domingo, 15 de setembro de 2019

Uma natureza anafórica

Como o calor não abranda tive de ir a uma superfície comercial dedicada à bricolage. A missão era comprar umas redes para colocar nas janelas e, tendo estas escancaradas para que o ar fresco tempere o desvario, evitar que moscas e melgas mais distraídas entrem impetuosas casa dentro. Ainda não me converti a um amor universal a todas as formas de vida. S. Francisco, decididamente, não é o meu santo padroeiro. Nada me inclina a amar o piolho, a mosca, a varejeira, a vespa, o percevejo, a barata e, acima de tudo, a melga. Aliás, entre mim e as melgas há uma relação tensa. Elas desejam-me como nada nem ninguém me há-de alguma vez desejar e sempre que têm oportunidade até o sangue me bebem. Eu não me faço rogado e mato-as. Só espero que não seja crime. A verdade é que não suporto o amor que elas me dedicam. No parque da escola que há aqui ao lado avisto uns arbustos em flor, um pontilhado rosa a fosforescer por dentro de nuvens de verde. Tento sintonizar os olhos, mas não consigo perceber do que se trata. O conhecimento da flora não é coisa que faça parte da minha carteira de conhecimentos. O domingo, depois do almoço tardio, enlanguesce sob nuvens esparsas, indecisas. Amanhã será outro dia, penso e de imediato me sinto pacificado com a minha inclinação para o lugar comum e a iteração. Num mundo em que toda a gente é inovadora e criativa, a mim coube-me a repetição como destino. Tenho uma natureza anafórica e isso explica tudo.

6 comentários:

  1. Pois é, tenho o mesmo problema com o melgaço. Podem estar mil pessoas e apenas uma melga; quem será a feliz contemplada com uma picada?
    A Maria!!!
    Por mais que me expliquem, não consigo compreender...
    E agora aparecem por aqui uns mosquitos tão pequeninos, assim do tamanho da cabeça de um alfinete, e uns aranhiços minúsculos avermelhados. Resumindo, estamos entregues à bicharada 🐜🐝🐞🕷

    Maria

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    1. Só espero que nos próximos tempos não os declarem espécies protegidas. Pelo caminho que as coisas estão a tomar, tudo é possível.

      HV

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  2. ... ataraxia? (Epicurista por destino, estóico por necessidade?)

    Cumprimentos.

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    1. Talvez perdido entre o Jardim e o Pórtico.

      Cumprimentos.

      HV

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    2. Caminante no hay camino

      Caminante, son tus huellas
      el camino y nada más;
      Caminante, no hay camino,
      se hace camino al andar.
      Al andar se hace el camino,
      y al volver la vista atrás
      se ve la senda que nunca
      se ha de volver a pisar.
      Caminante no hay camino
      sino estelas en la mar.

      Antonio Machado


      Perdido?
      Talvez - talvez seja essa a condição de quem, de uma maneira ou doutra, vai amiúde trilhando as vias que são de mais ninguém.
      Obrigado por fazer desse roteiro uma inspiração para os errantes.

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    3. Eu é que fico obrigado pelas suas palavras e pelo poema de Antonio Machado.

      HV

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