quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Problemas teológicos

O advérbio que não seria advérbio mas conjunção, depois de demorada ecografia, revelou o sexo. Afinal não era conjunção mas advérbio, um rapaz presumido pronto para qualquer conexão. Imagino que a continuar assim terei na classificação das palavras motivo de escrita para os próximos anos. Por causa das coisas, guardei longe de mim a gramática de Lindley Cintra e Celso Cunha, que tanta estima tinha gerado em mim, e coloquei em cima da mesa uma outra dita prática, daquelas de onde todo o gosto aristocrático foi banido em nome do respeito que se deve à ciência. Imagino-me já perdido nela em investigações sem fim sobre a nova nomenclatura. Percorro-a em diagonal e parece-me cheia de palavras bárbaras e expressões oblíquas. Isto digo eu que não pertenço ao clube dos linguistas e não me interesso por este tipo de teologia. Fora o problema da processão do Espírito Santo e outro galo cantaria. Até João Escoto Eriúgena haveria de citar, para dar ares de entendido. Um sopro roncante vindo da rua choca não sem ira contra os vidros. Forma-se então uma melodia em que o bafo acidulado do vento lembra o som de uma fita magnética a que se junta o batimento improvisado das persianas percutidas pela flébil mão da ventania. Ainda me acusam de não saber o significado de flébil e usar palavras a esmo. A música do mundo está onde menos se espera, pensei já esquecido da acusação. Janeiro desliza destemperado em direcção à foz. As suas águas, porém, não engrossarão Fevereiro, pois este, mesmo quando bissexto, debita menos tempo que qualquer outro dos rios que formam o grande lago do ano. Tamanha irregularidade mostra que a fonte de onde se deu a processão do calendário pouco devia à perfeição.

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