segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Betabloqueantes

Na farmácia, venderam-me a colecção completa de medicamentos que me prescreveram para baixar o ânimo da tensão arterial. Esta tem tendência para exorbitar e passear pelo meu corpo a sua mania das grandezas. Como eu, também ela é dada à hipérbole. Sofre de um excesso de retórica e de pouca prática da virtude da humildade. Saí da botica pacificado e tranquilo, sabendo que tenho à mão aquilo que há-de humilhar essa pretensiosa. Enquanto calcorreava a avenida em direcção a casa lembrei-me dos primeiros tempos em que tomei um betabloqueante. Tudo o que me aborrecia e irritava desapareceu, como se o pequeno comprimido fosse um portal para o paraíso. Desejei que fosse eterno o efeito, mas como em tudo na vida, também nos betabloqueantes o hábito mata o prazer. As irritações e aborrecimentos voltaram a irritar-me e a aborrecer-me, disse-o ao médico que me olhou com ar complacente e confirmou que a vida é assim. Esta sólida sabedoria deixa-me sempre estupefacto, perguntando-me como não me tinha ocorrido tal coisa. Na rua procuro as sombras e calcorreio o passeio em passo lento. Um cão ladra, adolescentes retêm a sua adolescência a caminho da escola e um casal entra para um carro ajoujado ao peso da mútua presença. Não precisam de betabloqueantes, pensei.

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