domingo, 27 de outubro de 2019

Distâncias

Ontem estava um belo dia de sol. Passeei no jardim da Parada com o meu neto ao colo, depois de ele ter sido submetido à provação de comprar a roupa com que vai ser baptizado. Como os baloiços do parque infantil estavam ocupados e havia gente à espera, andámos a mexer nos troncos das árvores. Desde cedo se deve compreender a rugosidade do mundo e que uma parte da beleza vem dela. Depois, cansado de experimentar a realidade, trocou-me pela mãe. Hoje não tenho neto, nem estou em Campo de Ourique, nem está sol. Oiço o ronco de uma moto, cujo proprietário deve contribuir para que os portugueses tenham o QI mais baixo da Europa Ocidental, e contemplo a luz flébil que se desprende do céu, como se uma elegia descesse das nuvens. Aguardam-me algumas horas de escrita de coisas inúteis, uma especialidade em que tenho o meu melhor desempenho. Tornei-me um especialista em inutilidades e, fique claro, não é pretensão minha possuir outra qualquer especialização. Podia ir ler a primeira elegia de Duíno, à qual há dias alcunhei sub-repticiamente de ode, mas há coisas muito mais inúteis que aguardam com dentes afiados o meu tempo. É a distância que vai da ode à elegia.

2 comentários:

  1. Bonito isso de andar a sentir as texturas das árvores com a criança, alguma coisa ficará.
    ~CC~

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    1. Espero que sim. Talvez todas as experiências fiquem inscritas na memória e formem uma reserva de que as pessoas se sirvam sem terem consciência dela.

      HV

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