Assomo à janela e vejo o alcatrão molhado. Os carros
deslizam com precaução acrescida e o céu entrega-se contrafeito nos braços do
Outono. Na minha secretária está o livro de Michael Sandel, Contra a Perfeição, uma tradução
brasileira trazida por um amigo. Devia ler a obra no original, mas encolho os
ombros e pergunto-me para quê. Tudo é
agora demasiado tarde. O título reconcilia-me com o mundo. A luz do sol intensificou-se
um pouco ao encontrar uma camada menos densa de nuvens para atravessar, mas
logo volta ao tom umbroso, escurecendo com sombras de melancolia o verde das
árvores perfiladas diante dos meus olhos. Oiço o vozear de crianças a
afastarem-se. Estamos numa época em que abundam os salvadores. Uns salvam a
pátria, outros o planeta, haverá até quem se proponha salvar o universo,
imagino. Eu não quero salvar nada nem ninguém. Fecho a janela e rio-me da
previsibilidade de tudo, da minha própria previsibilidade. Das colunas sai a
Paixão segundo S. Lucas, de Penderecki. Talvez Deus exista. Um email convida-me
a responder a um questionário de satisfação. Lembro-me do I can get no satisfation, dos Stones e decido responder para mostrar
o máximo agrado. Talvez ajude uma pessoa que nunca hei-de conhecer a manter o
emprego. Também tu, digo-me, gostarias de ser um salvador. Rio-me mais uma vez e ocorre-me
um versículo de Mateus: Sede vós perfeitos como é o vosso Pai que está no céu.
Pelo que nos conta aqui eu diria que o HV teve um "Perfect Day".
ResponderEliminarE já que falou nos Stones, atrevo-me a pôr aqui o final da canção acima referida (do Lou Reed):
"You're going to reap just what you sow."
E esta é uma questão que me ponho às vezes: será que semeei alguma coisa de jeito? Será que alguma vez me aproximei da tal perfeição?
⚘
Maria
A perfeição é apenas uma ideia reguladora, um modelo, que os mortais não podem alcançar, nem aproximar-se, mas que têm o dever, imagino, de o desejar.
EliminarHV