sábado, 4 de janeiro de 2020

O quingentésimo primeiro texto

O texto de ontem foi o quingentésimo. Esta não é uma palavra que se use impunemente. Pensei que quinhentos era uma boa conta para dar por terminada a função. Como é habitual em mim, pus de lado a boa resolução e, tomando o pior dos caminhos possíveis, volto de novo a este simulacro de diário. Também é verdade que um narrador tem menos liberdade que um escravo. Ele é uma espécie de marioneta manipulada pelos humores do autor. Esta deriva pela teoria da literatura é a confissão de um fracasso. Se não é falso que o mundo fervilha de assuntos palpitantes sobre os quais escrever, também não o será a minha nula vontade de o fazer. A sombra da oliveira que vejo daqui não fervilha, nem traz nela qualquer lição e no entanto não consigo parar de contemplá-la. Move-se tão lentamente que parece eterna, e nesta aparência de eternidade se embala o olhar. Oiço, vindo de lá de dentro, uma injunção para que uma das netas vá tomar banho. Não oiço réplica, o que significa que o imperativo foi pronunciado no tom exacto. A exactidão do tom é uma sabedoria difícil, mas que, adquirida, evita que a realidade se entregue a derivas que turvam os ambientes e cansam os actores. E isto é tudo o que me apraz escrever no quingentésimo primeiro texto.

2 comentários:

  1. Ainda bem que não desistiu de escrever :)
    Gosto de vir aqui lê-lo e, cusca que sou, quero saber quando o seu netinho vai deixar de espalhar os livros pelo chão e lhe vai pedir que leia um livro para ele.
    E também como vão os treinos de badminton, ou se já as convenceu que jogar xadrez é bem melhor...

    Bom fim-de-semana.
    🌹

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    1. Não me tinha ocorrido ensinar-lhes xadrez, mas é uma boa ideia. Tenho de descobrir o meu tabuleiro.

      Um bom fim-de-semana.

      HV

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