quarta-feira, 3 de junho de 2020

A conquista da glória dos altares

Da gárgula escorre uma água suja, malcheirosa. Abre um sulco na terra, um ribeiro minúsculo, e desliza sem pressa para ir morrer num buraco fétido, coberto de ervas e arbustos secos. Não faço ideia de que sonho faz parte esta descrição, pois raramente me recordo dos sonhos, mas não tenho dúvidas que se extraviou de algum e começou a dançar dentro de mim, até que saiu em forma de texto, antes que a sua pestilência destilasse e se transformasse numa bebida amarga e venenosa. Lá em baixo, há vozes. Um homem, pelo menos um, e uma mulher conversam. A voz dela ouve-se menos, é mais exígua, quase sumida dentro do silêncio. Ele enche a praceta com um som redondo, saltitante, como se fosse uma bola excessivamente cheia. Há risos de conveniência, hesitações. Pela primeira vez em muitas semanas fui ao sítio onde oficio um ritual que me permite enfrentar a terrível necessidade. Ao sair de lá, estive tentado em ir a uma pastelaria. Lembrei-me da velha disputa com a balança e contive-me. Há que cultivar a paz. Ao chegar ao prédio onde vivo tomei a decisão de evitar o elevador e dispus-me a subir os cinco andares que me separam da terra. Ao entrar em casa, pensei que subir aos céus é muito árduo e pessoas haverá com pernas tão fracas que desistem a meio do caminho. Talvez a santidade seja uma questão de musculação dos membros inferiores, um trabalho contínuo de ginásio, onde os candidatos à glória dos altares encontrarão os seus personal trainers. Agora que esses templos do músculo reabriram, não lhes hão-de faltar devotos ansiosos de ganhar vigor para subirem ao céu. Não se pense que sou dado à blasfémia. Não sou. O que acontece é que nem sempre me ocorrem metáforas decentes e então pego no que me vem à cabeça, e aquilo que vem à cabeça das pessoas raramente é coisa que se recomende. A rede de internet está a irritar-me e, como se sabe, a impaciência não ajuda a subir a escada que nos leva ao alto. Hoje é quarta-feira, dia 3 de Junho. Este é um mês cuja função nunca percebi. Serve para quê? Daqui a uns minutos vou videoconferenciar. Respiro fundo e digo-me que isso é como ir ao ginásio para treinar os músculos das pernas para subir aos céus. As persianas tamborilam batidas pelo vento, enquanto as folhas das acácias tremem como se sofressem de uma doença degenerativa. Não sofrem.

6 comentários:

  1. Os Led Zeppelin é que tinham umas Stairways to Heaven, mas não me parece que seja o seu género de música...
    Quanto ao mês de Junho, no Hemisfério Norte, serve para as pessoas irem a Stonehenge celebrar o Solstício de Verão.
    Aqui no Rectângulo há quem salte fogueiras, coma sardinhas, marche a cantar, dê marteladelas nas cabeças alheias: enfim, eu diria que é um mês cheio de eventos, como agora de diz ;)

    Um bom dia 4.
    🌻
    Maria

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    1. De facto, não é o meu género de música. Nunca foi, embora nem saiba porquê. Tinha-me esquecido os santos populares. É possível que eles justifique a existência de Junho.

      Um bom dia, já quase tarde.

      HV

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    2. O heavy metal também nunca foi a minha onda, mas tendo tido (já não tenho) um irmão mais velho que tinha a mania que era guitarrista de uma banda de garagem...
      Contudo, esta música que mencionnei é uma bela balada :)
      Para mim, a música clássica chegou mais tarde (mas ainda a tempo) e convive muito bem com a música dita ligeira, mas nunca ligeirinha ;)

      Um bom dia musical, HV.
      🌻
      Maria

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    3. Há muita música não erudita, digamos assim, de que gosto. Do jazz ao fado, passando por diversos estilos de música do mundo. O rock, e nem sequer me estou a referir ao heavy metal, nunca me tocou, nem sei bem porquê. Não é que não tenha ouvido e há coisas de que gosto, mas nunca fui um adepto entusiasmado e isso não mudou com a idade, como aconteceu com o fado. Não gostava e com o tempo a situação inverteu-se.

      Um boa tarde, com ou sem música, Maria

      HV

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  2. Junho é um dos melhores meses do ano: há cerejas e sardinhas. Mas não só. Ainda não está demasiado calor nem há demasiados mosquitos e o mar ainda não está cansado de gente. Infelizmente para mim é mês de muito trabalho, quase não dou por ele.
    ~CC~

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    1. Junho é a anunciação dos grandes calores. Só isso me indispõe com ele. Compreendo, porém, que sardinhas e cerejas tornem as pessoas mais afáveis com o mês.

      HV

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