terça-feira, 1 de outubro de 2019

Terapia para o caos

Há um momento na tarde em que a luz parece fixar-se sobre o dia e assim tornar-se eterna. Depois, a ilusão desaparece e o tempo acelera, anunciando nos tons das árvores ou no matizado das paredes a noite que há-de vir. Lá em baixo, um bando de adolescentes entrega-se a rituais ruidosos, numa liturgia eterna, antes de entrar para um centro de línguas. Os dias outonais são-me propícios e acolho-os com a benevolência de um sorriso. À minha frente tenho um livro cuja capa reproduz uma gravura de Pieter Bruegel. Percorro-a com os olhos, demoro-me em cada uma das figuras e interrogo-me sobre o que motiva o autor para a teratologia. Também no meu inconsciente habitarão terríveis monstros, mas faltar-me-á coragem para os trazer à luz e com eles compor uma figuração do caos. Chega até mim a voz de uma mãe a perguntar a uma filha se está aí. Depois, diz Maria, Maria. Não se ouve resposta, apenas o ranger rouco de um baloiço. Ao longe, a crista dos cedros inclina-se, dobrada pelo vento. Outubro entrou vitorioso pelo calendário. Enquanto continuo a espiar a gravura de Bruegel, oiço um grito prolongado de golo. Por cada golo gritado, penso, adormece um monstro no fundo do coração daquele que grita. Uma terapia para o caos.

2 comentários:

  1. Passo por aqui agora para renovar a minha gratidão por partilhar connosco detalhes da sua cartografia espiritual.

    Mas, hélas, eis uma gratidão imperfeita (ingratidão, no fundo?) que me faz ter ganas de referir que um grito adormece um monstro enquanto invoca outros - terapias porquê, se não há caos que sempre dure nem ordem que nunca acabe?

    Com a gratidão possível e os melhores cumprimentos.

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    1. Talvez a terapia faça parte desse pôr fim ao caos, para que venha, precária, uma nova ordem. Também a terapia, assim como a patologia monstruosa, fará parte do eterno jogo entre o caos e o cosmos.

      HV

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