforma do Natal

Hoje é um domingo que vem depois de um sábado que parecia um domingo. Isto perturba-me a relação não apenas com o calendário, mas também com a realidade. Esta parece-me ainda menos verosímil do que habitualmente. Como é possível viver numa semana que, na prática, embora não em teoria, tem dois domingos, um num dia e o outro no dia seguinte. Se eu pudesse resolver estas coisas, haveria de propor que, assim como o dia da ressurreição de Cristo é móvel no calendário e fixo na nos dias da semana, também o dia de nascimento do mesmo Cristo ganhasse mobilidade no calendário, mas se tornasse fixo no dia da semana. Por exemplo, o Dia Natal seria sempre às quartas-feiras. Isso evitaria casos como aquele que acontece comigo. Pensar que existem dois domingos seguidos, sem que uma semana entre eles se intrometa, perturba-me. Pessoas menos caridosas hão-de achar que as Festividades não me fizeram bem à sanidade mental. Pensem como quiserem, mas isso não atinge a grandeza e o rasgo da minha concepção do Dia de Natal. Não é porque uma ideia tenha ocorrido a um asno que ela é má. A minha ideia é óptima, apesar de ser minha. O dia está triste, tristíssimo. Cinzento, chuvoso, sem gentes pelas ruas. Mesmo assim, arrisquei e fui a uma aldeia aqui perto que costuma ter, à beira da estrada, bancas de produtores locais a vender laranjas, marroquinas, tangerinas, tângeras, por aqui ditas tanjas, resultado da lei do menor esforço que permite às línguas progredirem em direcção à cacofonia universal. Não comprei tângeras nem tangerinas, mas laranjas e deixei-me levar por umas marroquinas. Esta piada era dispensável, além de ser de mau gosto. Espero, contudo, que ninguém fique a pensar, pelo facto de não comprado tangerinas nem tângeras, que tenho alguma coisa contra a cidade de Tânger. Não tenho. É quase noite e ainda não consegui adaptar-me a este segundo domingo.

sábado, 25 de dezembro de 2021

Deu em pantanas

Tudo pronto, alinhado à porta para ir para o carro. O almoço de Natal seria em Lisboa. Expectativa de ver as netas, de lhes oferecer os presentes, de sentir a sua animação de adolescentes. Um telefonema e tudo se esboroa. Uma das participantes autotestou-se e deu positivo. Devido aos contactos com parte dos que iriam amesendar, decidiu-se pela anulação da viagem e uma súbita nuvem de tristeza abateu-se por aqui. Apesar de não ter havido contacto, também nos submetemos ao ritual do escarafuncho. Por enquanto, tem havido uma sólida fidelidade ao negativo, mas há um conjunto de projectos que irão ser adiados ou, pura e simplesmente, cancelados. Planear é, por certo, uma coisa muito razoável. Contudo, a realidade, com a sua inclinação para a hipérbole, é pouco dada a razoabilidades. Faz o que muito bem entende e rasga em segundos aquilo que levou dias a projectar, quando não mesmo anos. O Natal do ano passado, apesar de tudo, ainda disfarçou, embora estivesse longe dos Natais canónicos. Este ano deu tudo em pantanas. Acho que vou pôr um CD na aparelhagem. Alba, um ensemble dinamarquês, interpreta canções de Natal escandinavas, numa gravação com o nome It Barn Er Fød - Old Yuletide Songs From Scandinavia. Quase há vinte anos que este CD faz parte do Natal. Há que encontrar alguma compensação. Deu em pantanas, escrevi lá em cima. Muito gostava de saber de onde veio essa infeliz expressão. Infeliz num duplo sentido. Infeliz porque é esteticamente feia e porque designa uma situação infeliz. Ainda por cima hoje é o dia em que todos devem dizer Feliz Natal.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

A ordem do mundo

Assim como a torrada cai sempre com a face amanteigada para baixo, também, por mais cuidado que se tenha e listas que se façam, falta sempre, no dia 24, qualquer coisa essencial para os festejos natalícios. E uma pessoa lá tem de se pôr a andarilhar por aqui e por ali para adquirir o que estava em falta. Foi o que me aconteceu. Fui despachado, logo de manhã, a grande velocidade, para ir a um supermercado comprar coisas mais que necessárias e de seguida que fosse pelo Bolo Rainha encomendado. Zeloso, cumpri, embora tenha aproveitado para passar por uma garrafeira e reforçado o stock de vinhos e, tão importante como isso, passei por uma farmácia e comprei seis testes ao SARS-COV2. Perguntei se tinham. Sim, responderam. Posso levar seis? Os que quiser, ouvi. Muito bem, trouxe seis sem ficar com a consciência maculada por um espírito açambarcador. Aquela farmácia terá testes para dar e vender, embora só venda. Cumprida a missão, voltei para casa e estou emaranhado neste dia acinzentado, todo ele melancolia, embora as pessoas andem pelas ruas, encham os supermercados, lojas, cafés e pastelarias. Ao olhar pela janela, ao observar a palidez da luz, ocorreu-me que a ordem do mundo está longe da perfeição. Não quero com isto incorrer em alguma heresia, mas não seria destituído de sentido que essa ordem do mundo, chegadas as festividades de Natal e de Ano Novo, suspendesse a pandemia, para as pessoas poderem desfrutar sem constrangimentos das tradições. A seguir, recomeçava, como recomeçam os jogos de futebol, após o intervalo. Fora eu a ordenar o mundo e muita coisa tornar-se-ia perfeita, até a própria desordem seria ordenada, com tempo para o caos e tempo para o cosmos. Agora chove bem e talvez neste aguaceiro exista mais sabedoria do que na minha visão sobre a ordem do mundo. Talvez, saliento.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Princípio da Incerteza

Acordei cedo e, quase de imediato, fui submetido ao ritual do autoteste à COVID-19. Pedi que me escarafunchassem as narinas com a zaragatoa. Que palavra horrível inventaram. Suportei a actividade amadora, embora determinada a fazer bem a operação. A seguir entreguei-me a uma sessão de espirros. Não vale a pena preocupação. Cumpri a etiqueta respiratória. Se contaminei alguma coisa, foi a manga da camisola que tinha vestida. Alguns sintomas desagradáveis, coincidentes com os da nova variante, levaram-me ao acto. Se isto se passasse há dois anos, nem ligava, pois, todos os Invernos tenho direito pelo menos a uma destas visitas inoportunas. Mas não posso evitar o Zeitgeist e achei que me deveria submeter à pequena sessão de tortura narinal. O teste deu negativo, embora eu continue com os mesmos sintomas. Aqui, poderia fazer uma transferência audaciosa, do princípio da incerteza de Heisenberg, da mecânica quântica para o meu estado existencial. Caso fizesse tal transferência, que não faço, diria que quanto menor for a incerteza dos meus sintomas, tanto maior será a incerteza da sua causa e vice-versa. O problema é que eu sou um mero narrador, um ser virtual criado pela imaginação delirante de um autor espúrio, e não uma partícula subatómica a voltejar feita barata tonta em torno de um núcleo. Eu não tenho posição nem momento linear, embora sinta algum corrimento nas narinas e impressões rugosas na garganta. Invenções do autor, claro, que faz tudo isto para me prejudicar a reputação. Já pensei em fundar um sindicato de narradores, para se defenderem da prepotência dos autores, mas a inclinação individualista tolheu-me o ímpeto revolucionário e justicialista. O pior foram estes três espirros. Cumpri a etiqueta respiratória, pois até um narrador virtual tem etiqueta respiratória, mesmo que não respire.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Queda

Também hoje é um dia sombrio, chuvoso. Um dia plangente, flébil. No sítio onde oficio um ritual inútil para fazer frente à dura necessidade, fui a grande estrela da manhã. Estaciono o carro, saio, fecho a porta e estatelo-me. Grandes preocupações. Estava bem? Não me tinha magoado? Não, não me magoara, nem rasgara as calças, nem ferira a mão que amparou a queda, e agradecia. Depois, enquanto as horas passavam, continuavam a perguntar-me se estava bem. Respondia que sim, estava óptimo e tornava a agradecer. Não há coisa mais natural na humanidade do que cair. Não por acaso, a autêntica vida humana começa com uma queda. O meu trambolhão foi apenas um reflexo dessa queda originária que nos expulsou a todos do paraíso. Estas explicações, porém, omiti-as, dizendo apenas que não se tratara de um AVC, apenas de um tropeção numa corrente sobre a qual decidira alçar uma perna e depois outra. Ora, com o entusiasmo de ter passado com a primeira, esqueci, ao usar a segunda, que esta terminava no pé, e o esquecimento paga-se. Sobre a minha secretária tenho o livro As Fronteiras do Conhecimento – o que sabemos hoje sobre ciência, história e a mente, de A. C. Grayling. Este, de facto, é um livro que me deverá ser útil, pois poder-me-á ajudar a estabelecer as fronteiras do conhecimento do meu corpo, evitando aventuras infelizes. A infelicidade, porém, não nasce da dor física, mas do ridículo que é uma pessoa estatelar-se perante qualquer auditório. Nem vale a pena dizer que não é ridículo, pois todos temos a tentação de rir perante quedas alheias e até das nossas, mas apenas mais tarde. A noite assentou há muito arraiais e cobre a cidade com a sarapilheira da escuridão. Continua a chover.

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Causa final

Hoje foi um dia solsticial, como tinha anunciado ontem. Agora, os dias começarão a crescer e as noites a diminuir, como dispõe a ordem do mundo, para que tudo encontre equilíbrio e a realidade não se torne hiperbólica. Não estou certo, contudo, que a realidade não ame a hipérbole, que se paute pelo meio-termo e a justa medida. A pandemia tornou-se hiperbólica. Cada vez que parece ter-se encontrado a medida que possibilita a vida normal, o vírus entrega-se à mutação e repõe as coisas no caos onde prolifera. É um jogador astuto, está empenhado em vencer-nos através do cansaço e da impaciência. Neste momento, não há virtude mais importante que a da paciência. Os homens, porém, não a cultivam, pelo contrário. Há na nossa vida um imperativo de mobilidade, um mandamento de desassossego. É necessário que nos movamos continuamente, é necessário que derrotemos a tentação da quietude. Ora, a paciência exige imobilidade e quietação, exige o domínio das pulsões e a domesticação dos desejos, tudo coisas com má publicidade. O vírus sorri. Pena é que a velha teoria da causalidade de Aristóteles tenha caído em desuso e a teleologia seja vista como uma rameira de má fama. Caso não fosse assim, perguntaria pela causa final daquilo que está a acontecer. Que causa final está a mover os cordelinhos da situação? Esta pergunta, porém, não a faço, pois deixaria de rastos a minha reputação, já de si tão pobre. Eu juro que não existe em nada disto uma causa final, abjuro de toda a teleologia, renego toda a crença no ensinamento do Estagirita. Para o que me haveria de dar. O Natal está próximo. Os Reis Magos já se devem ter posto a caminho, espero que não sejam assaltados e o ouro, o incenso e a mirra cheguem sem sobressaltos a Belém, para que cumpram a finalidade a que, no começo dos tempos, foram destinados.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Experiência

Oiço a chuva. Está de humor variado, volúvel. Umas vezes, o aguaceiro é fraco, outras, como agora, parece estar irado, fazendo a água chocar com violência contra a terra. Também os elementos da natureza possuem os seus humores e a chuva é, entre todos eles, um dos mais volúveis. Claro que não possuo nenhum medidor de volubilidade dos elementos, mas a experiência, por mais enganadora que a proclamem, de alguma coisa há-de servir, e eu tenho uma longa experiência acumulada. De que serve essa experiência, pergunta-me a consciência, enquanto deixa escapar um riso escarninho. Irrita-me quando cultiva o sarcasmo. Ainda por cima a resposta é óbvia. A experiência serve para uma pessoa ser experiente. Ora, ora, responde ela. O ano passado, continuou, por falta de experiência fez-se um conjunto de idiotices no Natal e no Ano Novo. Janeiro e Fevereiro foram meses terríveis. Agora que somos experientes, estamos a fazer exactamente as mesmas idiotices nas mesmas datas. Como vês, a experiência não serve de muito. Desisti de argumentar, até porque a tarde foi cansativa, pois tive de fazer uma daquelas coisas que não servem rigorosamente para nada, mas que me são apresentadas como o caminho de salvação do mundo. Cansa-me muito fazer coisas que não servem para nada, por mais salvíficas que elas se apresentem. Quando começo a falar por enigmas, o mais ajuizado é calar-me. Assim, a chuva pode falar à vontade, dar largas ao seu humor volúvel, encharcar a noite. Os dias estão cada vez mais pequenos. Amanhã, às quinze horas e cinquenta e nove minutos ocorrerá o solstício de Inverno. Então, os dias começarão a crescer. É o que me diz a experiência.

domingo, 19 de dezembro de 2021

Tempos de tribulação

O domingo já alçou a perna e está pronto a saltar para o outro lado da paliçada. Ainda não saí de casa, não porque tenha algum motivo para o não fazer, mas apenas porque não me apeteceu. O jantar de família, que deveria ter decorrido ontem, foi adiado sine die. O meu filho teve a infelicidade de almoçar na passada quinta-feira com alguém que, na sexta, testou positivo à COVID-19. Tribulações de um tempo de pandemia. Preciso de falar com alguém, mas o telefone está continuamente ocupado. Vou tentando, enquanto o dia se vai dissolvendo e a paisagem se aproxima cada vez mais de um esboço em carvão até que a noite pegue nela e a guarde num saco de sarapilheira. Na avenida, as pessoas entregam-se a longas conversas, num protesto mudo contra a realidade que as manda afastarem-se umas das outras. Não é fácil viver nestes dias, em que os hábitos enraizados são incapazes de fornecer a armadura necessária para enfrentar o inimigo. Como este é invisível, a tentação é negar a sua existência. Não tarda, cairá a noite. Depois, virá a manhã e será mais um dia.

sábado, 18 de dezembro de 2021

Diurese

Há dias, o cardiologista – também os narradores têm problemas de coração – calculava a medicação, como quem pensa um lance numa partida de xadrez, e alvitra: bem, se a tensão não se equilibrar ainda temos margem de manobra com o diurético. Como toma apenas metade da dose, ainda há espaço para aumentar. Olhei-o como se estivesse a compreender muito bem o que queria. Mal sabia ele, porém, o que me ia na alma. Se o problema está na diurese, não conheço melhor estimulante que um bom vinho tinto, de preferência seguido de café. Nunca compreendi por que razão, quando fazem a especialidade, os cardiologistas não são informados sobre aquilo que é verdadeiramente eficaz. Claro que fica mais barato tomar 50 mg de Hidroclorotiazida e 5 mg de amilorida, omito o nome comercial da mistela, do que beber dois copos generosos, ou mesmo um, de bom tinto, ainda para mais que, no caso do vinho, não existe um genérico, que torne o consumo mais em conta. Não podemos, todavia, estar sempre a pensar em poupança quando se trata da saúde. Isto tudo porque, no pós-almoço, verifiquei, mais uma vez, o efeito diurético dessa combinação entre esses dois medicamentos extraordinários, o vinho e o café. Hidroclorotiazida? Amilorida? Que cocktails são esses? Claro que também o tinto tem efeitos secundários. Hoje comecei a manhã com uma disputa acesa com a balança. Pisei-a e ela devolveu-me, como castigo, um peso desagradável. Tornei a pôr-me em cima dela, mas a rameira manteve-se fiel à palavra. Insultei-a. Olhou-me, impávida, e, depois de um longo silêncio, atirou-me à cara: então, não és tu que achas que o melhor diurético é o tinto? Voltei-lhe as costas. É inútil discutir com gente estúpida.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Derrubar muros

Ao acaso, abri uma edição da Poesia Completa de Herberto Helder. Leio, então, o verso Muita coisa começa a bater contra os muros do meu poema. Estanco. O verso fascina-me, não apenas pela sua qualidade poética, mas pela descrição da realidade. Também no dia de hoje, muita coisa começou a bater nos muros de mim mesmo. Foi um batuque contínuo, com oscilações no ritmo, mas sem parar até ao momento em que me sentei para escrever isto. Então aquilo que batia em mim, suspendeu a actividade. Agora sou eu que bato nas teclas, que choco contra o muro que envolve o texto e trabalho para o derrubar. A queda dos muros é uma coisa que excita a alma das multidões. Há nelas uma alegria insana, se vêem um muro ruir. Têm esperança de ganhar espaço para construir um novo. A actividade humana não passa de um contínuo erguer e derrubar muros. Festejam quando se ergue um. Celebram quando ele é derrubado. Depois de um dia como de hoje, onde o batuque frenético da realidade tentou derrubar o muro que me constitui, não sei se celebre ou não. O muro resistiu, mas será isso uma virtude? Ao ler esta palavra, rio-me. Quem quer saber de virtudes, dessa invenção dos velhos filósofos gregos. Anoiteceu há muito, o melhor será calar-me.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Raízes

Podemos fugir àquilo que somos? E aquilo que somos pode desligar-se do lugar onde nascemos? Estas perguntas vêm a propósito de Toshio Hosokawa, um compositor japonês de música erudita contemporânea. Ocorreram-me quando escutava a peça denominada Wie ein Atmen im Lichte, que o serviçal tradutor da Google verte para Como Respirar na Luz. Para as pessoas não habituadas à música contemporânea, as peças de Toshio Hosokawa não parecerão mais estranhas que as do português Emmanuel Nunes. No entanto, há em Hosokawa uma clara influência da música tradicional japonesa. Não é aqui, porém, que quero chegar, mas ao carácter lancinante de algumas das suas peças, como aquela que se referiu acima e que se pode transformar numa pergunta, Como Respirar na Luz? O compositor nasceu em Hiroshima, passados dez anos da deflagração da bomba atómica. Quantas pessoas, da sua família, porventura, não se viram confrontadas com a impossibilidade de respirar naquela luz terrível, no esplendor fulgurante do cogumelo impetuoso e mortal que caiu sobre a cidade? Podemos alienarmo-nos, tornarmo-nos estranhos a nós próprios, mas aquilo que somos e o lugar de onde viemos não deixa de estar, no fundo da consciência, a orientar o olhar, as opções, as escolhas estéticas, ou outras. O sol, lá fora, brilha, com uma tonalidade invernal. A vida passa tranquila e confia-se que nenhuma bomba atómica caia sobre nós e estilhace o céu e a terra, para que um compositor a vir componha em forma de música essa dor sem nome que nasce dos corpos lacerados.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Forças mágicas

No volume II, A Queda para Fora da Realidade, da sua Crónica dos Sentimentos, Alexander Kluge tem um capítulo dedicado ao tema da Revolução denominado A Revolução É um Ser Vivo Cheio de Surpresas. Como no resto da obra, também este capítulo é composto por pequenos textos, alguns com títulos extraordinários, A Querela das Revoluções: Formam Círculos ou Espirais? Ou Serão Hipérboles? Levantam Voo? Se achou este título demasiado grande há outros mais pequenos, como por exemplo Aplicação da Medida Métrica ao Tempo do Relógio ou, então, Os Perigos da Filantropia. Das múltiplas denominações dadas aos textos sobre a vexata quaestio da Revolução, aquele que hoje elejo como o meu preferido é Poderão as Ambições de Dominação Gerar Forças Mágicas? Eis um problema fundamental. Há coisas extraordinárias desde que se ponha em movimento a ambição, o desejo e outras forças que não sendo ocultas, também não são manifestas, como no caso que acabo de ler de uma enfermeira italiana. A pobre senhora militava no negacionismo dos efeitos do vírus SARS-COV2. Estava suspensa da função por se recusar vacinar. Publicava vídeos em apoio das suas teses e consta que afirmara querer apanhar o vírus. As forças mágicas fizeram-lhe a vontade e a infeliz não resistiu aos efeitos virais. Sendo assim, não será uma coisa de somenos importância saber se as ambições de dominação têm poder para gerar forças mágicas. Pelo menos forças elas geram, se são ou não mágicas, isso é objecto de disputa, como quase tudo.

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Acabar em nome de hotel

Ora, para o que um homem está guardado, comentei para mim mesmo. Descobri há pouco, numa deambulação online em busca de alojamento para uma saída, que um dos mais brilhantes, senão o mais brilhante, dos oradores parlamentares do século XIX, é agora nome de hotel. Anda uma pessoa a enfrentar perigos e revoluções. Usa uma das mais terríveis retóricas que se fizeram ouvir por estes lugares. É odiado e amado. Tudo isto para acabar em nome de estabelecimento comercial. Neste caso, num lugar onde as pessoas se deslocam para dormir e não para fazer da vigília um estado de alerta para o combate. Quando as pessoas acabam em nome de rua, ainda vá que não vá. Agora, em nome de hotel, restaurante, loja, parece que toda aquela glória, afinal, era de pechisbeque. Seja como for, o ilustre deputado, o homem da patuleia, o setembrista radical, lá terá a sua rua, a sua estátua e também deverá ser nome de escola. Por falar na patuleia, dois dos liberais radicais terminaram em nome de liceu, o Passos Manuel e o Sá da Bandeira. Foi neste, apesar de nunca o ter frequentado, que diversas vezes na vida enfrentei terríveis examinadores. Pior sorte que aquela que coube ao magnífico retor, foi a dos seus colegas setembristas. Começaram como nomes de liceu e acabaram em designações de escolas secundárias. Ele que se acautele, pois ainda pode acabar em nome pensão. Nunca se sabe.

domingo, 12 de dezembro de 2021

Doze dias para o Natal

Hoje é dia doze e daqui a doze dias será véspera de Natal. Este passará com grande rapidez. Por vezes acalento a esperança vã de que o tempo sofra um refreamento na sua ânsia de chegar ao futuro. Ele, porém, mantém-se firme na sua decisão e corre sem freio. Isso não me retira o sono, depois do almoço tardio de domingo. Até há pouco estava uma luz exuberante de Primavera. Agora, a fulguração declina, o brilho desaparece e tudo se prepara para ceder ao desejo da noite. Leio que há um novo campeão mundial de Fórmula 1. Outrora, a notícia ter-me-ia interessado vivamente, mas vai para cinquenta anos que as corridas de automóveis deixaram de me interessar. Mais uns anos e talvez voltem a prender-me a atenção. Nunca se sabe para o que se está guardado. Os jornais e sites noticiosos continuam com a sua contabilidade mórbida. Assinalam que por cá a pandemia fez mais treze mortos. Podiam ser mais precisos. Ontem morreram em Portugal x pessoas, treze das quais vítimas de COVID. Podiam ser ainda mais rigorosos e indicar com precisão a causa de todos os óbitos. Para contrabalançar deveriam também indicar o número de nascimentos e a causa deles. Diriam x neonatos desejados, y fruto do acaso. Dentro deste, poderiam categorizar, elencando cada classe de acidentes que originaram uma criança. Ficaríamos todos mais informados e a estatística tornar-se-ia de grande utilidade noticiosa e dar-me-ia motivo para escrever mais umas linhas. Oiço o jazz do Tord Gustavsen Trio. Embala-me. E as compras de Natal? Tenho de pensar nisso.

sábado, 11 de dezembro de 2021

O lutador

Há pouco, ao arrumar uns ficheiros no computador, deparei-me com uma colecção destes textos. Tinha o nome de E aquilo que fatiga o lutador coroa o vencedor – diário da pandemia. Correspondia a quatro meses de actividade bloguística, desde o dia 1 de Março de 2020, até a 30 de Junho. Não faço ideia por que razão destaquei esses textos de todos os outros. Também não imagino o motivo que me levou a parar a recolecção no dia 30 de Junho. Terei, na altura, imaginado que o distúrbio que atingiu a vida dos seres humanos sobre a Terra estivesse a acabar? Santa inocência. O título, porém, sei a onde o fui buscar. A uma frase do Traité de la Maison Intérieure ou de l’Édification de la Conscience. Obra atribuída a Bernardo de Claraval, mas a atribuição é espúria. Há na frase escolhida por mim uma tonalidade guerreira, o que não chocaria com uma atribuição ao autor da regra da Ordem do Templo, o mesmo Bernardo de Claraval. A questão, todavia, é se aquilo que fatiga o lutador terá possibilidade de um dia coroar o vencedor. Se em Junho de 2020, talvez ainda se imaginasse que daí a uns meses as coisas voltariam ao que eram, agora, a percepção parece a contrária. O vírus mostra-se persistente e com capacidade de se adaptar ao combate que lhe é movido. Seja como for, o melhor é o lutador continuar a fatigar-se, talvez chegue a hora em que a fadiga coroará o vencedor. Não há nada como um princípio de esperança.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Dias difíceis

Há dias em que se têm de tomar decisões que gostaríamos muito de nunca ter de as tomar. O melhor, mesmo se por dentro tudo se dilacera, é enfrentar o inevitável, como se fosse a coisa mais banal do mundo. Sempre achei que a realidade tem uma face abominável, mas à qual não podemos voltar as costas, pois ela devora-nos. Terá outras alegres e benfazejas, dir-se-á. Não o creio. A alegria e a benevolência, aquilo que traz contentamento e prazer, tudo isso não faz arte da realidade. São pequenos sonhos e fantasias com que edulcoramos a vida, para a tornar suportável. Sempre abominei aqueles programas sobre a vida selvagem. Os animais são seres magníficos, mas tudo na sua vida gira em torno de matar e morrer, com interlúdio para o sexo, para que o triste espectáculo da sua existência possa continuar, num mundo onde só há devoradores e devorados. Essa é a realidade, mesmo entre nós, seres humanos. Talvez a diferença específica que nos separa, um pouco, muito pouco, desse mundo sangrento, não seja o facto de termos sido dotados com a razão, mas de haver em nós uma faculdade produtora de fantasia. Uma frágil faculdade, diga-se, mas que mesmo assim nos faz pensar que a vida vale a pena, que é possível fugir dessa orgia de morte com que a vida se alimenta. Talvez não seja por acaso que a tradição cristã elegeu a sexta-feira para a morte de Cristo.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Ser zaragatoado

Uma calamidade termos voltado ao estado de calamidade. Por causa disso, tive de ir hoje oferecer as minhas pobres narinas ao exercício do escarafuncho. Como terei de ir amanhã fazer uma visita a um hospital, além do certificado de vacinação, tenho de levar a prova de que fui zaragatoado e que o resultado foi negativo, como comprovei há pouco ao recebê-lo no email. Pior, muito pior, do que ser vítima da arte de escarafunchar narinas é a odisseia – só esta palavra indica o carácter aventuroso do que vou dizer a seguir – a odisseia, repito, de marcar a escarafunchadela. Liga-se para aqui, para ali, para acolá, laboratório público, laboratório privado, e não há uma alma que nos atenda. Minto. Há técnicas ainda mais soezes de conduzir, ao desespero, o candidato à zaragatoa. Atendem do geral, amabilidades mil, diz-se ao que se vai, respondem que vão fazer ligação ao laboratório, é lá que se trata de tudo. Agradecemos humílimos, fazem a ligação e somos recebidos por uma música inenarrável, entrecortada pela informação de que nos encontramos em fila de espera. A fila deve ser tão grande, que a própria operadora de telemóvel se cansa de nos ver esperar e acaba com a chamada. Talvez também não gostasse da música. Assim como num dia nublado há momentos em que surge uma aberta para o sol brilhar, também neste céu nebuloso das testagens COVID se fez uma aberta, eu marquei o teste, foi testado à hora exacta e recebi mais cedo do que esperava o resultado. Nem tudo é mau. Não tem sido um dia fácil, mesmo para um herói sempre disposto a odisseias.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Falta de coragem

Hoje foi um dia em que não fiz rigorosamente nada. Pelo menos até agora. É certo que levei uma pessoa à estação rodoviária para ela apanhar o Expresso. De seguida, fui à bomba de gasolina encher o depósito do carro e, por fim, passei pela farmácia para comprar aspirinas de 100 mg, coisa que consumo ao ritmo de uma por dia, e que me irrita solenemente, pois custa tanto como as aspirinas normais que possuem cinco vezes mais de substância activa, o célebre ácido acetilsalicílico. Tudo isto não dá para uma aventura digna de narração e de rememoração. Fosse a ida a um supermercado ou à frutaria da esquina, as coisas seriam diferentes, pois são lugares onde há gigantes a enfrentar e dragões a abater. São locais que dão sentido à vida humana. Não tendo ido lá, nem sequer ao Shopping, pois aqui também há um entreposto comercial com esse nome, vi seriamente abalado o sentido último da minha existência. Ainda iria a tempo, caso tivesse coragem e me dispusesse a enfrentar o ar frio, mas estou em registo de feriado. Fico-me por casa, na companhia de Pelleas und Melisande, de Arnold Schönberg, compositor que me tem acompanhado todo o santo dia, pois este é um dia santo, como me recordou há pouco o padre Lodo, como é conhecido entre os amigos o velho jesuíta Lodovico Settembrini, que trocou, há décadas, a terra natal por este recanto da península, onde, além de Deus, cultua os vinhos e a comida. Com moderação, como nunca se esquece de sublinhar. É verdade, hoje estive quase uma hora em conversa de telemóvel, mas isso não é uma aventura, apenas um prazer. Tivesse eu a coragem de um Cid campeador ou de um Orlando Furioso, ainda iria comprar umas coisas ao supermercado. Falece-me, porém, a coragem e tenho de pensar nos presentes de Natal.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Uma dura aventura

Uma dura luta contra as forças arbitrárias que comandam o universo. Em 2011, comprei a Encyclopaedia Britannica. Não em papel, claro, mas num DVD. Ela lá foi prestando os seus serviços, em concorrência com a Universalis, em língua francesa. Tendo feito uma troca do disco interno do computador, preparei-me para a instalar. Coisa simples. O pior é que as forças do mal não estavam pelos ajustes. Dava o comanda para instalação, e nada. Que me instalasse eu, cheguei a ouvir murmurado. Pensei, depois de várias tentativas, que o problema poderia ser da unidade de DVD do computador. Ligo uma unidade de DVD portátil. Resultado? Nada. Entretanto, tive de me fazer à vida. Entre outras coisas, fui ao dentista. No retorno, para descargo de consciência, fui tentar mais uma vez. A princípio, o dispositivo continuou renitente, mas depois, talvez por eu ter ido ao dentista, apiedou-se e decidiu começar a instalação. A certa altura pediu o serial number. Com delicadeza, dizendo-me que ele se encontra na caixa do DVD, no lugar referido no documento que acompanhava a mercadoria. Esse documento, se o guardei, não faço a mínima ideia onde estará. Pus-me a pesquisar na caixa e lá o encontrei muito disfarçado. Olhei para ele, ajustei os óculos, fiz incidir a luz de um candeeiro, mas isso só serviu para constatar que há dez anos via muito melhor. Pensei numa lupa, mas estava noutro lugar da casa. Ocorreu, então, fazer uma fotografia com o telemóvel. Remédio Santo. O serial number lá se mostrou em algarismos e letras bem visíveis. E é isto o que me ocorre narrar. As outras coisas não interessariam a qualquer leitor e aquelas que, porventura, o interessassem, não me interessam a mim. Fica aqui, para os pósteros poderem recordar, uma aventura onde, depois de muita porfia, as forças do arbítrio e do mal são vencidas, aventura que supera tanto as do Cid, o Campeador, como as do Quixote.

domingo, 5 de dezembro de 2021

Meditação dominical

Há livros de poesia cujos títulos são, por si só, autênticos poemas. Um dos poetas com mais talento para escolher títulos foi Eugénio de Andrade. Por exemplo, As mãos e os frutos¸ ou Obscuro domínio, ou Véspera de água, ou Limiar dos pássaros, ou O peso da sombra, ou Branco no branco, ou Rente ao dizer, ou O sal da língua, ou Lugares do lume. Cada um dos títulos basta para produzir um profundo efeito poético no leitor. Mais do que isso, cada um destes títulos tem o poder de arrastar o leitor para uma meditação que ultrapassa em muito o prazer poético que eles produzem. Essa meditação pode conduzir à descoberta de conexões inesperadas entre realidades que o hábito ritualizado mostra como completamente separadas. Há, por exemplo, uma clara incongruência na expressão véspera de água ou em o peso da sombra. No entanto, podemos ser conduzidos a pensar sobre o que antecede a água, o que será aquilo que vem antes dela, ou então a meditar por que razão aquilo que a véspera antecede é denominado água. Hoje é véspera de amanhã. Não será, neste momento, o amanhã ainda uma coisa líquida, sem os contornos da solidez? Também a sombra não tem peso, mas não haverá algo de pesado em tudo o que é sombrio? Estas incongruências são o produto da imaginação que oferece ao leitor uma chave para abrir aqueles obscuros domínios, onde a realidade se esconde. A mim, todavia, não me ocorre nada de poético, apenas que é domingo e o almoço será, como é habitual, tardio. Também os dias têm a sua gramática, morfologias e sintaxes muito próprias, que os classificam e organizam, que estruturam os seus rituais. Talvez a poesia, com as suas incongruências, seja uma luta contra o ritual dado na gramática de cada coisa.

sábado, 4 de dezembro de 2021

Citação

Comece-se com uma citação. A inocência é uma coisa admirável; mas é por outro lado muito triste que ela se possa preservar tão mal e se deixe tão facilmente seduzir. Que bela citação. Talvez o leitor pense de imediato estar perante um texto do século XVIII. Não se terá enganado. De facto, o livro de onde foi retirado o excerto é da parte final desse século de luzes, revoluções e libertinagens. Tem, aliás, o odor desses tempos. Depois, ao meditar no conteúdo, verá nascer-lhe a convicção de que se estará perante o começo de um romance ou de uma novela libertina, daquelas em que a inocência facilmente é vencida por sedutores mais ou menos experimentados. Talvez obra do senhor Donatien Alphonse François de Sade, também conhecido por divino Marquês. Ah! Como as ilusões depressa cobrem com o seu manto de fantasia a realidade. Já se pressentia uma jovem inocente afogueada, presa da líbido exuberante de algum dominador cruel, já se via o rubor da alma ainda imaculada a ceder à curiosidade que o desejo logo acende. A imaginação não tem fronteiras. A verdade, porém, é que a citação pertence a um autor pouco dado a aventuras libidinosas, de uma moral rigorosa e, não será uma hipérbole dizê-lo, assexuada, alguém que atravessou a vida sem se casar ou, que se saiba, ter tido uma aventura erótica. Que se saiba, sublinho. Estas coisas nem sempre são o que parecem. Não, não é um libertino o autor de tão promissora abertura de uma novela libertina. Trata-se daquele senhor que todos os dias dava um passeio à mesma hora pela cidade de Konigsberg e cujo nome é Immanuel Kant. A páginas tantas da sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes, saiu-se com esta, mas o desenrolar da narrativa não conduz a aventuras dionisíacas, não há jovens inocentes e belas seduzidas pelos mestres da perversão, mas traço o duro caminho do rigor moral apolíneo. O sábado sombrio não me está a fazer nada bem.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Uma traição

Mandei trocar o disco interno do computador, o que me limpou o dispositivo do imenso lixo que o tornava mais lento que Aquiles atrás da tartaruga, mas trouxe-me um grande desgosto. O Word apareceu-me formatado para o malfadado Acordo Ortográfico de 1990. Esta mania das reformas e simplificações ortográficas, de adaptar as coisas aos tempos, como se os tempos não se pudessem adaptar às coisas, causa-me desprezo. As línguas vão-se transformando, tal como as sociedades, os países e as sociedades. Hoje em dia ninguém se lembra de ir dinamitar umas ruínas romanas ou um castelo medieval só porque, na verdade, são inúteis. Foi o que fizeram com o português. Ele tinha, em algumas das suas palavras, os vestígios mudos, mas visíveis, da sua origem, verdadeiros monumentos linguísticos, e aqueles senhores, os que perpetraram a ignomínia do acordo e os que o aprovaram, acharam que era boa ideia pôr umas bombas nesses vestígios monumentais. Não foram os primeiros, pois um corpo de linguistas do tempo da Primeira República fez o mesmo, eliminando os vestígios visíveis do grego, mas isso compreende-se. Nesses tempos, os bombistas estavam na moda. Este jacobinismo linguístico irrita-me. Até aqui o meu processador de texto era fiel ao português anterior ao segundo bombardeamento. Agora, se escrevo cacto ou conjectura, sublinha-me as palavras a vermelho. Se tenho a veleidade de escrever o mês com maiúsculas, lá está o Word a sublinhar a palavra a azul, indicando-me uma incorrecção gramatical. E este processador não é o pior, pois há os que o único português que conhecem é o do Brasil e não hesitam em sublinhar facto a vermelho, pois no Brasil, factos são fatos e fatos são ternos, apesar dos cactos e das conjecturas continuarem a ser aquilo que eram. Se se fossem internar, ficaria muito grato. Uma traição.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Um dia de luz

Um dia luminoso e frio, belíssimo, mas talvez a anunciar um ano sem chuva. Na praceta, adolescentes jogam à bola, gritam golo, emitem uns urros próprios ao estado em que se encontram. Sem que o entusiasmo esmoreça, de súbito, calam-se. Terão entrado para o Centro de Línguas. Ali não haverá lugar para urros, nem para golos, mas a preparação do futuro, convencidos todos que o futuro ainda será escrito e falado em língua inglesa. Estas presunções são difíceis de provar, mas é muito mais difícil mostrar a sua falsidade. Quando tinha a idade deles, era inverosímil pensar que o Francês se tornaria, em Portugal e um pouco por todo o mundo, uma língua dispensável. Pertenço a uma geração cuja cultura de base é francesa. A literatura, a música, o modo de vida e até a política, embora sobre isso o autor não me deixe falar. Agora, ninguém quer saber do Francês. A língua inglesa, como certas variantes dos vírus, tornou-se dominante, há já faculdades a ministrar os cursos em inglês, e, caso o gosto de alguns se tornasse dominante, em pouco tempo Portugal tornar-se-ia um país anglófono, a que não faltaria o pedido de adesão à Commonwealth. O que teria as suas vantagens, pelo menos no Algarve. Agora, enquanto o dia resiste aos avanços da noite, vou ver a luz resplandecer na cidade.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Presépios

Chegou a última carruagem do comboio de 2021. Este corre desenfreado em direcção a 2022, como se estivesse tomado pela urgência de um encontro decisivo. Não tarda, a Restauração fará quatro séculos. Apesar de gostar imenso de Espanha, gosto ainda mais de não ser espanhol. Não que a condição de ser espanhol seja algo que provoque vergonha. Pelo contrário, os espanhóis têm imenso prazer em sê-lo. É esse prazer que eu sinto em ser português. Lamento as nossas idiossincrasias mais obscuras, lamento a falta dos climas do Norte, sou dos poucos a fazê-lo, mas a forma como os portugueses olham para o mundo, com bonomia e moderado cepticismo, coisa de gente que já viu muito, são-me agradáveis. Esse prazer de ser português justifica plenamente que se comemore o cartão vermelho aplicado a Filipe III. Importante, porém, foi ter cá o meu neto. Ainda não sabe nada de restaurações, mas mal passou a porta e viu a árvore de Natal e os presépios – coisas que por cá são montadas no início do Advento – ficou fascinado. Queria ver as luzes na mão dele e mexer nas figuras. Sou muito sensível a estas reacções, pois nunca esqueci um presépio montado pelo meu pai, há muitas décadas. Pelas minhas contas tinha eu a idade do meu neto. Julgo que estou ligado ao Natal por esse presépio arcaico, feito por alguém que não era crente e que nunca vacilou na sua descrença. Ou talvez eu esteja enganado, e aquele presépio feito para mim fosse a confissão de uma crença bem funda. Se tiver tempo, ainda hei-de contar ao meu neto o presépio que o bisavô dele montou, com pedras e musgos, rios de prata e caminhos de areia, céus azuis com estrelas e lua. Amanhã, a Restauração estará acabada e a realidade voltará com os seus imperativos e mandamentos, mas o Advento prossegue com os seus presépios debruçados sobre a infância.