Com tantos tortos por endireitar e o mundo tão fora dos
eixos, e eu sentado à secretária a pensar coisas que não hão-de salvar ninguém.
Foi o que me ocorreu quando dei comigo a olhar com demora a Adoração do Cordeiro Místico, do
retábulo de Ghent, uma obra dos irmãos van Eyck, agora restaurada. Se pensarem
como motivo da minha contemplação os olhos humanos do Cordeiro ou o jorro do
sangue do seu corpo para o cálice, estão enganados. O que me retém é a ordem
perfeita com que os adoradores são dispostos na adoração, não tanto porque essa
ordem seja uma convenção cristalizada dos poderes sociais, mas antes o
resultado da própria natureza mística da figuração simbólica do Cristo. Meu
Deus, um dia destes ainda me torno um erudito. Não devia dizer estas coisas,
pois contrariam a vulgata social que hoje faz de cartilha maternal pela qual
todos aprendem a ler o que se passa por aí. Recebo uma mensagem. A aplicação
que me controla o exercício diz-me que está tudo OK!, com exclamação para
enfatizar a situação. Depois percebo que é um estratagema reles para motivar-me
a estar ainda dezassete minutos activo e obter mais um ponto Cardio. Desconfio que se obtiver todos
os pontos Cardio em jogo ganho uma
viagem a Ghent, mas talvez o mundo não funcione segundo as minhas conjecturas
e, mal faça uma, ela receba imediata refutação. Uma outra mensagem põe-me
perante um dilema, plausivelmente falso. Será a amizade um sentimento ou uma virtude? Para
piorar as coisas, alguém que desconheço, de um país do leste europeu, pede-me
amizade. Não lhe consigo pronunciar o nome. Ainda bem que não é um pedido de
casamento, pois os meus pontos Cardio
não seriam suficientes para tamanha comoção.
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