sábado, 18 de janeiro de 2020

Heróis e peregrinações

Está um entardecer soturno o deste sábado. Passei a manhã a trabalhar, depois acabei por ir almoçar ao bar da esquina. Contrariamente ao que acontece à noite, tinha pouca gente, o que me permitiu ler umas páginas de um artigo sobre ficção. Quando saí, voltei a aventurar-me pela cidade. A continuar assim torno-me um verdadeiro peregrino. Isso recorda-me a peregrinatio ad loca infecta, de Jorge de Sena. É isso o que eu sou, um peregrino em lugar infectado, e, posso-o assegurar, também estou contaminado ou, o que será mais justo afirmar, sou um dos contaminadores. Seria interessante contar aqui as peripécias da minha caminhada, mas ela foi pouco aventurosa. Não tive de enfrentar gigantes, nenhum bando de maltrapilhos me saiu ao caminho. Foi uma andança compassada e pequeno-burguesa, de quem digere o almoço e aproveita os raios de sol para se iluminar um pouco. O autor destes textos bem podia fazer de mim um herói dos antigos, mas suponho que ele deve ter sido infectado por alguma literatice moderna e acreditará em anti-heróis. Hoje surpreendi-o numa discussão com alguém que não conheço sobre a natureza da narrativa, defendendo, contra a opinião do interlocutor, que uma narrativa não precisa que todos os elementos se acordem e conjuguem, pelo contrário. Convém que o texto seja atravessado por presenças e acontecimentos inúteis e que nada contribuam para o desenlace da intriga. Escondi-me, antes que ele desse por mim. Nessas coisas, não me meto. Faço o que me mandam, pois este é o papel do narrador e o seu principal dever, que nem sempre cumpro, é o da obediência. A luz, como um funâmbulo, equilibra-se no arame esticado entre o dia e a noite. Não tarda e há-de despenhar-se. Talvez ressuscite na madrugada.

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