Venho de uma sala cheia de gente. O pólen do calor pousava
lentamente nas cabeças e descia pelos corpos ofegantes, cavando finos sulcos
por onde o suor deslizava, pequenos córregos onde buliam restos de poalha.
Havia quem se abanasse, quem suspirasse, enquanto o tempo, como uma rapariga
grávida, inchava sem quietação. Quando Cronos, desinteressado da tortura,
determinou o fim da função, saí. Disfarçado com a farda do silêncio,
escapuli-me, procurando sombras e esconderijos fortuitos. Entrei no carro. Este,
exposto ao sol como um recém-nascido abandonado na roda, ardia. Levou tempo a
arrefecer. Cruzei a cidade como quem atravessa o Saara, sonhando com oásis ou
com aqueles reinos do norte que limitaram drasticamente os devaneios de Hélio. Os
olhos ardiam. Estão secos, disseram-me. Chegado a casa sentei-me a beber água.
Não há água, porém, que me purifique da idiotice com que revesti a vida. Em
cima da secretária dorme pacificado um livro. Não faço ideia da razão por que o
comprei. Um impulso do momento, o mais certo. Tem por título O tempo em que a luz declina. Talvez a
alusão ao declínio tenha desencadeado a compra. Recebo um recado e penso que
vem aí tempestade. O vento baforeja o seu hálito quente, sob um céu macilento,
terroso, arrastado por uma música envinagrada. Olho para a minha vida e começo
a compreender aquelas procissões de flagelantes que assombraram o fim da Idade
Média. Não, não era para atingirem o paraíso que se flagelavam, mas para se
punir da sua infindável estupidez.
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