domingo, 20 de outubro de 2019

Ser personagem

Por vezes finjo que me interessam os graves problemas da humanidade, tomo posição como se acreditasse nas minhas opiniões, mas deixo antever que não tenho nenhuma solução para qualquer problema quanto mais para os graves, se é que os há. Isto não é propício à minha credibilidade como profeta. Um anunciador de futuros deve ter sempre uma inabalável certeza, uma voz tonitruante e um olhar furibundo. O criador esqueceu-se de mim na hora de distribuir esses talentos. Não se pense que o criador é Deus. Isso seria um engano deplorável, uma heresia das mais terríveis. O meu criador é aquele que escreve estas palavras e que me conforma em consonância com a sua volubilidade. Admito que não o suporto. Obriga-me ora à melancolia, ora à irrisão. É uma vida difícil nas catacumbas da humanidade. O que me vale é que ele desdenha em dar-me paixões temíveis e desejos inconfessáveis. Molda-me nas águas tépidas da existência, sem que me permita mergulhar nos insondáveis mistérios da alma humana. Estou mesmo desconfiado que nem uma alma ele me atribui. Ser personagem nunca foi fácil. Ser uma péssima é um desconsolo de que nunca hei-de recuperar.

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