segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Um fingidor

Onde estou avisto duas acácias bastardas, mas não estou certo da denominação. Ainda não lhes vejo sinais a anunciar a caducidade das folhas. Os ramos agitam-se, balançam, enovelam-se, batidos por um vento invisível, empurrado pelo calcário da serra. Apetecia-me passar a tarde a ler, mas as minhas ocupações são incompatíveis com leituras. Há que domesticar os apetites. Se cultivar a estultícia, estarei de acordo com o que se me exige. Olho as árvores, tento focar a visão e distinguir as folhas, mas o que vejo são manchas de verde em metamorfoses contínuas, movidas por um jogo de claros e escuros tremeluzentes, como se a realidade saísse de dentro de um quadro impressionista para invadir a vida e torná-la mais fugidia. Muitas vezes faço a apologia do rigor e da precisão, mas sou um fingidor, o melhor é não me dar crédito. Do que gosto mesmo é do vacilar das fronteiras, do desgaste das estremas, para que tudo se contamine, seja continuamente outra coisa e eu possa ser coisa nenhuma. Desloco-me para dentro da tarde, fecho a porta atrás de mim e escondo-me da indiscrição do meu próprio olhar.

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