quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Um pouco de esperança


Tenho estado a ouvir o Helicopter Quartet, de Karlheinz Stockhausen. Se tivesse sido bafejado com algum tino, deveria abominar a obra, mas Epimeteu, quando chegou a minha vez de receber os dotes que restavam para os seres humanos, não encontrou a bolsa onde guardara o tino e despachou-me mesmo assim. Não há Prometeu que me valha. Estou com dificuldades de acertar com o dia da semana, parece-me, pela tristeza das ruas, que hoje é segunda-feira. Não sei bem por que razão, mas estou a começar a embirrar com a designação numérica do ano. Esta duplicação do vinte parece-me uma redundância inútil, já bastam as minhas iterações, pleonasmos, repetições e tautologias. Cheguei tarde para a duplicação do dezanove e demasiado cedo para a do vinte e um. Cada um tem a duplicação que merece. O efeito de ouvir Stockhausen é este tipo de discurso desconexo, com um certo laivo esotérico, como se tivesse sido convidado para uma loja maçónica. Não fui. Acabado o Helicopter Quartet, passei para os Hymnen. Os ruídos do mundo são a música das esferas celestes, ocorreu-me, antes que tivesse tido tempo de me autocensurar. Já não me lembro se nos desejos de passagem de ano – aquela coisa que deve acompanhar o mascar das passas de uva – incluí ter um pouco mais de sensatez. Tenho de consultar algum especialista no assunto para saber se os desejos esquecidos se mantêm válidos após a falência da memória. Talvez ainda haja esperança.

2 comentários:

  1. Espero que não tenha incluído a sensatez nessa passa de ano novo, um pouco de loucura faz bem. Bom ano!
    ~CC~

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    1. Desconfio que não, mas nunca se sabe com a rapidez das badaladas.

      Um bom 2020.

      HV

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