quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Uma quimera senil

Chegam a passar meses, mas de súbito o perfume ressurge perdido dentro do elevador. A primeira vez que me deparei com ele a minha alma rangeu, literalmente. Como era possível? Não era um perfume floral a sublinhar uma feminilidade reservada. A força e o calor que se evolava da fragância era de alguém que não teme o olhar indiscreto. Uma intensa curiosidade apoderou-se de mim. Com o tempo e a repetição, aquele odor foi modelando alguém que me assombra os sentidos. Não vale a pena descrevê-la. Alturas há que chego a sentir-lhe a pele a deslizar sob o império dos meus dedos. A construção do corpo foi um trabalho demorado. Começou, nesse primeiro encontro, com uma figura geral, desejável, embora indefinida. Conforme as experiências se repetiam, o perfume, como um vinho vigoroso, diferenciava-se dando-me a ver ombros, seios, o ventre. O desejo nascido no olfacto ia compondo aquela que era a fonte de um devaneio ridículo, de uma quimera senil nascida numa animalidade cansada. Sonhei-a acordado e a dormir, sonhei-a a cores e a preto e branco. Apenas os olhos se recusavam a nascer da fragância. Depois de um intervalo de várias semanas, anteontem, ao entrar no elevador, lá estava o cheiro que me atormenta. Ao fechar a porta, os olhos revelaram-se-me. Olharam-me onde ninguém me pode olhar. Estremeci. A partir de então subo e desço aterrorizado. Agora que o objecto do meu desejo se completou temo que a realidade, que durante tantos anos me evitou, invada os meus sentidos e faça naufragar o navio onde a fantasia viajou na esperança de um porto desconhecido.

4 comentários:

  1. Mas que bela e perfumada declaração de amor.
    O texto está um primor, comme d'habitude, aliás.
    Estou é ligeiramente preocupada com o que a avó do seu netinho pensará (e fará) ao ler isto...
    Quinta feliz.

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    1. Há coisas que nunca se sabem, pois há avós para tudo.

      Obrigado e resto de boa quinta-feira

      HV

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