Contaminamo-nos facilmente. Mergulhei um rectângulo de chocolate no café. Quando dei por mim tinha as mãos manchadas de castanho. Se as manchas alastrarem, o que farei? Este pensamento risível foi afastado pelo ranger do baloiço no parque infantil, e numa associação ociosa de palavras passo de ranger para Recaredo, o filho de Leovigildo e rei dos Visigodos, perdendo-me em aliterações para compor a prosódia. Deveria ser um mundo esplêndido aquele que tais nomes descobria para distribuir por quem deles necessitava. Olho as mãos e as manchas de chocolate continuam à espere que me levante e as vá lavar, mas não posso abandonar o rei nesse momento difícil, em que o vejo converter-se da heresia ariana à fé de Roma. Convertido o rei, a fé contaminou o reino visigodo. Tenho de vigiar a história para que ela chegue até aos meus dias e eu possa escrever o que estou a escrever. Tremo só de pensar que Recaredo, abandonado a si mesmo, se arrepende e volta ao arianismo. Tudo seria diferente e eu não estaria aqui com as mãos sujas de chocolate nem a criança que lá em baixo se deixa ir embalada pelo estrugido mecânico que não se cala. O domingo progride dentro de mim. Alguém, suponho que o autor destas palavras, diz-me em tom imperativo: lê isto. Nem olho. Respondo: não leio. Hoje é o dia do Senhor, vou meditar na conversão de Recaredo e lançar um anátema ao arianismo. Servo, posso ser, mas não é voluntária a minha servidão. Agora vou lavar as mãos.
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