terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Poréns

Quando fechei as persianas a noite ainda se apressava ao longe para chegar à hora marcada. O horizonte porém estava negro. Ao escrever isto, paro e fico a olhar demoradamente para a conjunção. Em certos países de língua portuguesa usam porém como nome, sinónimo de defeito ou mácula. Ela tem muitos poréns, imagino eu. Enquanto olho para a chuva penso que também eu possuo muitos poréns. Depois, tomo consciência da aliteração em p e deixo de pensar e de possuir, não vá ofender a estilística, fico só com os poréns. Cultivo-os como se fossem um dom precioso e com isso espero tornar-me virtuoso. Há dias em que não tenho nada para dizer, mas insisto em falar, muito gostava de saber por onde anda o meu amor ao silêncio. A mulher que sob um pequeno chapéu-de-chuva atravessou uma passadeira na avenida poderia dar uma história. Inventava-lhe um desgosto amoroso para explicar a pressa, o coração dorido pelo abandono, mas já ninguém quer saber de gente enjeitada e os abandonos são, num mundo como o nosso, uma oportunidade a reclamar o talento de quem foi trocado. Também as coisas do coração ou do sexo, para nos mantermos no estrito domínio da fisiologia, têm a sua economia e o mercado há-de ter os seus nichos à espera dos ousados que enfrentam com bravura uma ou outra falência. Os carros vomitam raios de luz que a chuva recorta em tiras, transeuntes recolhem-se nos estabelecimentos abertos e toda esta gente sem metafísica há-de chegar a casa. Resta-me comer chocolate com a mesma verdade que uma pequena o comia perdida num poema de certo autor cujo nome não me apetece citar.

6 comentários:

  1. Nem precisa :) aposto que todos conhecem o poeta e o poema, que tem um dos mais brilhantes inícios que conheço.
    Ainda costumo citar esse início no Dia da Poesia, mas ultimamente estou a fingir, já não tenho em mim todos os sonhos do mundo, apenas um ou dois.
    E agora vou conduzir um certo carro numa certa serra, só para desanuviar...

    Uma boa noite.
    🌹
    Maria

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    1. Talvez o próprio mundo seja um sonhos onde também nós somo sonhados.

      Uma boa viagem serrana.

      Boa noite.

      HV

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    2. A viagem não aconteceu: Chevrolet avariou, Sintra é longe, não encontrei um Ambrósio...
      Sem Lídia nem rio, resolvi ir guardar um rebanho... e gostei,desanuviei à mesma :))

      🐑 🐐
      Maria

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    3. As máquinas ainda são menos fiáveis do que os seres humanos. Os rebanhos, todavia, serão de maior fiabilidade e, também, fidelidade, já que se deixam guardar, para pacificação do guardador.

      HV

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    4. E porque será que fiquei a pensar que talvez o HV não se esteja a referir apenas aos rebanhos de quatro patas?
      Já houve (e agora voltaram em força) maléficos pastores que fizeram grandes estragos conduzindo rebanhos de duas pernas e cabeças ocas...

      Bom meio de semana.
      🌈
      Maria

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    5. Julgo que os rebanhos de duas pernas têm sempre as cabeças ocas. Umas vezes os pastores são melhores, outras piores, outras ainda são terríveis, mas são sempre uma produção da cabeça oco do rebanho.

      Um bom resto de semana

      HV

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