sábado, 26 de janeiro de 2019

Grilos

Saí de casa já a noite se tinha afastado há muito, mas o frio que, com silencioso esmero, ela semeara entrou-me pelo corpo, fez de mim presa e subjugou-me a um império obstinado. É possível que a realidade não seja assim tão dramática. Delírios e dissonâncias cognitivas é o que mais por aí há, e eu, com a idade, sou cada vez menos imune a coisas dessas. Passa por mim uma mulher, segue-a um cão, e nenhum, reparo, tirita. A manhã resvala e, enquanto caminho, penso no cantar dos ralos. Fiquei surpreso. Nunca na vida tinha pensado em ralos. Em grilos, sim. Um dia deram-me uma gaiola com um grilo e o imperativo de o alimentar com folhas de alface. Julgo que morreu e não me lembro de o ter ouvido cantar, mas naquela altura ainda não sabia o que era um imperativo. Hoje sei-o bem, mas por enquanto não tenho idade suficiente para voltar a ter grilos numa gaiola.